Acerca do reconhecimento da imprescritibilidade do crime de injúria racial: acertou o Superior Tribunal

26/10/2015 às 12:55
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O presente texto pretende fomentar a continuidade da discussão e reflexão sobre a recente decisão do STJ que reconheceu a imprescritibilidade do crime de injúria racial. Como uma resposta à crítica do prof. Lênio Streck, conclui pelo acerto da decisão

Lênio Streck criticou [1], recentemente, decisão do STJ [2] que entende estar a injúria racial abrangida pela expressão constitucional "prática de racismo", prevista no art. 5º, inciso XLI, segundo a qual a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei. Para o articulista, uma injúria racial não configura "prática de racismo", e mais: a decisão configuraria "interpretação extensiva" – segundo ele, vedada em matéria penal – e intolerável ativismo judicial. Em termos diretos: a crítica pretende empurrar goela abaixo que um xingamento racista não configura uma prática racista. O texto baseia-se na ideia de equiparação da injúria aos crimes previstos na lei 7.716/89, uma equiparação horizontal consistente na extensão do rol de crimes daquela lei. Na verdade, a imprescritibilidade da injúria racial é resultado de relação vertical, diretamente decorrente do texto constitucional, daí por que é equivocado alegar interpretação extensiva, analogia ou ampliação ilegal do rol dos crimes previstos na lei 7.716/89, pois para fins de reconhecimento da imprescritibilidade da injúria racial, isso é desnecessário.

Inicialmente, forçoso esclarecer que, assim como Lênio, muitos são induzidos a erro sobre o que efetivamente foi decidido. Não houve na decisão qualquer alteração na imputação do crime de injúria, nem uma equiparação via interpretação com os tipos da lei dos crimes de racismos. No caso concreto, o agente foi acusado, julgado e condenado pelo mesmo crime anteriormente previsto em lei: a injúria racial. Do contrário, haveria violação à correlação entre denúncia e sentença, o que não é o caso.

Com a decisão, ademais, permanece a distinção entre injúria racial, como ofensa individual; e racismo, ofensa genérica, prevista no art. 20 da lei especial. Isto porque essa distinção é fruto de resolução de conflito aparente de normas infraconstitucionais que nada tem a ver com o conceito amplo previsto no texto constitucional abrangente de toda forma de "prática de racismo". Não é porque diferenciamos, como resultado da resolução de uma antinomia legal, o art. 20 da lei 7.716/89 e o §3º do art. 140 do Código penal, que seja lícito ao intérprete diferenciar um caso como “prática de racismo” e o outro, não, para fins de tratamento constitucional mais gravoso, pois o texto da Carta Magna não faz tal distinção. São ambos, tanto a injúria racista como a discriminação racista, práticas de racismo!

O tratamento mais gravoso ao que venha a lei a definir como crime decorre do próprio comando constitucional, sendo de plena eficácia o conteúdo normativo determinador da imprescritibilidade. O que precisa ser determinado são os tipos penais, "nos termos da lei". Temos, para tanto, a Lei nº 7.716/89, alterada pela Lei 9.459/97, que acrescenta a qualificadora racial à injúria (tipo derivado), no Código Penal, e que altera a legislação especial sobre racismo. Os crimes estão, portanto, determinados!

Comentando a decisão, Lênio alega que: "Com efeito, o desembargador convocado Ericson Maranho concluiu que a injúria racial é imprescritível, uma vez que ela "também traduz preconceito de cor" e soma-se àqueles definidos na Lei 7.716/89, 'cujo rol não é taxativo'". Trata-se de um mal entendido causado pela referência à lei 7.716/89. Ora, o que se disse foi que a injúria racial pertence ao amplo conceito constitucional, e não que se integra ao rol da lei especial (porque isso é irrelevante). Qualquer prática de racismo, esteja em lei especial ou incluída no Código Penal, desde que configure "prática de racismo", automaticamente se torna imprescritível, pois a determinação é de eficácia plena e advinda da Lei Maior.

Então tece Lênio a seguinte crítica em artigo intitulado: "STJ faz interpretação extensiva em Direito Penal contra o réu":

"O direito penal não permite que se crie um rol extensivo, pela simples razão de que o cidadão deve saber, antes, aquilo pelo qual pode ser punido e o alcance da punição. Qual é o limite desse rol não taxativo, isto é, desse rol extensivo? Extensivo ao infinito? Uma anedota pode ser um crime imprescritível, mesmo enquadrado como injúria racial?" (Streck)

É claro que o agente precisa saber, antes, pelo que será punido e o alcance da punição. Mas a injúria está prevista como crime, e a qualificadora, pelo elemento racial, está prevista e taxada legalmente como crime. Não há, no caso, qualquer ofensa à legalidade. A interpretação dada pelo STJ apenas diz que aquele tipo penal, que inclusive é apelidado de "injúria racial", é uma "prática de racismo" e que, portanto, também deve receber o tratamento determinado pela constituição da República, que não fez qualquer distinção ou restrição. A única salvação para a crítica é alegar excesso de rigidez no tratamento à prática do racismo, mas tergiversar em cima do comando constitucional é negar vigência à carta da República Federativa do Brasil! 

Ora, a lei 7.716/89 foi alterada pela lei 9459/97, justamente modificando parte daquela norma especial (arts. 1º e 20 da Lei) e acrescentando o §3º ao art. 140 do Código Penal, criando a figura qualificada de injúria racial onde ela deve estar: como qualificadora da injúria, e não repetidamente em outra legislação. Assim, a lei dos crimes de racismo não ampliou seu rol no mesmo diploma legal, mas ela própria criou a figura da injúria racista como qualificadora, ampliando, em diploma distinto, o rol dos crimes de racismo. A crítica, ademais, partiria da equivocada ideia de que um delito com vítima determinada seria menos grave do que um crime vago, cujas vítimas são difusas.

Mas acima desses argumentos, é preciso lembrar que, ao contrário do que pensa e afirma Lênio, a interpretação extensiva é majoritariamente permitida em matéria penal. Veja-se por exemplo, tanto Hans Welzel como Roxin [3], que tratando do tema observa:

"Por lo demás, según el fin de la ley la interpretación puede ser tanto restrictiva como extensiva. Por el contrario, una aplicación del Derecho al margen del marco de la regulación legal (praeter legem), o sea una interpretación que ya no esté cubierta por el sentido literal posible de un precepto penal, constituye una analogía fundamentadora de la pena y por tanto es inadmisible."

Entre nós, penalistas do quilate de Aníbal Bruno, Magalhães Noronha e Heleno Cláudio Fragoso já há muito sustentavam a superação do dógma da interpretação sempre restritiva em matéria penal, pois conforme este último [4]:

"A interpretação extensiva é perfeitamente admissível em relação à lei penal, ao contrário do que afirmavam autores antigos. Nestes casos não falta a disciplina normativa do fato, mas apenas uma correta expressão verbal. Há interpretação extensiva quando se aplica o chamado argumento a fortiori, que são casos nos quais a vontade da lei se aplica com maior razão."

Evidentemente, como quase tudo em Direito, é possível encontrar na doutrina quem repudie a etiqueta “interpretação extensiva”, como faz, entre outros, Cirino dos Santos [5]. No entanto, o que há de relevante no debate dogmático referente à interpretação penal não é decidir pela aceitação ou não de uma etiqueta, pois é possível perceber que a diversidade de opiniões sobre a aceitação da chamada interpretação extensiva reside no fato da multiplicidade de significados que a ela seja atribuída [6]. Numa outra nomenclatura, por exemplo, reconhecendo a possibilidade de analogia como sinônimo do próprio ato interpretativo, o que se distingue é analogia dentro dos limites semânticos do texto (permitida) e, de outro lado, analogia criadora de direito novo, fora dos limites do texto (e portanto proibida). A expressão “interpretação extensiva”, ensina Jimenez de Asua [7] “existe cuando el intérprete cree que se debe ampliar el alcance de las palavras legales para que la letra corresponsa al espíritu y voluntad del texto”, em si não diz muito sobre as fronteiras da interpretação do penalista; o decisivo é identificar critérios balizadores de uma ampliação dentro ou fora dos limites textuais. O trabalho de um penalista consiste, pois, em identificar, no caso concreto, aquilo que estaria dentro ou fora das cercas textuais, a fim de verificar a compatibilidade da interpretação (ou analogia) com o princípio da legalidade. A interpretação não pode ser, como bem esclarece Aníbal Bruno [8], “por orientação predeterminada, severa ou benigna, mas correta ou errônea, conforme traduza, com fidelidade ou não, a vontade da lei”. Acertou, portanto, o STJ, pois nem de longe realizou qualquer forma de criação de norma fora dos limites do texto, se bem compreendida. É perfeitamente válida a subsunção de uma ofensa racista tipificada como crime ao conceito de “prática de racismo”, previsto na Constituição Federal.

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Lamentavelmente, no Brasil, a crítica faz crítica por criticar, muitas vezes de forma que não se dá ao trabalho de conhecer o objeto impugnado. Faz-se uso de espantalhos linguísticos para rotular uma decisão ou posição como bruxas-jurídicas, com artigos que serviriam para criticar qualquer argumento lançado. Isso é analogia, diz a crítica!; interpretação extensiva; “garantismo hiperbólico”; “punitivismo”, “direito penal do inimigo” (sem critérios de determinação), entre outros símbolos dependentes de argumentação concreta! Carecemos de quem se dê ao trabalho de distinguir no caso concreto, quais os critérios para verificarmos que se trata de uma interpretação extensiva (permitida) ou analogia (vedada), como criação de direito novo fora dos limites do texto.

A decisão do STJ poderia receber diversas outras críticas sintonizadas com grandes debates dogmáticos em matéria penal. Por exemplo, é possível questionar se a decisão se legitima como entendimento jurisprudencial num caso concreto, possivelmente ofendendo os princípios da segurança jurídica, proibição de surpresa ou retroatividade de interpretação jurisprudencial contra o réu. É de se questionar, também, embora como um problema mais simples, o conflito entre a imprescritibilidade de um crime regido por norma infraconstitucional como de ação penal sujeita à representação - portanto, passível de decadência. São temas realmente problemáticos que os penalistas precisam enfrentar sem palavreado semiextraterrestre, sem equívocos fundamentais e com a devida e correta compreensão das decisões objeto de discussão.

Mas isso é um outro tema. 


NOTAS
            ___________________

[1] Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-out-22/senso-incomum-stj-faz-interpretacao-extensiva-direito-penal-reu/c/1>> acessado em 25.10.2015

[2] No que tange a este artigo: “4. Não cabe, na via do recurso especial, análise de suposta violação de artigos da Constituição Federal. De acordo com o magistério de Guilherme de Souza Nucci, com o advento da Lei n.9459/97, introduzindo a denominada injúria racial, criou-se mais um delito no cenário do racismo, portanto, imprescritível, inafiançável, sujeito à pena de reclusão.” (AgRg no AREsp 686965 / DF, rel. min Ericson Maranho.)

[3] ROXIN, Claus. Derecho Penal - parte general. T.1., 1997. p. 149; No mesmo sentido, Welzel: “También es admitida una interpretación extensiva, en cuanto hace valer, por encima de una interpretación demasiado estrecha de las palabras, el sentido razonable del tipo; es inadmisible cuando con ella se llega a abarcar casos no compreendidos por el sentido declarado del tipo.” (WELZEL, Hans. Derecho Penal: parte general. trad. Fotán Balestra. Buenos Aires: Roque Depalma, 1956.  p .28)

[4] FRAGOSO, Heleno claudio. Lições de Direito Penal: parte geral. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986. V. também Régis Prado: “No tocante à interpretação extensiva, é preciso registrar que se aplica a todas as espécies de normas, inclusive às de caráter penal. Esse método nada mais é do que uma reintegração do pensamento legislativo, visto que as omissões dos textos legais ‘nem sempre significam exclusão deliberada, mas pode tratar-se de silêncio involuntário, por imprecisão de linguagem.” (PRADO, Luiz Régis. Curso de direito penal brasileiro : parte geral. 9 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 192); e Aníbal Bruno: “Admite-se a interpretação extensiva, como a restritiva. A interpretação extensiva é interpretação, não analogia. Aplica-se também às leis penais, mesmo em sentido estrito, se essa extensão é que está conforme com a vontade descoberta na lei. Desse modo, a moderna Hermenêutica pôs fim ao antigo princípio de que em relação às normas incriminadoras só é legítima a interpretação restritiva.” (BRUNO, Aníbal. Direito Penal, parte geral, t. 1. Introdução, norma penal, fato punível. 3 ed. Rio de janeiro: Forense, 1978. p. 221); E Noronha (NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. 31 ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 72)

[5] SANTOS, Cirino dos. Direito Penal: parte geral. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2008. p.63)

[6] V. SANTOS, Cirino dos. Direito Penal: parte geral. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2008. p.66;

[7] ASÚA, Luis Jimenez. Principios de Derecho penal, La ley y el delito. Buenos Aires: Abeledo-perrot; Editorial sulamericana. p.117)

[8] BRUNO, Aníbal. Direito Penal, parte geral, t. 1. Introdução, norma penal, fato punível. 3 ed. Rio de janeiro: Forense, 1978. p. 221) 

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Sobre o autor
Felinto Martins Filho

Advogado criminalista. Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pela PUC-SP.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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