Capa da publicação O falido modelo de política criminal: por onde anda o direito penal?
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Por onde anda o direito penal?

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13/12/2017 às 14:40
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Sistema penitenciário, a busca por soluções alternativas

A sociedade, não sem razão, se cansou daquilo que só parece exequível dentro do mundo abstrato de juristas e congressistas; por isso mesmo, como resultado do dever oblíquo de transparência daqueles que detém o poder, o debate deve ser aberto a todos. Salo de Carvalho[31] aponta uma total inversão de valores ao se tentar diagnosticar as causas do sistema penitenciário atual, e defende que um discurso moralista falacioso está em voga há algum tempo, sendo retroalimentado por magistrados, tanto quanto a própria sociedade, preferindo negar sua parcela de responsabilidade. Se cada processo custa em média dois mil reais, sem contabilizar custos agregados (Polícia, Defensoria, Ministério Público, etc.), não há como minimizar a responsabilidade da profissão[32]. A ausência de simetria por todos os ângulos do processo penal, à revelia da Carta da República, não poucas vezes funciona também como justificativa para a supressão “legítima” de direitos e garantias individuais fundamentais, sob o pretexto de se estar protegendo um bem maior: a própria sociedade. Não há dúvidas que para lutar contra isso será preciso sofisticar os mecanismos de responsabilização do Estado, a despeito do que vem demonstrando a jurisprudência[33], e a exemplo do que já ocorre com o orçamento público – podendo ser idealizada uma espécie de plano plurianual de metas, que serão respeitadas independentemente de quem esteja no poder.

“[...] fico pensando se ainda temos chance de concretizar uma democracia. [...] mandamos gente para estudar no exterior (como nenhum país do mundo) [...]. Escrevemos milhares de livros sobre a dignidade da pessoa humana. Sobre o devido processo legal. Sobre tratados internacionais. Sobre a luta contra a tortura. E somos atropelados pelo primeiro presídio da esquina [...]. Nossas autoridades — e aqui não escapa ninguém — poderiam ao menos serem utilitaristas ou fazer uma análise econômica. Não precisa(ria)m ser humanitários. Pode(ria)m até odiar a população carcerária. O que eu pediria é que sejam “espertos economicamente”. Isto porque é um péssimo negócio gastar mais de R$ 2 mil por mês e ter certeza que o preso sairá pior do que entrou. [...] A verdade é que no presídio se combinam as nossas misérias moral, política e econômica. O presídio não deixa de ser, assim, um espelho da sociedade”.[34]

Há, porém, políticas de sucesso. Nos Estados Unidos ganha notoriedade um programa de trabalho prisional em parceria com a indústria norte-americana, que apesar de trazer outras discussões ao cenário jurídico-político, sugere algumas reflexões. O crescimento dessa política de trabalho tem conquistado os americanos em função do alto custo do sistema carcerário – estima-se que cada preso custe entre US$ 50 mil e US$ 60 mil ao ano, o mesmo que um bombeiro ou professor[35]. Já na Florida, as tradicionais condenações em casos relacionados às drogas deram lugar aos programas alternativos de reabilitação em clínicas especializadas[36]; pode não parecer, mas além de reduzir a criminalidade, custa muito menos ao Estado, porque apesar da academia não ter conseguido comprovar sua relação com a pobreza numa proporção estatística fixa, o modelo atual de combate às drogas só serve para fomentar grupos de jovens socialmente menos favorecidos a serem seduzidos por subculturas criminosas, em resposta inversa à exclusão e ao estigma.

Um dos erros, segundo trabalho da London School of Economics and Political Science[37], seria não considerar a legalização da maconha em regime de monopólio estatal sem fins lucrativos como hipótese viável. Para Roberto Tardelli, aliás, descriminalizar também é uma forma de combate – os tratamentos de reabilitação em clínicas especializadas custam caro, por isso, na opinião dele, o combate às drogas deve ser visto como questão de saúde pública, e não apenas um crime[38]. Ademais, no caso brasileiro a situação é ainda mais grave, porque a própria Constituição proíbe que menores de 14 anos trabalhem, enquanto o tráfico, por outro lado, não.  A regra constitucional de finalidade protetiva passa a funcionar como incentivo ilegal e invisível.

A grande resistência social contra ex-condenados mostra indispensável que se volte a atenção para programas alternativos de reinserção. Uma alternativa mais viável talvez fosse estabelecer uma parceria com o setor privado, que os contrataria para trabalhar e, em contrapartida, receberia isenções fiscais.

A carência de políticas criminais é nítida. Há uma grande distância entre a porta de entrada e a de saída. É preciso readequar a execução penal[39], a fim de num futuro não tão distante começar a tratar o problema da segurança pública com a seriedade que merece. Soluções alternativas que custem menos tempo e dinheiro, sem perder de vista o correto enfoque punitivo para cada tipo de crime e criminoso, são essenciais à sobrevivência do sistema. Afinal, a medida decorre também da própria força normativa da Constituição, como preleciona Konrad Hesse[40], indicando uma necessidade inafastável de se garantir a consolidação da ideologia constitucional por meio de uma integração harmônica entre as instituições, contribuindo para a construção de um país melhor, que não enxerga diferenças no que tange ao respeito à dignidade da pessoa humana. Para tanto, buscou-se inspiração também na ideia da sociedade aberta dos intérpretes da constituição, de Peter Häberle[41], a fim de tornar, tanto quanto possível, mais democrática, representativa e plural a interpretação da Constituição e da lei.


CONCLUSÃO

O mundo viu o nazismo, o facismo e regimes ditatoriais de todo tipo, mas talvez nada se equipare a realidade tão destoante de uma prisão brasileira em pleno século XXI, exemplo vindo paradoxalmente de uma sociedade que se preocupou tanto em garantir direitos humanos a nível constitucional. O distanciamento da filosofia e da sociologia na Itália de outrora, a despreocupação de juristas com a aplicação de normas em função do dinamismo social atual, a percepção acrítica das estruturas do Estado de Defesa Social são indicadores de uma evolução prática irresponsável do direito penal.

Não foi o objetivo deste trabalho esgotar o tema – embora o paradoxo da resposta correta no Direito esteja sempre em mente –, pretendeu-se oferecer uma visão panorâmica e apontar a direção em se deve concentrar esforços. Afinal, faz parte do núcleo mais nobre do Direito a certeza de que não há uma única resposta correta, e as investigações do sistema devem conduzir a um processo contínuo de mutação. É dever de todos verificar quais seriam as limitações de nosso tempo para apresentar soluções concretas as perguntas corretas.

Conclui-se com o presente trabalho que o direito penal é um direito desigual por excelência[42], não protege igualmente a todos, e quando protege, pune de modo fragmentário e desproporcional, estimulando a reincidência. O sistema encontra-se alicerçado em uma perspectiva falaciosa social excludente, justificada pelo Estado de Defesa Social. A realidade social, os mecanismos de controle do desvio e o processo de criminalização devem subir a um novo patamar de relevância para se passar a adotar uma nova forma de pensar, uma em que o status de criminoso não é atribuído segundo raça ou classe social.

A experiência brasileira mostra de forma evidente também que punir não basta, não quando se depreende como objetivo último da ideologia legitimadora do conceito de pena uma habilidade quase automática de gerar em qualquer indivíduo, com elevado grau de expectativa, um sentimento de arrependimento pessoal a partir de prolongado período de reflexão dentro de estabelecimentos prisionais[43]. Com o crescimento das sociedades neoliberais ao redor do mundo, ficou ainda mais claro que a ideologia por trás da pena encontra ineficaz inspiração na concepção ético-religiosa de culpa, e no caminho bíblico para superá-la.

O combate ao “inimigo comum” é o combate na verdade o excluído, aquele que não pode consumir ou crescer socialmente; aquele que sofre um pré-julgamento a partir da sua cor de pele, nível de escolaridade, status social ou ocupação profissional, e que enquanto paga o preço, é supostamente preparado para retornar ao convívio em sociedade. Nessas condições, ante um sistema falacioso de premissa claramente excludente, não é difícil entender o motivo pelo qual saem pior do que entram. Melhorias serão eficazes se contrabalanceadas com mudanças de paradigmas, que sem apoio popular implica em perda de eleitorado e falta de vontade política para fazê-lo. O criminoso é, antes, refém.

Em boa parte dos países do mundo não se observa qualquer melhora significativa nos índices de desvio após a prisão. Talvez seja porque a verdadeira liberdade viva do lado de dentro[44], e se não há grades para a mente, o problema não é o aprisionamento do corpo para ocasionar o arrependimento pessoal, e quando o pesadelo do esquecimento social, anestesiado, adormece, o sonho de rápida ascensão econômica se fortalece, dando continuidade ao ciclo. Mas em contraponto ao índice de 60% de reincidência dos norte-americanos, a Noruega registra apenas 20%, pautando seu sistema na reabilitação do indivíduo, e não na severidade da punição[45].  É possível portanto estabelecer um programa que faça a diferença. Um em que os presos aprendam a desenvolver qualidades sociais positivas, como respeito ao próximo e um senso de político de responsabilidade e coletividade. Nietzsche dizia, contudo, que a vingança é uma festa, daí a população manifestar muito mais prazer no massacre do que na reinserção[46].

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Dostoiévski, em Crime e Castigo (1866), narra que, como um espelho, é possível julgar o grau de civilização de uma sociedade, visitando suas prisões[47]; Gustavo Radbruch, autor alemão abolicionista do século XVIII, escreveu que “a melhor reforma do direito penal seria a de substituí-lo, não por um direito penal melhor, mas por qualquer coisa melhor do que o direito penal, simultaneamente mais inteligente e humano”[48]. Não foi por acaso que a sociedade caminhou até aqui, os mesmos problemas já se repetiam então séculos antes.

“Exames clínicos realizados com os clássicos testes de personalidade mostraram os efeitos negativos do encarceramento sobre a psique dos condenados e a correlação destes efeitos com a duração daquele. A conclusão a que chegam estudos deste gênero é que ‘a possibilidade de transformar um delinquente antissocial violento em um indivíduo adaptável, mediante uma longa pena carcerária, não parece existir’ e que ‘o instituto da pena não pode realizar a sua finalidade como instituto de educação’”[49].

Hart assevera que o Direito Penal se limita a prescrever ameaças com base em uma visão arcaica de ordem emanada por soberano, ou por um grupo soberano, que sem debater com os agentes sociais atingidos pelos enunciados que irão compor as regras, ficam na expectativa de corrigir desvios de conduta de uma sociedade inteira[50], o que gera o viés seletivo da pena.

"[...] Antes de tudo, esta relação é uma relação entre quem exclui (sociedade) e quem é excluído (preso). Toda técnica pedagógica de reinserção do detido choca contra a natureza mesma desta relação de exclusão. Não se pode, ao mesmo tempo, excluir e incluir. [...] Antes de falar de reinserção é necessário, portanto, fazer um exame do sistema de valores e dos modelos de comportamento presentes na sociedade em que se quer reinserir o preso. Um tal exame não pode senão levar à conclusão, pensamos, de que a verdadeira reeducação deveria começar pela sociedade, antes que pelo condenado: antes de modificar os excluídos, é preciso modificar a sociedade excludente, atingindo, assim, na raiz do mecanismo de exclusão"[51].

A ideologia liberal de obediência ao direito penal pelo medo da prisão[52] não possui, portanto, qualquer embasamento científico, tão somente retroalimenta o Estado de Defesa Social. É preciso, antes de tudo, reeducar a própria sociedade. Um sistema que se limita a prescrever ameaças, e carrega uma herança histórica de um hábito de obediência, que impõe uma estrutura social distorcida e vertical de poder, não pode atingir qualquer mudança significativa. O Direito atual parece se aproximar do que se poderia chamar de autismo jurídico[53]. Esquece-se de que é preferível prevenir a punir[54].

O Brasil atinge o índice alarmante de quase 600 mil presos, o 4º lugar no ranking mundial, com 42% de presos provisórios, e como o 18º país mais violento do mundo[55]. Será preciso paciência e perseverança para mudar, pois o paradoxo, segundo Carnelutti[56], é de que além de tudo, se a justiça é segura, não é rápida; se é rápida, não é segura. Mas a lembrança que fica ao final é a de que essa é uma profissão de fé. O Direito é feito por pessoas que acreditam no sonho de que é possível viver em paz em sociedade. Há ainda um longo caminho pela frente numa busca por soluções alternativas, por uma política criminal que permita ao indivíduo retribuir o prejuízo à sociedade, ao mesmo tempo em que reaprende valores que o blinde à realidade social, que ensine a se colocar no mundo com consciência política, para atingir o verdadeiro fim da ideologia penal: a recuperação e evolução do ser humano. Esse parece ser o verdadeiro desafio. É nisso que não se pode perder a fé.

“Nossos descendentes, certamente mais felizes que nós, terão dificuldade em conceber essa complicação tortuosa dos mais esquisitos absurdos, e esse sistema de iniquidades incríveis, que apenas o filósofo julgará possível, estudando a natureza do coração humano”.[57]

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Sobre o autor
Carlos Alencastro

Advogado. Pós-graduado em Direito Tributário e Finanças Públicas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALENCASTRO, Carlos. Por onde anda o direito penal?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5278, 13 dez. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/44281. Acesso em: 4 mai. 2024.

Mais informações

Texto desenvolvido em grupo de pesquisa do IDP - Instituto Brasiliense de Direito Público.

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