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Investidura em cargo público postergada judicialmente e o processo como fonte autônoma de danos:

abordagem crítica da repercussão geral no Recurso Extraordinário 724.347

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11/09/2015 às 09:26
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III - CONCLUSÃO

O Supremo Tribunal Federal decidiu que, excetuada situação de patente arbitrariedade, o artigo 37, § 6º da Constituição Federal não enseja reparação pecuniária pela investidura  tardia em cargo público efetivo.

A abordagem crítica do decidido pelo Supremo Tribunal Federal na Repercussão Geral permite afirmar que o julgado padece de vício de argumentação dogmático-legal e lógico-persuasivo. Quanto ao primeiro, conclui-se que a Corte incorreu em julgamento extra-petita, ao decidir que o pagamento de vencimentos não prescinde do efetivo exercício do cargo público. Há diferença substancial entre o pedido de reparação civil, formulado com fundamento na regra da responsabilidade patrimonial do Estado pelo dano (artigo 37, § 6º, CF) e pedido de pagamento de vencimentos, que tem sede legislativa diversa e inequívoco caráter funcional-estatutário (artigo 40, Lei 8.112/90).

Quanto ao segundo vício argumentativo, o lógico-persuasivo, não se pode logicamente eleger o resultado da conduta estatal, ou seja, a ausência de efetivo exercício no cargo público, por obstáculo judicialmente criado pela Administração pública, como sendo também a causa excludente do dever de indenizar (reparar).

Diferentemente do que ocorre no regime jurídico geral da responsabilidade aquiliana do artigo 186 do Código Civil, onde “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”, no âmbito da Constituição Federal, o artigo 37, § 6º, consagra a regra da responsabilidade estatal por dano, pouco importando a licitude ou a ilicitude da conduta.

À luz do artigo 37, § 6º, da Lei Maior, o reconhecimento judicial da ilegalidade do ato administrativo que impede o usufruto do cargo público não se resolve meramente com a posse. A “simples existência de um litígio judicial sobre concurso público é fato normal na vida de uma sociedade com instituições, e a defesa judicial pelo Estado de um ponto de vista minimamente razoável, dentro das regras do jogo” é patologia causadora de dano, pois desconsidera a chaga da morosidade judiciária e a utopia do princípio da razoável duração do processo, devendo a reparação ser a mais ampla possível. Bem por isso é possível afirmar que a Repercussão Geral do Recurso Extraordinário 724.347 permite ao Estado substituir um dano por outro.

O argumento lançado na decisão de que se trata, que obsta o pedido de reparação pelo “possível impacto financeiro da decisão a ser tomada”, estabelece hipótese de imunidade formal e material não agasalhada pelo princípio da igualdade, pois, no que se desigualam o particular e a fazenda pública, tal impacto financeiro já foi devidamente equacionado com a regra da prévia inscrição do Crédito em precatório, nos termos do artigo 100, § 5º, da Constituição da República - privilégio de que não desfruta o particular, quando demandado pela fazenda pública.

Considerada a cultura do descumprimento da lei, em que o estado cria o ordenamento jurídico, mas recusando-se seus agentes cronicamente a cumpri-lo, a longa tramitação dos procedimentos judiciais envolvendo a fazenda pública, a mitômana impossibilidade judicial da posse e do exercício precários, a decisão examinada coloca a Administração pública em desalentadora zona de conforto da antijuridicidade inconsequente.

O desfecho da Repercussão Geral de que se trata permite afirmar que, presente a fazenda pública na relação processual, o processo pode ser fonte de danos não reparáveis.

A abordagem crítica ora formulada reclama a revisão de tese a que se referem o artigo 543A, § 5o do Código de Processo Civil e 327, § 2º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, para admitir a reparação ampla, na hipótese fática examinada na Repercussão Geral, não apenas no caso de arbitrariedade flagrante.


IV - REFERÊNCIAS

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THEODORO JÚNIOR, Humberto. Direito e Processo. Direito Processual ao Vivo. Aprimoramento e Modernização do Direito Processual. Vol. 5. Rio de Janeiro: Aide, 1997.

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Sobre o autor
Luciano de Castro Lamego

advogado administrativista, graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais e inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil - Seção Minas Gerais, sob o n. 68.010.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LAMEGO, Luciano Castro. Investidura em cargo público postergada judicialmente e o processo como fonte autônoma de danos:: abordagem crítica da repercussão geral no Recurso Extraordinário 724.347. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4454, 11 set. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/42484. Acesso em: 4 mai. 2024.

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