Autodeterminação na visão da Corte Internacional de Justiça

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Análise das decisões da Corte Internacional de Justiça a respeito da autodeterminação dos povos habitantes do Saara Ocidental e do Kosovo. Ambas decisões moldaram o conceito de autodeterminação na visão dos autores modernos.

CIJ: Pareceres consultivos a respeito da questão do Saara Ocidental

Sabemos que cada vez mais a Corte Internacional de Justiça é chamada para elaborar pareceres concernentes a questões internacionalmente relevantes, especialmente quando tratam da autodeterminação de um povo, que declara sua independência e deseja formar um Estado, pretendendo ser este reconhecido internacionalmente.

O caso em estudo neste capítulo é o do Saara Ocidental, mais especificamente, a região entre Marrocos e Mauritânia, entre Rio de Oro e Sakiet El Hamra. Tal região, sofreu, durante um século, a colonização espanhola, até que, finalmente, em 1974, seguindo a tendência dos países africanos da época, pleiteou sua independência do Estado espanhol, o que levou a um conflito internacional entre o Marrocos e a Mauritânia, ambos os países afirmando que tinham relações históricas com a região e que ela deveria ser anexada a seu território, como parte do projeto de “descolonização” da província.

Não se faz necessário para o estudo proposto aqui pormenorizar as discussões iniciais de tal parecer, decidindo se havia competência dos Estados envolvidos e da Corte em se manifestar no presente caso, ficou decidido desde o princípio, que as perguntas que deveriam ser respondidas pelo parecer eram duas:

Questão I: Seria o Saara Ocidental, ao tempo da colonização espanhola, terra nullius?

Primeiramente, para responder a esta questão foi necessário determinar quando se iniciava tal colonização. O ano de 1884 foi considerado a data inicial, quando a Espanha ocupou o território, o transformando num “protetorado”.

Para que uma ocupação territorial ser válida, a condição de terra nullius é essencial, ou seja, na região não deve haver povos ou tribos com organização política e social definidas, pois, se houvesse, não seria terra nullius, e outra discussão deveria se iniciar.

As informações que a Corte possuía durante a confecção do parecer levaram a conclusão que ao tempo da colonização espanhola da região, esta era ocupada por populações, que mesmo nômades, eram social e politicamente organizadas em tribos, sob comando de chefes aptos em representa-las. Além disso, a Espanha não se prontificou a garantir sua soberania sobre o território, o que restou claro através da análise do Decreto Real de 1884, que declarava que o local estava sob proteção da Corte Espanhola por meio de acordos feitos com os chefes locais, afastando completamente a hipótese de ocupação de uma terra nullius.

Desta maneira, a Corte deveria prosseguir para a segunda questão, pois a primeira já estava respondida negativamente; a terra ocupada pela Espanha não era terra nullius, portanto, a independência dos povos locais quanto ao Estado espanhol era claramente verificada.

Questão II: Quais os vínculos jurídicos entre esse território com o Reino da Marrocos e a entidade da Mauritânia?

Os vínculos jurídicos a serem analisados no caso seriam as relações jurídicas que pudessem influenciar no processo de descolonização do Saara Ocidental. A Corte não poderia considerar apenas os fatores jurídicos ligados à posse da terra, desconsiderando os povos que viviam no local, pois, assim como já discutido na questão supracitada, estes eram organizados social e politicamente, mesmo sendo nômades, e se locomovendo desde o sul de Marrocos até parte do atual território da Mauritânia, inclusive adentrando, eventualmente, em territórios de outros Estados.

O Marrocos apresentou vínculos jurídicos que indicavam uma relação de posse imemorial do território e exercício ininterrupto de autoridade. Na opinião da Corte, deveria ser comprovado o exercício desta autoridade no momento imediatamente anterior e durante a colonização espanhola. O Estado marroquino levantou o fato que durante tal período sua organização era peculiar, eram um Estado Islâmico e deviam obediência ao Sultão (Bled Makhzen), porém algumas regiões e seus sheiks possuíam autoridade sobre tribos que não o obedeciam (Bled Siba), uma dessas regiões era a do Saara Ocidental.

Além de alguns documentos internos de cobrança de impostos e movimentos militares na região, Marrocos também mostrou documentos e tratados internacionais com países europeus, como a Espanha, Grã-Bretanha e Alemanha, que reconheciam a autoridade marroquina na região em discussão.

Todavia, a Corte, mesmo a luz destes tratados internacionais, não concluiu que o Estado marroquino, exercia, com suas particularidades, naquela época, atividade estatal efetiva e exclusiva no Saara Ocidental. No entanto, algumas tribos da região mantinham uma relação de subordinação ao Sultão marroquino, portanto, foi aceito pela Corte que havia influência de Marrocos no Saara Ocidental, mesmo este não sendo parte efetiva deste Estado.

Ademais, com a oitiva de parte da entidade da Mauritânia, foi relembrada a Resolução 3292 da Assembléia Geral da ONU, definindo a “entidade” da Mauritânia como uma entidade cultural, geográfica e social, base sobre a qual a República Islâmica da Mauritânia foi criada. De acordo com a Mauritânia, aquela entidade, no período relevante para o parecer, era o Bilad Shinguitti, um agrupamento humano caracterizado por um idioma, modo de vida, religião e ordenamento jurídico comum, possuindo duas formas de autoridade política: emirados e grupos tribais.

Reconhecendo expressamente que esses emirados e tribos não constituíam um Estado, a Mauritânia sugeriu que os conceitos de “nação” e “povo” definiriam melhor as populações residentes no Shinguitti naquele período.

O território atualmente sob colonização espanhola era parte indistinguível do República Islâmica da Mauritânia, que tinha seu território desde o Senegal até o Sakiet El Hamra.

As informações que a Corte possuía demonstravam que os povos nômades da região e o povo da República Islâmica da Mauritânia tinham semelhanças em várias áreas, racial, linguística, religiosa, cultural e econômica, no entanto, os emirados e tribos locais eram independentes uns dos outros, não possuindo instituições nem órgãos comuns.

Destarte, a Corte concluiu que, durante a colonização espanhola, não havia qualquer relação contínua de soberania, unidade territorial, nem mesmo de uma simples relação de inclusão em uma mesma entidade jurídica entre a entidade Mauritânia e o Saara Ocidental.

Entretanto, estas duas conclusões deixam claro que, mesmo havendo relações territoriais de Mauritânia e Marrocos com a região, estes Estados não exerciam sua soberania nem autoridade no local, tendo em vista que as tribos e emirados locais tinham sua independência para transitar e efetivamente controlar a região, se valendo de acordos com ambos os Estados que nunca demonstraram qualquer controle sobre estas tribos.

Ressalta-se que, ao final, foi constatado que Mauritânia e Marrocos não possuíam qualquer autoridade ou soberania na região, contudo, insistiam que uma parte ao norte e uma parte ao sul eram parte essencial de seu território, porém, algumas dessas requisições se justapunham, o que, para a Corte, era mais uma prova clara de que as relações territoriais do Saara Ocidental eram de difícil decisão, pois, efetivamente, as populações locais eram independentes da autoridade de ambos os Estados.

Ao final das duas questões, ficou decidido que o território entre o Rio de Oro e Sakiet El Hamra não eram terra nullius à época da ocupação espanhola, assim como, apesar de haverem relações jurídicas de Mauritânia e Marrocos com os povos da região, nenhum dos dois Estados impunha sua soberania na região.

Afinal, chegamos à conclusão que a Corte votou pela autodeterminação e expressão livre e autêntica da vontade das populações do território. Os fatores determinantes para que a autodeterminação do Saara Ocidental fosse comprovada foram:

  1. A existência de povos, populações e emirados na região à época da colonização espanhola, impossibilitando que fosse terra nullius;
  2. A falta de exercício da soberania de Marrocos na região, pois esta fazia parte dos emirados que não respeitavam e obedeciam ao Sultão àquela época;
  3. A completa falta de relação de subordinação ou mesmo de semelhança de entidades jurídicas entre a Mauritânia e o Saara Ocidental, o que impossibilitava que a Mauritânia exercesse sua soberania e controle na região.

Com estes três fatores ocorrendo simultaneamente, a decisão da Corte não poderia ter sido diferente, pois, seguindo a tendência moderna de definição da autodeterminação dos povos, fica claro, com as provas e documentos apresentados, que a soberania local era exercida pelos povos nômades. Frise-se que mesmo que à época dos fatos não formassem o que chamamos de Estado moderno, eram um povo uno e livre – o que justifica sua independência em seu processo de descolonização e a criação do Estado do Saara Ocidental.

XX – A Autoproclamada Independência do Kosovo

A fim de ilustrar o conceito de autodeterminação na atualidade, caberá a este capítulo analisar o Parecer da Corte Internacional de Justiça (CIJ) acerca da declaração unilateral da independência do Kosovo em 17 de fevereiro de 2008.

"Nós, os líderes democraticamente eleitos de nossas pessoas, declaramos o Kosovo por este meio para ser um Estado independente e soberano. Esta declaração reflete o testamento de nossas pessoas e é por completo acordo com as recomendações do Enviado Especial da ONU Martti Ahtisaari e a Proposta Inclusiva dele para a Determinação do Estado do Kosovo.

Nós declaramos o Kosovo para ser uma república democrática, secular e multiétnica, guiada pelos princípios de tratamento e proteção igual para todos perante a lei."

Em 15 de agosto de 2008, a Assembleia Geral da ONU requereu à CIJ um Parecer (Advisory Opinion) a respeito da seguinte questão: “A declaração unilateral de independência pelas Instituições Provisórias do Auto Governo do Kosovo está de acordo com o Direito Internacional?[1]”.

Primeiramente, deve-se levar em consideração o precedente histórico que levou a Declaração de independência do Kosovo em 2008. Desde a conquista do território pelo Império Otomano, Kosovo passou desenvolver uma população mista entre cristãos e mulçumanos. Em 1912, Kosovo passou a ser território da Sérvia e Montenegro, durante a Segunda Guerra Mundial foi anexado a Albânia e somente ao término da Guerra voltou ao controle sérvio.

Em 1945 houve o estabelecimento da República Socialista Federal da Iugoslávia e o Kosovo se tornou uma região autônoma da Sérvia. Em 1990, após uma drástica retomada da autonomia concedida, membros albaneses da Assembleia do Kosovo votaram para o declarar como um Estado independente, entretanto tal ato somente foi reconhecido pela Albânia.

 Durante as Guerras Iugoslavas o Kosovo se manteve pacífico, entretanto, a partir de 1996, passou a conflitar com as forças de segurança da Sérvia e da Iugoslávia através do chamado Exército de Libertação do Kosovo. Por conta do agravamento desse quadro, a Organização do Atlântico Norte (OTAN) ameaçou interferir militarmente caso não fosse introduzida uma força de pacificação internacional e, por fim, o governo do Kosovo passou a ser da Organização das Nações Unidas (ONU).

Somente após quase 10 anos sob administração da ONU, os membros da reunião da Assembleia do Kosovo em Pristina, capital do Kosovo, elaboraram a Declaração de Independência.

A luz de tal precedência histórica de Kosovo, a CIJ determinou a conformidade da declaração de independência do país utilizando-se de dois critérios, sendo estes a conformidade com o Direito Internacional Geral e a Resolução 1244 do Conselho de Segurança a qual estabeleceu a Missão de Administração Interina das Nações Unidas no Kosovo (UNMIK), entidade criadora de instituições de autogoverno locais e do quadro político-legal firmado.

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Com relação ao primeiro parâmetro, a CIJ observa que, até o século XX, diversas declarações de independência foram realizadas, sendo que frequentemente tais declarações eram rigidamente combatidas pelo Estado do qual a independência estava sendo declarada Não há, no Direito Internacional, regra que proíba tais independências:

The practice of States in these latter cases…does not point to the emergency in international law of a new rule prohibiting the making of a declaration of independence in such cases”.[2]

Também foi alegado que a proibição da Declaração está relacionada ao Princípio da Integridade Territorial, mencionado na Resolução 1244. A CIJ reafirma o valor de tal Princípio, expresso na Resolução 2625, no Ato Final da Conferência de Helsinki de 1970. Todavia, ressalta que, nesses documentos, é estabelecido o princípio de que Estados não interferiram na integridade territorial ou independência política de outros Estados. Portanto, pode-se dizer que tal princípio é restrito as relações entre Estados sendo que tal não se aplica ao presente caso.

Por fim, é refutada a tese daqueles que citam antigas Resoluções do Conselho condenando outras declarações de independência unilaterais, afirmando que, em tais ocasiões, não houve condenação devido à unilateralidade por si só, mas devido à relação que tal declaração tinha com violações a princípios peremptórios do Direito Internacional.

Por conta do mencionado, a CIJ deduz que a Declaração de Independência do Kosovo não violou o Direito Internacional Geral.

A parte final da argumentação trata da violação da Resolução 1244 do Conselho de Segurança. Para que este aspecto seja analisado, devem-se levar em consideração alguns fatos. A Resolução instituiu, visando à estabilização governamental do Kosovo, a UNMIK que, ao desenvolver as Instituições de Autogoverno (Assembleia do Kosovo), determinou as relações destas com a administração civil da ONU. Tal teia de relações foi chamada de Constitutional Framework. A CIJ admite que, sob os termos do Framework, a autoridade última era atribuída ao representante do Secretário-Geral da ONU.

Por conseguinte, a Declaração de Independência feita pela Assembleia não seria teoricamente legal, pois somente o Conselho teria poder para encerrar o regime legal estabelecido pela Resolução. Porém, contra este argumento, alegou-se que o Framework é parte do direito interno do Kosovo e, portanto, não poderia ser aplicado pela CIJ em sua decisão. A maioria contesta, afirmando que, como o Framework é derivado da Resolução, que é norma de Direito Internacional, ele também possui um caráter legal internacional, podendo ser considerado no caso:

UNMIK regulations, including (…) the Constitutional Framework, are adopted…on the basis of the authority derived from Security Council resolution 1244 (1999) (…) and thus ultimately from the United Nations Charter (…). In that sense it (…) possesses an international legal character. (Kosovo AO, §88)

A CIJ alegou que o Framework tinha como intenção o estabelecimento de um regime interino e provisório no Kosovo, de modo que a violência e o caos social na região pudesse ser diminuído de forma rápida.

A Resolução não reservou para o Conselho de Segurança o poder de determinar o estado final do Kosovo e, por isso, deduz-se que a Declaração de Independência não violou a Resolução 1244, pois ambas agem em planos diferentes: a Declaração é uma tentativa de determinar o futuro do Kosovo, enquanto a Resolução não pode ser considerada como tal.

Por fim, e em consideração aos fatos mencionados, a CIJ concluiu, no último parágrafo de seu Parecer, que a Declaração de Independência do Kosovo de 17 de fevereiro de 2008 não violou o Direito Internacional Geral, a Resolução 1244 do Conselho de Segurança da ONU, nem o Constitutional Framework.

Fontes

“Accordance with international law of the unilateral Declaration of Independence in respect of Kosovo - Advisory Opinion of 22 july 2010” (disponível em: http://www.icj-cij.org/docket/files/141/15987.pdf)

“Kosovo Declares Its Independence From Serbia” (disponível em: http://www.nytimes.com/2008/02/18/world/europe/18kosovo.html?_r=2&hp=&oref=slogin&pagewanted=all&)

“Kosovo MPs proclaim Independence” (disponível em: http://news.bbc.co.uk/2/hi/europe/7249034.stm)


[1] Tradução livre

[2]  Advisory Opinion of 22 July 2010 (Kosovo), §79.

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Sobre os autores
Camila Faria Nagano

Graduanda em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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