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Desamor como causa de separação judicial

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12/09/2003 às 00:00
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3.0 – A CULPA NA SEPARAÇÃO JUDICIAL.

Analisar a culpa no desenlace conjugal implica em entender sua origem, as mudanças e transformações da família, a evolução do pensamento científico, compreendendo a pessoa humana enquanto sujeito desejante e no contexto de sua família, pois nela é que se estrutura o sujeito.

No século XX, Freud demonstra ao mundo a existência do inconsciente, surgindo a Psicanálise. A partir deste momento o pensamento contemporâneo não é mais o mesmo: não se pode desconsiderar que na objetividade dos fatos permeia uma subjetividade que também determina as relações jurídicas. A ciência jurídica recebeu, e ainda recebe, grande influência psicanalítica, em especial o Direito de Família.

Lacan, a partir de Freud e Lévi-Strauss trouxe inovador conceito de família, enxergando-a como estrutura psíquica, como núcleo básico, fundante e essencial de qualquer sociedade. [27]

Mais tarde, como o advento do movimento feminista e o conseqüente redimensionamento dos papéis masculinos e femininos, promove-se um repensar, inclusive nas relações conjugais.

Diante dessa revolução de valor, homens e mulheres repensam suas relações afetivas. A mulher, antes submissa, ganhou status de sujeito desejante, ao se integrar no mercado de trabalho, cobrando do homem a necessidade de assumir responsabilidades dentro da casa. O casamento arrefeceu sua relevância como núcleo econômico e de reprodução tornando-se caracterizado pelo afeto e comunhão que se instaura entre o homem e a mulher. Essa mudança acabou por provocar o afastamento do parâmetro idealizado de casamento: união que se traduzia basicamente em família, exaltando-se os interesses econômicos e de reprodução; o que ensejou um desequilíbrio entre o casal devido à nova concepção de casamento que, atende, primeiro, aos quesitos do afeto e do amor, se tornando um terreno fértil para conflitos.

Os dados do IBGE apontam para um número crescente de separação de casais, como aponta a tabela:

1987

1992

1997

Separações judiciais

85.406

80.873

89.635

casamentos

930.893

748.020

722.776

Fonte: Revista Veja ( 13/06/2001)

Muitas vezes, no casamento se constata uma realidade diferente daquela idealizada ao se convolar núpcias. Instala-se, então, o litígio conjugal para procurar um culpado. Não tendo condições de resolver seus problemas conjugais, as partes apelam para o Judiciário na esperança de que o Juiz, o"Terceiro", venha a apresentar a solução mais adequada, ficando a cargo deste aquilatar a insuportabilidade do convívio.

Deve-se atentar para o fato de que as demandas que envolvem os vínculos afetivos acarretam o fim da privacidade; tornam-se públicas as experiências íntimas do casal. Por isso, cada parte procura provar a sua verdade, atribuindo ao outro a culpa pela perda do objeto amoroso. Quer o reconhecimento da responsabilidade do outro pelo fim da relação e que lhe seja imposta uma punição. [28]

O Direito sempre atribuiu a um dos consortes a culpa pela separação. Aquele que descumpriu um dos deveres do casamento elencados pelo Código Civil em seu art. 231 é o culpado.

Além do mais, fatores socioculturais e de ordem religiosa levam à necessidade de identificação de um culpado para o fim da relação, o que evidencia a tentativa de se manter a função institucional do casamento como meio de preservar a família, tida como célula mater da sociedade.

No regime do Código Civil, anteriormente à Lei do Divórcio, o casamento era indissolúvel, configurando-se duas espécies de desquite: o consensual e o litigioso associado à culpa.

A idéia de culpa dependia de prova atribuída ao autor da ação, que praticou uma das causas expressas pelo art. 317 do Código Civil: a) adultério; b) tentativa de morte; c) sevícias ou injúria grave; d) abandono voluntário do lar conjugal durante dois anos.

Sendo o casamento indissolúvel, era inegável o estigma de culpa atribuído a quem pretendesse se separar, ressaltando-se que, culturalmente, o cônjuge desquitado era visto com preconceito, como pessoa à margem das relações familiares.

Contra o cônjuge faltoso importava-se uma série de sanções, patrimoniais e não-patrimonias, a noção de culpa identificava um comportamento causador de dano injusto, ou seja, a dissolução do vínculo conjugal. Isto porque o casamento era valorado como um bem em si mesmo, necessário à consolidação das relações sociais, independentemente da realização pessoal de seus componentes, conforme esclarece Gustavo Tepedino. [29] Daí a justificativa axiológica da culpa no Código Civil.

A Lei do divórcio acabou por estabelecer um conceito mais abrangente, aumentando o arbítrio judicial, mas mantêm a necessidade de uma causa identificadora da responsabilidade pelo rompimento.

Aquele considerado culpado pelo fim do casamento perde determinados direitos que teria em relação ao outro. É na idéia de culpa que jaz a idéia de punição e de vingança.

Sendo assim, por mais que se queira tratar do casamento como um ato civil, ele estará sempre eivado do ideal religioso, onde o elo é o amor e o desejo de união. Este liame é tão frágil que o Direito deve intervir nos laços interpessoais para garantir a existência da família estabelecendo direitos e deveres entre os cônjuges. Quem descumpri-los será punido, afirmando que essas regras não são apenas da ordem moral como também da jurídica. Contudo, à luz da Constituição, a unidade da família não se identifica com a unidade do matrimônio, haja vista o reconhecimento da união estável e da família monoparental. Logo, a culpa perde seu significado no ordenamento constitucional.

As conseqüências da infração dos deveres conjugais se concretizam na perda da guarda dos filhos, que ficará com o cônjuge que não tiver dado causa à separação; a perda do sobrenome do marido, se a iniciativa da separação foi da mulher e, perderá o direito aos alimentos o cônjuge que deu causa a separação.

Critica com propriedade Rodrigo da Cunha Pereira [30]: já que você não ama mais, terá que pagar por isso.

Isto constitui, na verdade, uma negação ao direito do cidadão de não mais amar, ou desejar não mais estar casado, remontando o princípio da indissolubilidade do casamento.

3.1– PERSISTINDO A CULPA.

O novo Código Civil Brasileiro em muitos aspectos ainda representa um retrocesso, pois, mantendo-se sobre a ótica da culpa, não traz quase nada de novo para o Direito de Família.

O Código Civil é uma idéia do século XIX com o pretenso objetivo de regulamentar a sociedade do século XXI. Reconhecendo a competência e o conhecimento jurídico dos mentores do novo Código Civil, com todas as tentativas de adaptá-lo à Constituição Federal vigente, ele continua com a mesma estrutura do projeto formulado na década de setenta.

Com essa disposição, a lei proporcionou uma verdadeira "reserva de mercado" em favor do inocente, habilitando-o com exclusividade para buscar a separação e obter benefícios em proveito próprio, além de impor punições ao outro. [31]

Além de manter a culpa, o novo Código Civil especifica em numerus clausus os motivos que ensejam o pedido de separação judicial (art. 1.573). Conserva as causas apresentadas no art. 317 do Código Civil de 1916, acrescidos de outros motivos, quais sejam: condenação por crime infamante e conduta desonrosa. Todavia, tal elenco perde o significado quando, no § 1º do art. 1.573, concede ao juiz a faculdade de considerar fatos outros que evidenciem a impossibilidade da vida conjugal.

Outra inconveniência é demonstrada pelo art. 1.580 do novo Código Civil: é vedada a referência à causa da separação na sentença de conversão, de nada serve o desgaste das partes, a dilação probatória e a oneração da Justiça. E mais, a pecha de culpado nem aparece no caso de divórcio direto.

No que tange aos deveres de ambos os cônjuges, o novo Código Civil, em seu art. 1.567, acrescentou ao rol de deveres o "respeito e consideração mútuos", distinguindo-os do dever de mútua assistência. [32]

O princípio da ruptura é uma contraposição à culpa no processo de separação, predominante entre doutrinadores modernos, em especial os do Rio Grande do Sul, que preza o fim da atribuição da culpa a um dos cônjuges para fins de separação judicial.

O Judiciário, segundo essa posição, não deve se ocupar das questões de ordem subjetiva, e sim das questões monetárias, pois buscar um culpado, para explicar o fenecer do matrimônio em nada auxilia o escopo, belo, porém exagerado, do Estado de manter o casamento, pois a união é sustentada pela afeição, e na ausência desse pressuposto não importa quem motivou a separação, mesmo porque não se pode aferir o quanto cada um dos cônjuges, por ato ou omissão, contribuiu para a derrocada da união.

Apesar de todo o estudo doutrinário, interdisciplinar e moderno acerca do princípio da ruptura, há autores que condenam a abolição da teoria da culpa, mantendo-se a possibilidade de um dos cônjuges pedir a decretação da culpa do consorte em razão da violação dos deveres conjugais.

Nessa posição, Regina Beatriz T. S. P. dos Santos explica que

embora existam outras espécies de separação judicial e mesmo a possibilidade de dissolução direta do vínculo conjugal, certamente menos dolorosas ou traumáticas que a separação-sanção, esta conserva-se como necessária principalmente nas seguintes situações: quando o consorte inocente tem em vista demonstrar a culpa do outro cônjuge, inclusive para liberar-se definitivamente da prestação alimentícia a este último; ou quando as partes não se compõem acerca das cláusulas básicas para a homologação da separação consensual ( guarda de filhos, pensão alimentícia entre cônjuges e deste para com a prole, regulamentação de visitas); ou, também, se outras espécies de separação não puderem ser obtidos (...), pelo qual pode ser negada não só a separação fundada em grave doença mental do cônjuge, ou trouxer conseqüências de excepcional gravidade aos filhos; ou, ainda, pelo fato de que o cônjuge, ao pleitear a dissolução da sociedade conjugal fundada na ruptura da vida em comum ou o divórcio direito, por ser tido como responsável pela dissolução da sociedade ou do vínculo conjugal, perde direitos aos alimentos. [33]

Contudo, aderindo a corrente moderna não tem sentido averiguar a culpa com motivação de ordem íntima, psíquica, concluindo que a conduta pode ser apenas sintoma do fim. [34]

A necessidade de se provar a culpa enseja a improcedência do pedido na ausência de provas, obrigando a Justiça a manter casados aqueles que não mais se toleram; acobertando um casamento de "aparências", e pondo por terra a garantia constitucional de liberdade e dignidade do cidadão. Além de sustentar, a culpa, a antiga idéia de indissolubilidade do casamento.

3.2–EVOLUINDO PARA A ELIMINAÇÃO DA CULPA.

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Já em 1979, em seu texto "Divórcio e Concubinato", o doutrinador João Baptista Villela aponta que um dos sinais de atraso da legislação brasileira é a instalação da culpa nas separações conjugais: vício seriíssimo da lei é o de ainda se estruturar sobre o velho e decadente princípio da culpa. [35] A contemporânea doutrina tende abandonar o princípio de culpa em favor do princípio da deterioração factual.

Segundo Alexandre Rosa [36]:

procurar culpados pela derrocada do relacionamento no processo civil atual é no mínimo surreal. Reconhecidamente é impossível reconstruir toda a história das partes, saber os momentos de decepção, angústia, os sentimentos escamoteados, envergonhados silenciosos, que jamais aflorarão no processo civil: nunca se saberá o que aconteceu durante todo o relacionamento, mas mesmo assim, o monopólio do Estado da jurisdição se arvora em apontar, com o autoridade da coisa julgada, o culpado!

A falência de um casamento não se dá de uma hora para outra. Trata-se de um longo processo para o qual contribuem os parceiros com suas dificuldades pessoais. A verdadeira causa da culpa, numa abordagem psicológica, é subjetiva e se constrói, quase sempre, com a participação de ambos. Assim, seria imprudente imputar ao causante a aparente culpa por um comportamento que pode ser o reflexo da atitude do outro ou a projeção de um problema do outro.

Pode-se trair quem se fez ausente? Pode-se, a título de exemplo, considerar como traição a conseqüência natural daquele que se sente abandonado, rejeitado ou simplesmente esquecido?

Com a humanização cada vez mais presente no Direito, não cabe mais se preocupar com a culpa conjugal, e sim, com a felicidade e o bem-estar da família e a liberação do cidadão enquanto sujeito desejante, enfatizando o espelhamento emocional de cada um na relação conjugal, respeitando sua liberdade e dignidade (garantidos constitucionalmente), acertando os passos com a contemporaneidade. [37]

No Brasil já existem sinais dessa evolução. Com a Lei 8.408/92, um ano de separação de fato autoriza o requerimento da separação judicial dispensando a incidência da culpa:

"A separação judicial pode também ser pedida se um dos cônjuges provar a ruptura da vida em comum há mais de um ano consecutivo e a impossibilidade de sua reconstituição". (art. 5º da Lei 6.515/77)

Ao art. 40 da Lei do divórcio alterado pela Lei 781/89, pode ser considerado como outra evolução, ao estabelecer que apenas o decurso do tempo é hábil para se requerer o divórcio direto.

Também os arts. 1º da Lei 8.971/94 e o art. 7º da Lei 9.278/96 mencionam o dever de alimentar na dissolução da união estável sem atrelá-lo, pelo menos expressamente, ao princípio da culpa.

À luz de outros ordenamentos jurídicos romano-germânicos, que tem atenuado a culpa e seus efeitos na separação judicial, caminha a legislação brasileira apesar de sua presença.

No direito espanhol e português coexistem os princípios da culpa e o da ruptura, sendo que no ordenamento espanhol as conseqüências econômicas da separação não estão ligadas diretamente à culpa.

No regime atual da França apresenta, ainda, resquícios do princípio da culpa. Com a reforma de 1975 foi criada a prestação compensatória – prestation compensatoire, em substituição à pensão alimentícia, na intenção de abrandar as disparidades econômicas decorrentes da dissolução do casamento. É possível, também, por esse sistema, que um dos cônjuges seja condenado a reparar danos morais e materiais decorrentes do divórcio por culpa.

Na Itália, a reforma de 1975, acrescida da Lei 898, modificada pela Lei 74/1987, extinguiu-se o sistema de culpa.

Outro país a aderir ao sistema da ruptura foi a Grã-Bretanha, motivada pela reforma de 1971, a partir do Divorce Act.

Por fim, na Alemanha, o princípio da culpa foi totalmente substituído pelo princípio da ruptura com a reforma de 1976.

Há muito, foi completamente abolido qualquer possibilidade processual de ser perquerida a culpa dos cônjuges pela derrota do seu matrimônio, pois entendem os juristas alemães que a máquina judiciária estará muito melhor aproveitada se concentrar seus esforços e recursos com equipes multidisciplinares ensinando àqueles que se separam como deverão enfrentar suas renovadas experiências afetivas, corrigindo para suas novas núpcias, ou mesmo para suas relações informais, as falhas que tenham porventura provocado dentro do relacionamento conjugal, por inocência, cisma, ingenuidade ou cizânia, já que nada, na seara do amor, é realmente inalterável quando houver vontade para crescer como pessoa e para fortalecer suas relações. [38]

Pelo exposto, a tendência é, acertadamente, substituir o princípio da culpa pelo princípio da ruptura, idéia que inclusive já está incorporado pelo ordenamento jurídico de diversos países, denotando a improcedência de um sistema calcado na culpa em face do conhecimento psicanalítico que norteia as relações humanas e de sua ingerência no direito de família. Nesse sentido caminha a legislação brasileira.

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Sobre a autora
Renata Flavia Maimone Rezende

acadêmica de Direito na PUC Minas, Campus de Poços de Caldas (MG)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REZENDE, Renata Flavia Maimone. Desamor como causa de separação judicial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 71, 12 set. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4238. Acesso em: 4 mai. 2024.

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