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A soberania e o mundo globalizado

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17/09/2003 às 00:00

Resumo:


  • A evolução do conceito de soberania ao longo da história, desde a assinatura do Tratado de Westfalia em 1648 até os dias atuais, refletindo a igualdade jurídica dos Estados e as mudanças na ordem internacional.

  • Autores como Jean Bodin, Thomas Hobbes e Georg Jellinek contribuíram para a definição e compreensão da soberania, cada um com sua perspectiva sobre o poder do Estado.

  • A necessidade de revisão do conceito de soberania diante da realidade globalizada atual, com desafios como a interdependência econômica, os direitos humanos, o meio ambiente e a formação de blocos regionais, levando a uma redefinição da autonomia e do poder decisório dos Estados.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

1. CONCEITO DE SOBERANIA NAS VÁRIAS TEORIAS E NA ATUALIDADE

O Tratado de Westfalia, de 1648, foi assinado quando o Sacro Império Romano-Germânico, governado pelos Habsburgos austríacos, foi derrotado, após a Guerra dos Trinta Anos. Esse Tratado restabeleceu a paz na Europa e inaugurou nova fase na história política daquele continente, propiciando o triunfo da igualdade jurídica dos Estados, com o que ficaram estabelecidas sólidas bases de uma regulamentação internacional positiva. Esta igualdade jurídica elevou os Estados ao patamar de únicos atores nas políticas internacionais, eliminando o poder da Igreja nas relações entre os mesmos e conferindo aos mais diversos Estados o direito de escolher seu próprio caminho econômico, político ou religioso. Ficou, então, consagrado o modelo da soberania externa absoluta, e iniciou-se uma ordem internacional protagonizada por nações com poder supremo dentro de fronteiras territoriais estabelecidas.

Um pouco mais tarde, em 1789, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão trouxe alguns caracteres da soberania que foram adotados por várias Constituições: unidade, indivisibilidade, inalienabilidade e imprescritibilidade.

Enquanto una, a soberania não pode ser múltipla, ou seja, se existissem diversas soberanias, dentro de determinada ordem, não existiria soberania alguma. O mesmo acontece com relação à indivisibilidade, pois, se a soberania fosse dividida, deixaria também de ser uma, e não seria soberania. A inalienabilidade significa que a soberania não pode ser transferida ou renunciada e a imprescritibilidade traz a permanência do poder supremo, a impossibilidade de decadência, caducidade da soberania.

O conceito de soberania, entretanto, sempre causou polêmica, devido à falta de unanimidade em defini-lo e à disparidade que parece sempre ter existido entre o conceito teórico e aquilo que pode suceder no mundo fático.

Tal disparidade parece aumentar a cada dia, diante da nova realidade que se apresenta, a realidade do mundo "globalizado".

Este trabalho tem por objetivo mostrar as dificuldades que o conceito originário de soberania, sistematizado por Jean Bodin, no século XVI, e reafirmado pelo Tratado de Westfalia, vem encontrando para ser aplicado na realidade atual, e concluir sobre a necessidade ou não de revisão do conceito.

Incontáveis foram os autores que trataram do tema, desde Aristóteles até os autores atuais. A dimensão e o intuito deste trabalho, entretanto, não comportam uma análise detalhada de todos os autores que trataram da questão da soberania, e, assim sendo, serão mencionadas apenas algumas das principais teorias, para que se possa traçar um perfil sucinto e geral da evolução do conceito.

Jean Bodin

Jean Bodin foi o primeiro autor a dar ao tema da soberania um tratamento sistematizado, na sua obra Os Seis Livros da República. Bodin é francês e viveu entre os anos de 1529 e 1596. Para ele, soberania é um poder perpétuo e ilimitado, ou melhor, um poder que tem como únicas limitações a lei divina e a lei natural. A soberania é, para ele, absoluta dentro dos limites estabelecidos por essas leis.

A idéia de poder absoluto de Bodin está ligada à sua crença na necessidade de concentrar o poder totalmente nas mãos do governante; o poder soberano só existe quando o povo se despoja do seu poder soberano e o transfere inteiramente ao governante. Para esse autor, o poder conferido ao soberano é o reflexo do poder divino, e, assim, os súditos devem obediência ao seu soberano.

Bodin entende, ainda, que da obediência devida às leis natural e divina deriva uma terceira regra, pela qual o príncipe soberano é limitado pelos contratos que celebra, seja com seus súditos, seja com estrangeiros, e deve respeitar tais acordos.

Thomas Hobbes

Thomas Hobbes (1588-1679) acredita que os homens, visando obter uma convivência pacífica, submetem-se às leis e a um poder tal que torne a desobediência das normas desvantajosas. Assim, para que a criação do Estado traga segurança, os homens renunciam a seu poder e transferem-no para uma única pessoa, o que lhes incute a obrigação de obedecer a tudo que o detentor do poder ordenar, desde que os demais façam o mesmo. É o chamado "Pacto de União".

Referido Pacto é celebrado entre os súditos e não entre estes e o soberano, o que torna impossível ao soberano quebrar o pacto, já que ele – soberano – não existia antes do acordo e dele não fez parte. "Isso confere ao soberano um poder mais absoluto ainda do que aquele conferido por Bodin, pois a soberania não residiu jamais no povo, ela surge da união do poder que anteriormente se encontrava fragmentado em cada súdito." [1]

Nesse contexto, Hobbes acredita que a soberania é absoluta, uma vez que houve total transferência dos poderes dos súditos para o soberano, além de ilimitada e irrevogável.

Georg Jellinek

Jellinek vê na soberania a propriedade do poder do Estado pela qual ele pode juridicamente se autodeterminar e se auto-obrigar. É a teoria da autolimitação, forma encontrada por ele para justificar a submissão do Estado soberano ao Direito.

Segundo ele, o Estado formula o Direito, mas se acha naturalmente subordinado a ele; o Estado impõe a si próprio a limitação do seu poder pela Constituição e pela produção legislativa.

Para essa corrente jurídica, a soberania

é uma vontade que encontra em si própria um caráter exclusivo de não ser acionada senão por si mesma, uma vontade, portanto, que se autodetermina, estabelecendo, ela própria, a amplitude de sua ação. Tal vontade soberana não pode ser, jamais, comprometida por quaisquer deveres diante de outras vontades. Se tem direito, não tem obrigações. Se as tivesse, estaria subordinada a outra vontade e deixaria de ser soberana. [...] A soberania significa, assim, um poder ilimitado e ilimitável, que tenderia ao absolutismo, já que ninguém o poderia limitar, nem mesmo ele próprio. [2]

Leon Duguit

A teoria de Duguit negava a existência da soberania.

Várias são as críticas feitas por ele à noção de soberania. Com relação aos seus limites, por exemplo, ele entende que há um dilema irresistível: ou o Estado é soberano e só se determina pela sua própria vontade (não há regra imperativa que o limite e, portanto, haverá o esmagamento do indivíduo pelo Estado), ou o Estado está submetido a uma regra imperativa que o limita, e, então, não é soberano.

Duguit também critica a origem da soberania, fazendo a seguinte colocação: se a soberania é uma força suprema, incontestável, só pode ter sido criada por uma força supraterrestre, ou seja, Deus, o que privilegia a onipotência do Estado e facilita-lhe o abuso de poder; por outro lado, se a soberania vem do povo, nada prova que a vontade coletiva naturalmente possa se sobrepor à individual, que a vontade coletiva valha mais que a individual e possa legitimamente se sobrepor, já que, mesmo sendo coletiva, continua sendo vontade humana e não está demonstrado que uma vontade humana pode se impor sobre outra.

Continua o autor dizendo que esse poder de comandar, reconhecido a um grupo majoritário, pode ser uma necessidade de fato, mas não um poder legítimo. [3]

Afirma, ainda, que a soberania decorre da noção de serviço público, ou seja, a força e a moral do Estado decorrem da existência de atividades cuja manutenção é considerada obrigatória para os governos.

Para Duguit, já que o Estado pode formular e substituir o Direito, quando e como bem entender, ele – Estado – não é verdadeiramente limitado pelo Direito, e a teoria da autolimitação, de Jellinek, é um simples jogo de palavras, porque um dever que se cria a si mesmo e do qual se pode fugir quando e como se achar conveniente não é um dever de verdade.

Hermann Heller

Heller acredita que a soberania é um "fenômeno jurídico decorrente do fato de o Estado possuir a última palavra dentro de seu território; assim, o Estado, ao estabelecer o que é de sua competência e aquilo que não lhe cabe decidir, estará em verdade manifestando sua soberania." [4]

Partindo dessa noção, tem-se que jurisdição e soberania são fenômenos muito ligados, pois o monopólio que o Estado tem da coação física e do poder decisório, com relação aos conflitos existentes em seu território, explica o fenômeno da soberania. Deve haver, então, em cada território, uma só unidade decisória, sob pena de, destruindo a unidade do Estado, destruir a ele próprio.

Para Heller, o caráter absoluto da soberania não é abalado pelo direito internacional e pela interdependência entre os Estados soberanos, já que as obrigações resultantes de tratados entre os Estados não descaracterizariam a soberania, mas, ao contrário, a reafirmariam, porque os Estados têm o direito de lutar pela sua conservação. Mas, nesse ponto, permanece a pergunta: se os Estados podem celebrar acordos internacionais com o intuito de garantir sua manutenção, poderão também, em nome de sua conservação, simplesmente deixar de cumprir as obrigações internacionais? [5]

Hans Kelsen

Kelsen defende que

o que faz uma norma superior é o fato de ela ser a fonte na qual as demais se fundam. Assim, se o sistema jurídico é o conjunto de normas, uma norma será soberana, quando ela for a fonte primordial de valor deste sistema. Mas se há vários Estados e há igualdade entre eles, poderia subsistir a idéia de soberania? Poderia a soberania pertencer a vários sujeitos? [6]

Para solucionar esse problema, Kelsen busca algum tipo de identidade entre os diferentes sistemas, utilizando-se dos conceitos de monismo e dualismo.

O sistema jurídico para Kelsen é uno, e por isso é impossível aceitar o dualismo, uma vez que, se aceitar a primazia do direito internacional sobre o direito interno, não existe soberania, mas, por outro lado, se aceitar o contrário, a soberania existe, mas surgem outros tipos de problema. Um deles consiste no fato de que, se o direito interno é superior ao internacional, cada país só será soberano sob sua ótica e, havendo várias ordens de valores igualmente soberanas, torna-se impossível solucionar os conflitos existentes entre normas de ordenamentos diferentes. Por isso Kelsen defendeu o monismo, ou seja, defendeu que a ordem jurídica interna e a ordem jurídica internacional não podem ser separadas, e, em caso de conflito entre normas internas e internacionais, estas últimas devem prevalecer. Nesse sentido, a igualdade entre os Estados se traduz pelo princípio da sua autonomia enquanto sujeitos das relações internacionais. [7]

O Conceito Atual de Soberania: Necessidade ou não de Mudança do Conceito de Soberania, para Adaptar-se ao Mundo Globalizado

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O conceito de soberania sempre causou, e ainda hoje causa, inúmeras divergências.

As definições elaboradas no século XIX, por exemplo, traziam com muito mais freqüência o termo "ilimitada" associado à idéia de soberania. Blackstone definiu soberania como "a autoridade suprema, irresistível, absoluta, ilimitada" [8], e Burgess identificou-a com "o poder originário, absoluto, ilimitado e universal sobre os súditos individualmente e sobre as associações de súditos" [9].

Na atualidade, há os que afirmem que o significado moderno de soberania diz respeito a um "poder independente, supremo, analienável e exclusivo." [10]

Outros afirmam que a soberania é um "poder originário, exclusivo, incondicionado e coativo." [11]

O Black’s Law Dictionary traz a seguinte definição de soberania:

[…] the supreme, absolute and uncontrollable power by which any independent state is governed; supreme political authority; the supreme will; paramount control of the constitution and frame of government and its administration; the self-sufficient source of political power, from which all specific political powers are derived; the international independence of a state, combined with the right and power of regulating its internal affairs without foreign dictation; also a political society, or state, which is sovereign and independent. [12]

Celso Ribeiro Bastos [13], com muita propriedade, assim discorre sobre soberania:

soberania é a qualidade que cerca o poder do Estado. [...] indica o poder de mando em última instância, numa sociedade política. [...] a soberania se constitui na supremacia do poder dentro da ordem interna e no fato de, perante a ordem externa, só encontrar Estados de igual poder. Esta situação é a consagração, na ordem interna, do princípio da subordinação, com o Estado no ápice da pirâmide, e, na ordem internacional, do princípio da coordenação. Ter, portanto, a soberania como fundamento do Estado brasileiro significa que dentro do nosso território não se admitirá força outra que não a dos poderes juridicamente constituídos, não podendo qualquer agente estranho à Nação intervir nos seus negócios.

Uma coisa é certa: boa parte dos autores atuais já fala abertamente sobre a necessidade de se reformular o conceito de soberania, para adaptá-lo à realidade atual, ou, no mínimo, reinterpretá-lo. O que fazer: buscar um novo conceito de soberania ou apenas "moldar" o conceito atual de forma a enxergar nele as características necessárias à soberania nos dias de hoje?

Desde o começo dos tempos, o poder tem se baseado na informação. A difusão de informações outrora estritamente confidenciais para um número imenso de pessoas que antes não tinham acesso às mesmas com freqüência indispõe as estruturas de poder existentes. Da mesma forma que a difusão de conhecimentos médicos rudimentares tirou o poder do feiticeiro tribal, a difusão de informações sobre estilos de vida alternativos em outros países ameaça a validade de algumas doutrinas políticas oficiais, a credibilidade da liderança e a estabilidade do regime. [14]

Essa afirmação de Walter Wriston parece muito apropriada para o momento atual e para a questão da determinação do conceito de soberania. A globalização – e o conseqüente desenvolvimento das telecomunicações e dos transportes convencionais – tem, ao mesmo tempo, unido o mundo numa economia global única e provocado a difusão de todo tipo de informação, com uma rapidez simplesmente impensável há 50 anos.

Parte dessa "informação" que tem circulado mundo afora integra o que se poderia chamar de "produção econômica", ou seja, é fruto do conhecimento e da criação humanos. Os produtos industriais, materiais, palpáveis, estão cedendo parte de seu espaço para as invenções não palpáveis, para a tecnologia, para os chips de computador, enfim, para o capital intelectual.

Em outras palavras, o mundo do trabalho, o qual foi durante séculos dominado pelas forças da indústria, se vê agora diante de produtos e processos que consistem mais em mente do que em matéria.

Em suma,

[...] são produtos e processos mais rápidos e mais móveis, têm menos necessidade de suporte centralizado e são menos dependentes de recursos naturais, de instalações físicas ou de mão-de-obra humana do que os do passado recente e, dessa forma, estão se tornando mais difíceis de serem regulados ou controlados. [15]

Assim, o capital intelectual – a inteligência humana – constitui hoje um mercado extremamente importante e tem se mostrado cada vez mais intolerante com as restrições nacionalistas; "bem mais do que qualquer outra forma de capital, o capital intelectual irá para onde for desejado, permanecerá onde for bem tratado e se multiplicará onde for permitido que ganhe os maiores retornos." [16]

Ora, a soberania sempre esteve, em parte, baseada na idéia de territorialidade, já que é o território um dos elementos formadores do Estado. Os limites de uma soberania freqüentemente têm sido definidos por fronteiras geográficas; o controle do território é, ainda hoje, um dos mais importantes elementos da soberania.

Entretanto, diante dessa nova realidade, na qual a revolução da informação torna o controle territorial mais difícil sob certos aspectos, a natureza e a importância da soberania parecem estar a caminho de sofrer modificações.

Pegue-se como exemplo a questão da guerra. Os governos soberanos têm, ao longo da História, assumido como prerrogativa fundamental a defesa de seus interesses nacionais através da guerra. Também nesse aspecto a tecnologia da informação influi de forma decisiva. Os Estados Unidos sofreram na pele o enorme poder da televisão, durante a guerra do Vietnã, de frustrar o objetivo americano no sudeste asiático, e reviveram o medo de que isso acontecesse novamente agora, durante a guerra do Iraque. Saber que a guerra produz morte violenta é uma coisa; olhar a carnificina de uma batalha, através de um aparelho de televisão, é outra completamente diferente.

Além disso, quando os recursos naturais eram o fator dominante da produção, a conquista e o controle de território pareciam uma maneira confiável de aumentar o poder nacional. Hoje, a conquista de território raramente vale seu custo para a nação, já que "a guerra e os longos anos de pacificação e repressão quase inevitavelmente destroem e dispersam o capital intelectual, e os recursos materiais que poderiam ser obtidos pela conquista estão declinando em seu valor em todos os lugares." [17]

A informação tem, ainda, o poder de fortalecer ou enfraquecer governos. A globalização e a "democratização da informação" criaram para os governos o seguinte dilema: se o governo mantiver o monopólio da informação, manterá também o controle sobre a população, mas se verá alijado do cenário internacional globalizado; por outro lado, se permitir que a população tenha acesso à informação, perderá um de seus mais poderosos instrumentos de controle. As populações dos mais diversos países estão, com cada vez mais freqüência (e algumas delas pela primeira vez), dizendo aos seus governos o que estes devem fazer por elas; tal seria inimaginável num passado em que apenas uma pequena elite oficial controlava o acesso a todas as informações.

Apesar disso, a verdade é que a única forma de se prosperar na economia atual é fazer parte dessa "rede global de economia" criada pela globalização, o que, por sua vez, só pode ser feito se os Estados permitirem a seus cidadãos o livre uso da rede de comunicações mundial, já que é através dessa rede de comunicações que o dinheiro, o capital, parte dos produtos e serviços e do intelecto humano circulam atualmente. Em outras palavras, uma nação só conseguirá prosperar se seu governo ceder o controle sobre o fluxo de informações.

Isso traz uma outra questão, qual seja, no mundo atual tem ficado cada vez mais difícil impor a soberania sobre a informação, porque ela própria e os caminhos pelos quais ela viaja, inclusive o próprio céu, são comumente compartilhados. O soberano pode, a um custo enorme, fechar seus circuitos telefônicos internacionais ou atirar em qualquer um que seja pego com um aparelho de fax, um rádio ou uma antena parabólica; entretanto, ele não pode ter sucesso completo, pois, quando tiver terminado, será o governante de um país pobre e completamente inexpressivo.

Nesse contexto, a tendência atual é no sentido de que o Estado não pode tomar qualquer decisão que lhe aprouver, simplesmente levando em consideração os benefícios que lhe trará; atualmente, ao contrário, o Estado soberano parece dever cada vez mais satisfações no que concerne às suas decisões, satisfações estas devidas não só à sua população, mas também a outros Estados soberanos e a órgãos internacionais. O poder de julgar sem ser julgado – que integra o poder soberano – vem diminuindo consideravelmente.

Na prática, o que vem ocorrendo é que o poder de "julgar sem ser julgado" de um Estado soberano mostra-se diretamente proporcional à sua força no comércio internacional e, para aqueles que não possuem grande força comercial em nível internacional, a única forma de não perecer economicamente é cooperando com outros governos na elaboração de acordos internacionais.

A globalização, que provoca o desenvolvimento da tecnologia, a expansão das comunicações e o aperfeiçoamento do sistema de transportes, "tem permitido a integração de mercados em velocidade avassaladora e tem propiciado uma intensificação da circulação de bens, serviços, tecnologias, capitais, culturas e informações em escala planetária" [18]. Isso tudo provocou, no entender de José Eduardo Faria, "a desconcentração, a descentralização e a fragmentação do poder."

Essa intensificação da interdependência em escala mundial desterritorializa as relações sociais, e a multiplicação de reivindicações por direitos de natureza supranacional relativiza o papel do Estado-nação, que tem como uma de suas características principais a territorialidade. Há algumas décadas, ficava bem mais evidente a situação de um Estado que deixava de ser soberano após ter seu território invadido e ser subjugado por outro Estado. Hoje, para controlar um país, não se tem só a opção de enviar exércitos e ocupar o território, mas, ao contrário, pode-se controlar a economia do país e modificar os valores culturais dos habitantes, através dos meios de comunicação. Dessa forma, a perda ou a mitigação da soberania ocorre de forma muito mais sutil, mais camuflada.

Essas relações cada vez mais estreitas a que a globalização obriga trazem como conseqüência a perda da essência da soberania nacional, e parece que a preservação dessas soberanias – mesmo que o conceito de soberania seja modificado – depende da garantia, pelos Estados, de seu crescimento e fortalecimento político e, sobretudo, econômico.

Para proteger a soberania, Paulo Napoleão Nogueira da Silva defende que o Estado tem a opção de se associar, criando uma entidade ou um contexto jurídico-político que seja forte o suficiente para resistir às investidas desnacionalizadoras. Segundo esse autor, tal associação implicaria em uma

parcial cessão de soberania que aumenta o grau desta em relação a terceiros, isto é, àqueles que não sejam membros da associação. Uma cessão apenas aparente, portanto, entre os que compõem e integram a associação, para expandir o potencial de autoridade nacional de cada um deles em face do ‘exterior’ e, mais exatamente, em face do mercado globalizado.

Nesse sentido, entende o autor, que alguns conceitos tradicionais - dentre eles o de soberania - já parcialmente superados devido à nova realidade universal, devem ser revistos. No caso específico da soberania, ele defende que deve ser agregado um novo elemento, o de sua cessão parcial interna, o qual levará a um aumento do grau de eficácia da soberania do conjunto de países que integram o grupo, em relação ao restante do mundo.

Ainda segundo ele, o mercado globalizado tende a fazer com que as necessidades econômicas impulsionem os sistemas políticos a se organizarem em direção a formas globalizadas ou, no mínimo, "em macroformas estatais". [19]

Essas "associações" entre Estados, como no caso da União Européia, por exemplo, têm forçado os Estados, no entender de Cláudio Finkelstein, a uma

compartilhação das soberanias dos Estados-membros. Isto implicou, no momento considerado oportuno, na cessão de parcelas de soberania dos estados aos órgãos comunitários supranacionais. A soberania compartilhada exprime um desejo e um anseio dos próprios Estados-membros e a parcela desta cedida ao órgão supranacional refletiu as vontades soberanas das nações [...] [20]

Referido autor traz a explicação de Chiarelli para mostrar que o conceito vem se transformando devido ao fato de serem os Estados, atualmente, interdependentes, e, assim sendo, a soberania deixa de ser "absoluta, ilimitada e indivisível – se é que alguma vez o foi..." [21], e completa citando Roy Friede, o qual entende que a soberania é, hoje, estritamente dependente da ordem jurídica internacional e que o Estado deve ser considerado soberano quando estiver diretamente subordinado à ordem jurídica internacional, sem que haja nenhuma outra coletividade entre ele e o direito internacional. [22]

Finkelstein defende, ainda, que a interpretação do conceito de soberania deve sofrer uma flexibilização, para viabilizar o movimento integracionista atual e que as definições clássicas de soberania já não prevalecem no Estado de Direito imposto pela nova ordem mundial.

Ives Gandra da Silva Martins [23] também compartilha da idéia de que o perfil do Estado está mudando. Segundo ele,

[...] do Estado Clássico surgido do constitucionalismo moderno, após as Revoluções Americana e Francesa, para o Estado Plurinacional, que adentrará o século XXI, há um abismo profundo. [...] em outras palavras, o Estado Moderno está, em sua formulação clássica de soberania absoluta, falido, devendo ceder campo a um Estado diferente no futuro. [...] n a União Européia, o Direito comunitário prevalece sobre o Direito local e os poderes comunitários (Tribunal de Luxemburgo, Parlamento Europeu) têm mais força que os poderes locais. Embora no exercício da soberania, as nações aderiram a tal espaço plurinacional, mas, ao fazê-lo, abriram mão de sua soberania ampla para submeterem-se a regras e comandos normativos da comunidade. Perderam, de rigor, sua soberania para manter uma autonomia maior do que nas Federações clássicas, criando uma autêntica Federação de países. [...] nada obstante as dificuldades, é o primeiro passo para a universalização do Estado, que deve ser "Mínimo e Universal". [...] a universalização do Estado, em nível de poderes decisórios, seria compatível com a autonomia dos Estados locais, aceitando-se a Federação Universal de países e eliminando-se a Federação de cada país, que cria um poder intermediário que, muitas vezes, se torna pesado e inútil.

Também Manoel Gonçalves Ferreira Filho [24] defende a idéia da superação do Estado-Nação, com a conseqüente necessidade de associação entre os Estados, e da necessidade de revisão da soberania. Escreve referido autor:

ainda prevalece, nos dias que correm, o modelo de Estado-nação, juridicamente e politicamente construído com base na idéia de soberania. Sem embargo da denúncia dos juristas mais alertas, [...] os Estados contemporâneos ainda se pretendem soberanos. É o caso do Brasil, do qual um dos fundamentos, o primeiro, segundo a Constituição de 1988, art. 1º, I, é a "soberania". Este modelo, surgido no final da Idade Média, está, certamente, com seus dias contados.

Para esse autor, uma real soberania em favor dos Estados-nação é inviável, já que

soberania significa um poder que não reconhece outro a ele superior, seja no plano interestatal (independência), seja no plano interno (supremacia). [...] evidentemente, não no plano do Direito mas sim no das realidade, tal soberania pressupõe uma superioridade de força. Ou, ao menos, uma força suficiente para dissuadir as pretensões estrangeiras, pra impor-se a qualquer grupo interno rival. Ora, se esta supremacia interna é conservada pelos Estados-nação – embora muitos sejam ameaçados por grupos revolucionários, como as guerrilhas marxisantes ou religiosas – no plano externo ela desapareceu, salvo quiçá para os Estados Unidos. Assim, o imperativo de segurança obriga os Estados-nação a agregarem-se em unidades maiores, mais fortes, inclusive para assegurarem a própria sobrevivência. De novo são exemplo disto os Estados-nação europeus. Por tudo isto, parece previsível a superação dos Estados-nação. Não desaparecerão, mas virão a associar-se (ou integrar-se) formando ente novo.

Na opinião de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, ainda, esse "ente novo" serão "Comunidades de Estados", de caráter federalista, que terão como lei suprema não uma Constituição, mas um Tratado, o qual será adotado de acordo com as regras do direito internacional e somente alterável de conformidade com estas.

A associação parece ser uma saída que, na prática, realmente protege os Estados, que, juntos, têm mais poder econômico, militar, político, etc. O problema é que, para associarem-se, os Estados devem abrir mão de uma parte de sua soberania, o que leva, obrigatoriamente, à revisão do conceito atual de soberania, ou, ao menos, a uma reinterpretação, mais adequada à realidade atual.

José Eduardo Faria fala, então, do fim do "monismo jurídico" e o surgimento de uma situação de "pluralismo normativo", ou seja, a existência de ordens jurídicas autônomas num mesmo espaço geopolítico, "intercruzando-se e interpenetrando-se" de modo constante.

Na verdade, a soberania dos outros Estados deve ser também um fator de limitação da soberania, ou seja, o Direito Internacional deve tornar, de certo modo, a soberania do Estado ainda mais relativa.

A vida da comunidade internacional, já foi dito, exige que o Estado moderno se acomode aos supremos interesses da humanidade, sendo obrigado, muitas vezes, em nome da paz e do bem comum internacional, a modificar até mesmo sua própria legislação constitucional. O Estado não pode renegar sua qualidade de participante da atual comunidade de Estados, da mesma forma como a comunidade internacional deve respeitar os direitos dos Estados componentes.

Celso Ribeiro Bastos [25], nesse mesmo sentido, preconiza que

o princípio da soberania é fortemente corroído pelo avanço da ordem jurídica internacional. A todo instante reproduzem-se tratados, conferências, convenções, que procuram traçar as diretrizes para uma convivência pacífica e para uma colaboração permanente entre os Estados. Os múltiplos problemas do mundo moderno, alimentação, energia, poluição, guerra nuclear, repressão ao crime organizado, ultrapassam as barreiras do Estado, impondo-lhe, desde logo, uma interdependência de fato. À pergunta de que se o termo soberania ainda é útil para qualificar o poder ilimitado do Estado, deve ser dada uma resposta condicionada. Estará caduco o conceito se por ele entendermos uma quantidade certa de poder que não possa sofrer contraste ou restrição. Será termo atual se com ele estivermos significando uma qualidade ou atributo da ordem jurídica estatal. Nesta sentido, ela – a ordem interna – ainda é soberana, porque, embora exercida com limitações, não foi igualdade por nenhuma ordem de direito interna, nem superada por nenhuma outra externa.

Outro aspecto que não deve deixar de ser mencionado é o relativo aos limites da soberania, no que se refere a dois assuntos especiais, os quais vêm provocando as maiores interferências na soberania de um Estado: questões relacionadas aos direitos humanos e ao direito ambiental.

Embora o princípio de não-interferência nos assuntos internos de um poder soberano seja um dogma da legislação internacional, sempre que há um problema envolvendo violação de direitos humanos e destruição do meio ambiente, a opinião pública – que tudo acompanha, simultaneamente, pelos meios de comunicação – acaba pressionando os outros países para que interfiram e resolvam o problema. Tem-se, inclusive, questionado o conceito do que seriam "assuntos internos" e vem-se construído um argumento no sentido de que a comunidade internacional tem a "obrigação" de intervir em defesa dos direitos humanos em qualquer lugar do mundo.

Essa idéia é impulsionada, sem dúvida, pela revolução da informação, que traz seres humanos que sofrem a milhares de quilômetros de distância para dentro das salas do mundo todo. Além disso, a poluição não respeita os limites territoriais do Estado, o ecossistema global é interligado, interdependente, e a destruição de uma floresta não prejudica apenas o ecossistema em cujo território está inserido, mas os povos de todo o globo.

Por outro lado, tal tipo de intervenção confronta-se de forma irremediável com o conceito tradicional de soberania, o qual, conforme já foi dito, pressupõe que a última palavra nos assuntos internos seja sempre a do Estado soberano, sem interferência de outros Estados.

Até que ponto um Estado pode agir de modo a prejudicar toda a humanidade, tendo por base sua soberania e a igualdade entre os Estados? É aceitável que um país destrua patrimônio cultural da humanidade, ou coloque em risco a sobrevivência e a qualidade de vida de toas as espécies do planeta, com base nesses princípios? Pode um tratado se opor à ratificação de todo e qualquer tratado que verse sobre questões globais, e com este comportamento, prejudicar a humanidade?

Se as fronteiras são construções artificiais criadas pelos Estados, nos dias de hoje, mais do que nunca, há necessidade de enfrentarmos os desafios decorrentes desse fato e seus reflexos no direito. [26]

Para Paupério [27], "supremo" não quer dizer ilimitado, pois não há nenhum poder que possua tal qualidade, e o conceito de Bodin tornou-se incompatível com o direito público atual e com o caráter jurídico do Estado moderno. Citando Brucculeri, referido autor lembra que o Estado não é o criador do Direito, ele apenas determina-o e aplica-o, não passa de instrumento de revelação das normas jurídicas. Assim, essas normas jurídicas estatais obrigam, da mesma forma, governantes e governados.

Por isso, Paupério concorda com Chimienti, o qual esclarece que a soberania nasce condicionada, tanto aos fatores históricos e sociais, quanto às leis – manifestações de uma vontade geral.

Nesse sentido, e levando em consideração que o Estado, e, por conseguinte, a soberania, devem existir em prol do bem comum, é que se pode partir para uma justificativa das interferências, de um Estado em outro, que vêm acontecendo quando direitos humanos são desrespeitados ou o meio-ambiente é prejudicado.

Não é demais lembrar, entretanto, que se por um lado acontecimentos desse tipo realmente motivam países a "palpitar" nos assuntos de outros países, com o intuito de proteger a humanidade como um todo, na maioria das vezes, além do sofrimento dos povos e do desrespeito à natureza, há também maciços interesses econômicos. Nem é demais mencionar que a capacidade de desrespeitar os direitos humanos e o meio-ambiente parece estar diretamente relacionada ao poderio econômico do país desrespeitador.

Os Estados Unidos, por exemplo, não participam de um acordo internacional básico, no que se refere a meio-ambiente, que é o Protocolo de Kyoto; os Estados Unidos, pátria da democracia e da liberdade, violam direitos básicos da pessoa, quando desrespeitam convenções sobre prisioneiros de guerra, prendem suspeitos de terrorismo – sem provas – e deixam-nos incomunicáveis por meses, sem direito a advogado; os Estados Unidos violam até mesmo direitos de crianças e adolescentes, quando descumprem a Convenção de Haia, sobre adoção internacional, e "devolvem" ao Brasil um adolescente legalmente adotado por americanos, por ter sido condenado por um crime.

Por outro lado, os países economicamente mais fracos sucumbem ao peso de um possível embargo, de uma possível retaliação econômica, e acabam, na prática, tomando decisões "soberanas" que tenham sido "recomendadas" pelos países economicamente dominantes.

Isso tudo sem falar do fato de que, muitas vezes, esse direito de ingerência que parece surgir quando se fala em meio-ambiente e, sobretudo, em direitos humanos, pode gerar – e tem gerado – abusos, fazendo com que alguns Estados assumam o papel de "policiais do globo" [28], para, na realidade, proteger interesses particulares seus, que não têm nada a ver com a prevalência dos direitos humanos.

Diante de tudo isso, boa parte dos autores atuais entende que há necessidade de se repensar o conceito de soberania, para que se possa adequá-lo a um mundo altamente globalizado e interdependente. O que parece ser menos unânime é quanto ao nível em que será realizada essa revisão: se o conceito em si deve ser alterado ou se deve ser feita apenas uma releitura do conceito existente, e mais, no caso de se entender que o conceito deve mesmo ser reformulado, qual seria a melhor forma de fazê-lo, quais elementos deveriam ser acrescentados ou subtraídos.

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Sobre a autora
Raquel Fratantonio Perini

advogada, especialista em Direito das Relações de Consumo pela UNIRP, mestranda em Direito das Relações Econômicas Internacionais pela PUC/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PERINI, Raquel Fratantonio. A soberania e o mundo globalizado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 76, 17 set. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4325. Acesso em: 22 dez. 2024.

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