A possibilidade da usucapião em terras devolutas e o princípio da função social da propriedade

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O presente trabalho possui objetivo de demonstrar a possibilidade da usucapião em terras devolutas, bens pertencentes ao Estado que não cumprem o princípio da função social da propriedade.

Resumo: O presente trabalho possui como objetivo demonstrar a possibilidade da usucapião em terras devolutas, bens pertencentes ao Estado que não cumprem o princípio da função social da propriedade, que é garantia fundamental consagrada pela Constituição de 1988, deste fato ocorre o entendimento pela possibilidade da aquisição por meio da usucapião. Embora seja vedado em lei, contudo, parte da jurisprudência já defende serem estes tipos de bens públicos passíveis da usucapião. A partir destas divergências faz-se necessária uma análise sistemática do princípio da função social da propriedade, pois não é propício ao bem estar social isentar o poder público de ser regido pelo mencionado princípio.

Palavras-chave: Terras Devolutas. Usucapião. Possibilidade Aquisição. Função Social da Propriedade.


1. Introdução

O direito de propriedade é protegido constitucionalmente, conforme art. 5º, XXII, da Constituição Federal, a fim de cumprir sua função social, conforme art. 170, III da CF/88. Assim, o princípio da função social da propriedade, denota que o exercício do direito de propriedade obedeça aos parâmetros legais e morais estabelecidos, no intuito de contribuir para o interesse coletivo, entretanto traz uma limitação ao direito de propriedade.

Aquele proprietário de imóvel particular urbano ou rural que não proporcionar uma utilização condizente com o direito e a realidade social, sofre pena de perda da propriedade pela desapropriação ou prescrição aquisitiva.

Trata-se da forma de aquisição da propriedade, a prescrição aquisitiva ou usucapião, desde que preenchidos certos requisitos como a posse mansa e contínua e o decurso do tempo. Além dos pressupostos mencionados, é importante lembrar do princípio da função social da propriedade, de forma que o imóvel usucapiendo não esteja cumprindo uma função social.

Entretanto, tem-se que observar a aplicabilidade da função social nos bens públicos, de forma a doutrina e jurisprudência majoritária defendem ser todo e qualquer bem público imprescritível, não sendo possível a aquisição de tais bens pela usucapião. Já uma corrente minoritária, vislumbra uma diferenciação acerca dos bens públicos, podendo ser formais e materiais.

Desta forma, ao analisar a possibilidade de ser um bem público, pode ser citado às terras devolutas, uma vez que são bens públicos formais, não se encontram destinados a nenhuma função social, ou mesmo ambiental, estando em situação na qual possibilitada estaria sua aquisição por meio da usucapião.

Assim, será o objeto de analise no presente trabalho a aplicação do princípio da função social da propriedade aos bens pertencentes ao Estado, possibilitando assim a usucapião em terras devolutas, bens públicos que não cumprem sua função social.


2. Bens Públicos e o Princípio da Função Social da Propriedade

Conforme o artigo 98 do Código Civil de 2002:

“Artigo 98. São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for à pessoa a quem pertencerem.”.

Portanto os bens públicos são todos aqueles que integram o patrimônio da Administração Pública Direta e Indireta, sendo todos os demais considerados particulares.

No que tange aos bens públicos suas classificações ora mencionadas no artigo 99 da já mencionada legislação ordinária, a partir do critério de sua destinação, sendo os bens de uso comum, ou seja, os bens de uso indistinto de toda a população, tais como os mares, rios, estradas, ruas e praças; os bens de uso especial, sendo aqueles destinados a uma finalidade específica, como os edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias e os bens dominicais, sendo aqueles que não estão destinados a uma finalidade comum e nem a uma especial, constituindo o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades. O parágrafo único do artigo supracitado prevê ainda que não dispondo a lei em modo diverso, consideram-se também dominicais os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado. Como um exemplo de bem dominical podemos citar as terras devolutas.

Uma das características dos bens públicos é a imprescritibilidade, vedando-se assim que tais bens sejam passíveis de usucapião. Tal fato pode ser observado não só na Constituição Federal (artigo 183,§ 3º, e 191, parágrafo único), como também pela legislação ordinária (artigo 102 CC/02), além de ser tratada também pela súmula 340 do STF que dispõe: “Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião.”

Outra corrente doutrinária, acredita haver diferente divisão dos bens públicos, diferenciando dos bens inerentes à União. Citam Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald:

Os bens públicos poderiam ser divididos em materialmente e formalmente públicos. Estes seriam aqueles registrados em nome da pessoa jurídica de Direito Público, porém excluídos de qualquer forma de ocupação, seja para moradia ou exercício de atividade produtiva. Já os bens materialmente públicos seriam aqueles aptos a preencher critérios de legitimidade e merecimento, postos dotados de alguma função social. (FARIAS; ROSENVALD, 2006, p.267)

Desta forma, bens formalmente públicos, sem destinação pública, como o caso das terras devolutas, podem prescrever, sendo então passível de aquisição por usucapião, isto, pois não respeitam o princípio da função social.

O princípio da função social da propriedade foi em um primeiro momento previsto na Constituição Federal de 1967. Com a redação dada pela Emenda Constitucional n.º 1, de 1969, a Carta de 1967 inclui a função social da propriedade como princípio basilar da ordem econômica e social (art. 160, III), coexistente com a garantia da propriedade privada. Alguns chegam a encarar esse princípio como uma verdadeira hipoteca social sobre a propriedade.

Do ponto de vista histórico, a idéia de função social foi primeiramente trabalhada por São Tomás de Aquino, portanto guardando relação com a doutrina cristã da Idade Média. Algum tempo depois, o jusnaturalismo encarou esse princípio como uma necessidade da utilização dos bens como instrumento da efetivação da justiça divina.

A função social da propriedade teve origem a partir da necessidade de limitar seu uso desmedido, extirpando seu caráter totalmente individual oriundo do direito romano, o qual pregava ser a propriedade, absoluta, não sendo lhe dada nenhum fim social.

Cita Cristiano Chávez, que a função social da propriedade esta relacionada ao proprietário, desta forma, este esta incumbido de utilizá-la de maneira a obedecer o interesse social, no entanto, esta não deixa de ser particular podendo usufruir, isto claro sem desregular o organismo social.

Foi a partir da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que passou se a. inclui a função social da propriedade como princípio da ordem econômica e social, no art. 170, III. E assim assegurar a função social no âmbito dos direitos e garantias fundamentais do cidadão no art. 5º, XXII e XXIII.

O direito de propriedade é garantido, desde que cumpra sua função social, é princípio fundamental de todos os brasileiros que residam no Brasil, conforme artigo 5º da Constituição Federal de 1988, sendo cláusula pétrea. Entretanto, para que tal direito seja efetivado, torna-se necessário o cumprimento de sua função social.

Cumpre mencionar que a definição de função social varia entre municípios, isso considerando as necessidades de cada região.

Legisla a Constituição Federal de 1988 sobre o assunto.

Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.

§ 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.

Contudo, é valido dizer que, o direito à propriedade não é absoluto havendo possibilidade do poder público desapropriar imóveis que não estejam cumprindo sua função social.

Comprova o caráter relativo da função social da sociedade o artigo 184 da Constituição Federal;

Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.

Destarte, toda propriedade deve atender sua função social, assim obtem proteção do Estado e assegura seus direitos podendo dela fruir.


3. Usucapião

A Usucapião foi consagrada com a lei das doze tábuas, em 455 antes cristo, como forma de aquisição de propriedade de coisas moveis e imóveis com a posse continua. Somente cidadãos Romanos gozavam deste direito. Assim os Romanos protegiam suas propriedades dos estrangeiros. Inicialmente a Usucapião tinha intuito de convalidar aquisições que se deram de maneira nula ou ineficaz quando presente a boa fé.

Logo mais, foi concedida ao estrangeiro possuidor a posse da propriedade não pela usucapião, mas por prescrição, que ocorria pela negligência do proprietário. No entanto, esta também não dava ao possuidor estrangeiro a propriedade do bem.

Em 528, depois de cristo, Justiniano fundiu o instituto da prescrição com o da usucapião concedendo a todo possuidor “ longi temporis” ação reivindicatória.

No ordenamento jurídico brasileiro, precipuamente a prescrição aquisitiva ocorria em 30 anos para bens moveis ou imóveis, sendo o bem público ou litigioso, esse prazo se estendia para 40 anos.

A Usucapião é forma de aquisição da propriedade, pela posse prolongada, devendo ser cumpridos todos os requisitos legais para tanto.

O fundamento da Usucapião é a consolidação da propriedade. O proprietário desidioso, que não cuida de seu patrimônio, deve ser privado da coisa, em favor daquele que, unindo posse e tempo, deseja consolidar e pacificar a sua situação perante o bem e a sociedade.(ROSENVALD E CHÁVEZ 2012)

A aquisição da propriedade pode se dar de maneira originária ou derivada. A primeira ocorre quando não ha relação entre o adquirente e o antigo proprietário. Já na aquisição derivada essa relação ocorrerá.

A usucapião também poderá ser classificada em Extraordinária e Ordinária. A Usucapião Extraordinária ocorrerá por um lapso temporal maior de 15 anos .

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Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.

Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.(CÓDIGO CIVIL, 2012)

No que se refere à Usucapião Originaria, esta ocorrerá por um lapso temporal menor de 5 ou 10 anos, por sua vez, exige justo título e boa fé para a aquisição. Isto, pois, o justo título leva o possuidor à crença de ser ele, o real proprietário do imóvel.


4. Terras Devolutas

Terras devolutas são terras públicas que em nenhum momento integraram o patrimônio particular, ainda que estejam irregularmente em posse de particulares. O termo “devoluta” relaciona-se ao conceito de terra devolvida ou a ser devolvida ao Estado. Para estabelecer o real domínio da terra, ou seja, se é particular ou devoluta, o Estado propõe ações judiciais chamadas ações discriminatórias.

A Constituição inclui entre os bens da União as terras devolutas indispensáveis à preservação ambiental e à defesa das fronteiras, das construções militares e das vias federais de comunicação. As demais terras devolutas pertencem aos estados, ou seja, integram o patrimônio do Estado e, para todos os fins, qualificam-se na condição de domínio público não passível de prescrição aquisitiva para a usucapião.

Historicamente, as terras devolutas foram criadas a partir de sesmaria, uma área de dez léguas, que eram doadas pela coroa portuguesa para os capitães donatários. Com essa área, eles [os capitães] poderiam doá-las para quaisquer pessoas sob a condição de que estas deveriam cultivar algum tipo de plantação. Se não cultivassem, a área doada retornaria ao domínio público, tornando-se, assim, terras devolutas.

Não obstante, em 1850 surge a Lei de Terras, o principal diploma legal que passou a regular a legitimação do domínio no ordenamento jurídico brasileiro, objetivando regularizar a situação das terras públicas, legitimando as ocupações e evitando abusos no apossamento a qual em seu artigo 3º conceituava as terras devolutas.

Art. 3º. São terras devolutas:

§ 1º As que não se acharem aplicadas a algum uso público nacional, provincial, ou municipal.

§ 2º As que não se acharem no domínio particular por qualquer titulo legítimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em comisso por falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura.

§ 3º As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo, que, apesar de incursas em comisso, forem revalidadas por esta Lei.

§ 4º As que não se acharem ocupadas por posses, que, apesar de não se fundarem em titulo legal, forem legitimadas por esta Lei.

Conceituam os doutrinadores Cristiano Chávez e Nelson Rosenvald; terras devolutas são as, que atualmente configuram-se como terras pertencentes ao Poder Público, mas que não tem uma destinação pública definida, ou seja, não são utilizadas pelo Estado. Contudo, continua válido seu caráter residual, podendo assim ser consideradas bens formalmente públicos. Estas são terras desprovidas de registro e que por força da lei são consideradas bens públicos.

Todavia, o fato das terras devolutas pertencerem à União não traz presunção em seu favor acerca da titularidade de bens imóveis que não possuem registro. Cabe ao Estado provar que as terras sem registros, pertencem à administração pública. Sobre o assunto expõe o seguinte acórdão do TJMG:

EMENTA: AÇÃO DE USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA – REQUISITOS FORMAIS - PROVA DO LAPSO DE TEMPO - NÃO DESINCUMBÊNCIA - IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO - AUSÊNCIA DE REGISTRO DO IMÓVEL JUNTO AO CARTÓRIO DE REGISTRO DE IMÓVEIS – TERRAS DEVOLUTAS - NÃO CONFIGURAÇÃO.

I - São requisitos formais da usucapião extraordinária o lapso de tempo que, para o caso sub judice, é o vintenário, previsto no art. 550 do Código Civil de 1916, a posse mansa e pacífica e o exercício desta com animus domini, os quais, uma vez provados, acarretam a procedência da usucapião extraordinária.

II - A posse do antecessor pode ser somada se houver cessão convencionada. Provada a posse por mais de 20 anos exercida pelo apelado e seus antecessores, resta procedente o pedido de usucapião.

III - Citados, a União, o Estado e do Município manifestaram a ausência de interesse sobre o imóvel objeto da usucapião. Portanto, o fato de não estar registrado o imóvel junto ao Cartório R.I. não faz prova de que se trata de terras devolutas.

(TJMG, Apelação cível, 1.0672.07.273929-1/001, Rel. Desembargador Mota e Silva, julgado em: 07/02/2012)

Desta maneira nota-se que terras devolutas são bens públicos sem qualquer destinação, e sua titularidade não é presumida devendo ser provada.


5. Possibilidade de Usucapião de Terras Devolutas.

A propriedade é direito de todos. O texto constitucional de 1988 positivou a união indissociável entre a propriedade e a sua função social.

Ao arrolar o direito de propriedade dentre os direitos e garantias individuais fundamentais, logo em seguida agrega a função social (art. 5°, inc. XXII e XXIII),

Art. 5° - (...)

XXII – é garantido o direito de propriedade;

XXIII – a propriedade atenderá à sua função social;

A função social da propriedade foi concebida como um princípio fundamental.

Sobre a origem desse princípio, Carlos Roberto Gonçalves, menciona os ensinamentos de Duguit em sua obra:

“Para o mencionado autor, “a propriedade deixou de ser o direito subjetivo do indivíduo e tende a se tornar a função social do detentor da riqueza imobiliária; a propriedade implica para todo detentor de uma riqueza a obrigação de empregá-la para o crescimento da riqueza social e para a interdependência social. Só o proprietário pode executar uma certa tarefa social. Só ele pode aumentar a riqueza geral utilizando a sua própria; a propriedade não é, de modo algum, um direito intangível e sagrado, mas um direito em contínua mudança que se deve modelar sobre as necessidades sociais à quais deve responder.”” (Direito Civil Brasileiro, volume 5: Direto das Coisas – Carlos Roberto Gonçalves. – 9 ed. – São Paulo: Saraiva, 2014. Pág.: 244/245).

Os bens públicos possuem uma função de interesse público que lhe é inerente. Estes já devem ser considerados como a própria função pelo fim exercido a que deve se relacionar, atingindo o interesse público. Se esses bens deixam de ter sua destinação específica, estes se afastam do cumprimento desse princípio constitucional.

Destarte, não há que se falar em aplicação do princípio da função social, apenas aos bens privados.

A função social da propriedade é um principio que incide sobre e qualquer relação jurídica de domínio, seja pública ou privada, por ser um princípio voltado ao cumprimento de fins sociais marcado pelo fim de permitir à coletividade o gozo de certas utilidades.

Os bens públicos têm o dever de cumprir sua função social, significa dizer que tem o dever de fazer o melhor uso possível do bem em prol dos interesses sociais.

Além do mais, se a propriedade não atende a princípio constitucional, não podendo, portanto, ser objeto de tutela e legitimidade, falta-lhe elemento essencial estrutural ao direito de propriedade que lhe confere demais direitos em harmonização com aquele princípio.

Podemos inferir que não é observada a aplicação deste princípio nos chamados bens dominicais, ou aqueles considerados formalmente públicos, onde se podem incluir as terras devolutas, pois não tem qualquer uso público, surgindo assim a discussão sobre a possibilidade de usucapião desses bens públicos, pois, não cumprem sua função social.

A Constituição Federal preceitua a não possibilidade de usucapião de bens públicos em seus artigos 183, § 3º e 191 parágrafo único:

Art. 183: Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

§ 3º Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.

Art. 191: Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.

Parágrafo único - Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.

A vedação à usucapião dos bens públicos também esta prevista no Código Civil:

Art. 102: Os bens públicos não estão sujeitos a usucapião.

Porém, a imprescritibilidade dos bens públicos não pode ser absoluta, devendo-se observar as particularidades de cada espécie de bem público.

Os tribunais vem decidindo de forma majoritária, acompanhando o sentido literal da norma, vejamos:

Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE USUCAPIÃO. BEM PÚBLICO. IMÓVEL REGISTRADO EM NOME DA EXTINTA COHAB. TRANSFERÊNCIA AO PATRIMÔNIO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. DISPENSABILIDADE DE REGISTRO NA MATRÍCULA. ACESSIO POSSESSIONIS INSUFICIENTE AO IMPLEMENTO DO PRAZO PRESCRICIONAL AQUISITIVO. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO CONFIGURADA. Caso em que o imóvel usucapiendo encontra-se registrado em nome da Companhia de Habitação do Estado do Rio Grande do Sul, extinta pela Lei Estadual nº 10.357/1995, cujo art. 4º dispôs acerca da transferência da propriedade dos bens móveis e imóveis ao patrimônio do Estado do Rio Grande do Sul. Prescindível, para fins de transferência da propriedade, o registro na matrícula, posto que sua ocorrência deu-se ex vi legis. Assim, operada a impossibilidade de usucapir o imóvel, por se tratar de bem público. Inteligência do §3º, do art. 183, e do § único, do art. 191, ambos da Magna Carta c/c o art. 102 do Diploma Civil. Acessio possessionis que não se mostrou suficiente ao implemento do prazo do usucapião extraoridinário do Código Civil de 1916, qual seja o de 20 anos, até a data da promulgação da mencionada Lei (16/01/1995). Manutenção da sentença que reconheceu a impossibilidade jurídica do pedido. Negaram provimento ao agravo. Unânime.

(Apelação Cível Nº 70058254764, Vigésima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Dilso Domingos Pereira, Julgado em 26/03/2014) (grifamos).

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE USUCAPIÃO - AGRAVO RETIDO NÃO RATIFICADO - NÃO CONHECIMENTO - ART. 523, §1º, DO CPC - IMÓVEL PÚBLICO - TERMO DE ENTREGA AO MUNICÍPIO DE BELO HORIZONTE - IMPOSSIBILIDADE DE USUCAPIÃO - ART. 183, §3º, DA CF/88 - SÚMULA 340 DO STF - RECURSO NÃO PROVIDO.

- Nos termos do art. 523, §1º do CPC, a ausência de ratificação do agravo retido nas razões do recurso de apelação importa no seu não conhecimento pelo Tribunal.-A Constituição Federal de 1988, em seu art. 183, §3º, veda expressamente a aquisição por usucapião de imóveis públicos. - Aliás, por intermédio da súmula 340, desde 1963, e, portanto, ainda na vigência do Código Civil de 1916, já havia fixado que "desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião". - Se o imóvel foi repassado ao Município pelo Departamento Nacional de Estradas de Ferro, conforme comprovado por "Termo de Entrega", ficou caracterizado que esse imóvel é bem público, sendo, pois, impossível a sua aquisição pela chamada prescrição aquisitiva.

(Apelação Cível 1.0024.05.705630-1/001, Relator(a): Des.(a) Versiani Penna , 5ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 03/04/2014, publicação da súmula em 14/04/2014) (grifamos).

Porém não se deve analisar apenas a literalidade da norma, que muitas vezes vai de encontro aos preceitos dos princípios constitucionais.

Se o bem público não exerce sua função social, se é abandonado, e se esse bem tem uma destinação social efetiva por um particular, durante o tempo exigido para aquisição pela usucapião, seria contrário ao ditame social negar a aquisição deste bem.

É essencial analisar a afetação social da não observação dos princípios constitucionais, ao proteger esses bens públicos que não cumprem com sua função social, com essas terras que não são aproveitadas.

Neste sentido nos ensina Nelson Rosenvald:

Vivenciamos uma época em que não se avalia o rótulo, mas a efetividade dos modelos jurídicos. Em outras palavras, se o bem pertencente à União, Estados, Municípios, Autarquias e Fundações de Direito Público, não guardar qualquer relação com a finalidade pública exercitada pela pessoa jurídica de direito público, haverá possibilidade de usucapião. (FARIAS; ROSENVALD, 2006, p. 269)

Como no caso das terras devolutas que são terras pertencentes ao Poder Público, mas que não tem uma destinação pública definida, pois não estão sendo utilizadas pelo Estado e que não estão incorporadas ao domínio privado. Estando estas classificadas como bens dominicais, podem ser submetidas à aquisição pela usucapião, preenchidos os requisitos para a mesma.

Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins acolhem a tese de admissibilidade de usucapião de bens formalmente públicos, notadamente das terras devolutas:

Os bens públicos são aqueles que pertencem ao domínio das pessoas jurídicas de direito público. No entanto, nem todos esses bens estão sujeitos a um regime também de direito público. Pertencem ao domínio público sem que, contudo, se sujeitem às regras jurídicas a que estão normalmente submetidos os bens públicos na plena acepção da palavra. Estes são públicos pela destinação e não somente pela titularidade. As terras devolutas constituem o maior contingente que compõe essa categoria de imóveis. Nada obstante serem públicas em razão da qualidade que detém a sua titularidade, não têm essa qualificação quando se leva em conta a destinação a que estão afetas. As terras devolutas não estão vinculadas ao atingimento de um fim público. Permanecem como uns estoques de terras ainda não transpassados aos particulares ou, tendo um dia estado em suas mãos, já tornaram à origem em razão do donatário ter caído em comisso. O fato é que estas terras são possuídas pelos Poderes Públicos à moda de um particular. Devem, portanto, estar sujeitas ao usucapião, não colhidas, pois, pela expressão “imóveis públicos” a que se refere o Texto comentado. Esta distinção entre os bens públicos e as terras devolutas já era defendida por autores de grande tomo do nosso direito público. A matéria, contudo, em face do advento da atual Constituição, parece ter-se desapegado das areias movediças dos debates doutrinários para ingressar na arena segura da positivação jurídica. Assim é que o art. 188 da Lei Maior faz referência no mesmo preceito às terras públicas e às terras devolutas, deixando certo que acolheu a distinção esposada cientificamente. Se as terras devolutas fossem públicas, não haveria necessidade da sua referência. Essa só se explica pelo fato de o Texto Constitucional ter perfilhado a tese segundo a qual só são públicos os imóveis quando sujeitos a um regime de direito público. Portanto, é forçoso reconhecer que, nada obstante um imóvel ser público por compor o domínio de uma pessoa de direito público, ele pode ser dominical do ponto de vista da sua destinação ou utilização. Esses são usucapíveis. (BASTOS; MARTINS,2000, p.222-223).

Destarte, podemos depreender que apesar de expressa a não possibilidade de usucapião de bens públicos, vem surgindo correntes que defendem o princípio da função social da propriedade, como no caso das terras devolutas, dando maior importância à utilidade social da propriedade.


6. Conclusão

Ante ao exposto e aos fatos narrados baseados no estudo realizado, conclui-se que a norma constitucional que veda a usucapião de bens públicos, não deve ser ponderada de maneira absoluta, isto, pois conforme o princípio da função social da propriedade, esta deve contribuir para organismo social, o que, por vezes, não ocorre nas terras devolutas, que são objeto principal do estudo.

O ordenamento jurídico, mais do que de normas, é formado de princípios, desta forma, a função social da propriedade deverá ser observada com a importância que lhe é concedida quando, o proprietário que no caso de Terras Devolutas é o Estado, não usa de sua propriedade em prol da sociedade, atribuindo a ela um fim social.

Como apontado anteriormente, todo aquele que não cumprir com a função social de sua propriedade, poderá ser destituído dela. Desta maneira, não poderia ser diferente no que tange aos bens públicos, pois deveria ser o Estado, o primeiro a contribuir com o bem estar social, de maneira a impossibilitar que propriedades permaneçam inúteis quando tantos carecem de moradia.

Apesar de ser este entendimento adotado por uma minoria doutrinária, vem sendo fortemente defendido por Tribunais de todo país. Ocorre que se torna cada vez mais visível, a inércia da administração pública no que diz respeito ao aproveitamento de suas propriedades. Por vezes, observa-se, que nos anos que são necessários para aquisição da propriedade pela usucapião, o estado não se manifesta ou reivindica a propriedade.

É importante compreender que a propriedade utilizada para sustento e moradia de um indivíduo ou de sua família, obedece à função social elencada na Constituição Federal. Já as Terras Devolutas não possuem qualquer perspectiva de utilização para o interesse público.

Dessa forma, em respeito aos princípios constitucionais, que visam entre outros, o bem estar social. É inegável a importância do respeito à função social da propriedade fazendo desta útil.


Referências

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BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988, volume 7: arts. 170 a 192. 2ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2000.

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FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. 8ª ed. Bahia: Editora Juspodivm, 2012

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, Volume 5: Direito das Coisas. 9ª Ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2014.

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REIS, João Emílio de Assis. A Função Social da Propriedade e sua aplicabilidade sobre bens públicos. Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=4d5b995358e7798b> Acesso em: 21 de abril de 2014.

SANTOS, Vitor Rebuzzi dos. Usucapião em terras devolutas. Disponível em: <http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=3499> Acesso em: 21 de abril de 2014.

FIUZA, César. Direito Civil: Curso Completo. 9ª ed. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2006.

ROSENVALD, Nelson. Módulo de Direitos Reais. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/36837795/Direitos-reais-Rosenvald>. p. 20. Acesso em 22 de abril de 2014.

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Cível: Direitos Reais. 11ª ed. São Paulo. Editora Atlas, 2011.

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