Fosfoetanolamina e fornecimento de medicamentos sem registro: mudança de visão do STF ?

16/11/2015 às 15:04
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O artigo analisa a decisão liminar do STF que liberou o uso da fosfoetanolamina para pacientes com câncer e pretende analisar se houve mudança de entendimento em relação ao fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa

INTRODUÇÃO

A judicialização da saúde é um fenômeno cada vez mais freqüente na vida nacional. As pessoas estão fazendo uso do direito fundamental ao acesso à Justiça (art. 5º, XXXV) para buscar a efetivação de um outro direito fundamental: a saúde, nos termos do art. 6º e do art. 196 da CF/88.

De acordo com pesquisa realizada pelo CNJ, até o mês de junho de  2014 haviam  em tramitação mais de 330 mil ações na Justiça comum (estadual e federal) envolvendo  fornecimento de medicamentos[1].  

As pessoas ingressam no Poder Judiciário para compelir o Estado a fornecer medicamentos de alto custo ou que normalmente não são fornecidos pelo Sistema Único de Saúde.

O CASO CONCRETO JUDICIALIZADO

A substância “fosfoetanolamina sintética” era produzida pela USP de São Carlos e distribuída gratuitamente para pacientes voluntários portadores de câncer. Há relatos que algumas pessoas melhoraram de saúde após fazerem uso da substância. Com isso, a procura pela substância aumentou consideravelmente e a USP resolveu apenas entregar o produto para as pessoas que tivessem uma ordem judicial.

O problema é que a referida substância nunca foi submetida a testes pela ANVISA para comprovar sua eficácia e ser registrada como medicamento.

O TJSP, com base no argumento da falta de registro na ANVISA, cassou uma série de decisões liminares que estavam obrigando a USP  fornecer a substância.

Uma das pacientes que teve sua liminar cassada, resolveu ingressar no STF com uma petição requerendo a suspensão da decisão do TJSP. Alegava estar em estágio terminal e que seus médicos, haviam receitado a utilização da substância para mitigar os efeitos da doença.

O caso foi relatado pelo recém empossado, min. Luis Fachin que deferiu o pedido de suspensão e autorizou a USP  fornecer a substancia para a paciente.  

O Ministro Edson Fachin assim se manifestou sobre o pedido da requerente :

 (...) Por ora, em sede de medida cautelar, cumpre examinar tão somente se estão presentes a fumaça do bom direito e o perigo na demora do provimento judicial. Quanto ao periculum, como já se reconheceu no início desta decisão, há evidente comprovação de que a espera de um provimento final poderá tornar-se ineficaz. No que tange à plausibilidade, há que se registrar que o fundamento invocado pela decisão recorrida refere-se apenas à ausência de registro na ANVISA da substância requerida pela peticionante. A ausência de registro, no entanto, não implica, necessariamente, lesão à ordem púbica, especialmente se considerado que o tema pende de análise por este Supremo Tribunal Federal, em sede de repercussão geral (RE 657.718-RG, Relator Ministro Marco Aurélio, Dje 12.03.2012). Neste juízo cautelar que se faz da matéria, a presença de repercussão geral (tema 500) empresta plausibilidade jurídica à tese suscitada pela recorrente, a recomendar, por ora, a concessão da medida cautelar, para suspender decisão proferida pelo Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em sede de Suspensão de Tutela Antecipada          2194962-67.2015.8.26.0000(...)[2] (Grifamos)
 

Podemos observar na decisão do ministro que o mesmo deferiu a suspensão da liminar do TJSP, aduzindo que estavam presentes os requisitos gerais de concessão de limnares, isto é, o periculum in mora e fumus boni júris. No caso em tela, o periculum in mora foi comprovado pela paciente que estava em estágio terminal e avançado da doença, pela juntada de laudos médicos que recomendavam a utilização da fosfoetanolamina sintética, para mitigar os efeitos da doença. Portanto, o ministro fundamentou sua decisão na particularidade do caso concreto, sendo que o fornecimento da substância era a única maneira de garantir a paciente uma vida digna.

Foi uma decisão carregada de humanismo e solidariedade.

Em relação ao argumento do TJSP de que a substância não tinha registro na ANVISA, o ministro limitou-se a dizer que, por si só, esse argumento não é suficiente para comprovar a lesão da ordem pública.

O que estava em jogo não era o registro da fosfoetanolamina sintética, mas sim se o fornecimento dessa substância poderia causar lesão à ordem pública, que é um requisito legal para a suspensão de liminares. O ministro entendeu que não havia essa lesão.

Assim, pergunta-se:

 Com essa decisão houve mudança de posicionamento do STF no que tange a necessidade de registro de medicamento na ANVISA para que o medicamento seja fornecido?

A resposta é negativa. A decisão proferida pelo ministro Edson Fachin foi especialíssima, baseada unicamente na particularidade do caso concreto. Além do mais, essa decisão monocrática, ainda depende de ratificação pelo Plenário.  A jurisprudência do STF continua firme no sentido de se exigir o registro do medicamento na ANVISA.

A exigência do registro do medicamento na ANVISA foi um dos parâmetros de julgamento fixados na STA 175, onde o STF criou alguns parâmetros que poderão auxiliar os juízes no momento de decidirem causas envolvendo o fornecimento de medicamentos.

A STA 175, foi relatada pelo ministro Gilmar Mendes, e sobre o registro de medicamentos, o mesmo assim se manifestou em seu voto:

(...) Não raro, busca-se no Poder Judiciário a condenação do Estado ao fornecimento de prestação de saúde não registrada na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Como ficou claro nos depoimentos prestados na Audiência Pública, é vedado à Administração Pública fornecer fármaco que não possua registro na ANVISA. A Lei Federal nº 6.360/76, ao dispor sobre a vigilância sanitária a que ficam sujeitos os Medicamentos, as drogas, os insumos farmacêuticos e correlatos, determina em seu artigo 12 que “nenhum dos produtos de que trata esta Lei, inclusive os importados, poderá ser industrializado, exposto à venda ou entregue ao consumo antes de registrado no Ministério da Saúde”. O artigo 16 da referida Lei estabelece os requisitos para a obtenção do registro, entre eles, que o produto seja reconhecido como seguro e eficaz para o uso a que se propõe. O Art. 18 ainda determina que, em se tratando de medicamento de procedência estrangeira, deverá ser comprovada a existência de registro válido no país de origem. O registro de medicamento, como lembrado pelo Procurador-Geral da República, é uma garantia à saúde pública. E, como ressaltou o Diretor-Presidente da ANVISA, a agência, por força da lei de sua criação, também realiza a regulação econômica dos fármacos. Após verificar a eficácia, segurança e qualidade do produto e conceder o registro, a ANVISA passa a analisar a fixação do preço definido, levando em consideração o benefício clínico e o custo do tratamento. Havendo produto assemelhado, se o novo medicamento não trouxer benefício adicional, não poderá custar mais caro do que o medicamento já existente com a mesma indicação. Por tudo isso, o registro na ANVISA mostra-se como condição necessária para atestar a segurança e o benefício do produto, sendo a primeira condição para que o Sistema Único de Saúde possa considerar sua incorporação. (...)[3] (Grifamos)

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Podemos observar na decisão do ministro Gilmar Mendes, que foi aprovada por unânimidade  pelo Plenário do STF, que a necessidade de registro do fármaco na ANVISA é uma medida de saúde pública. Permitir que um medicamento sem registro seja colocado em circulação pode colocar em risco à vida de milhares de pessoas.

O Poder Judiciário não pode tomar o lugar dos médicos. Não pode obrigar o Estado a fornecer um medicamento que não possui certeza científica  e eficácia no tratamento de uma doença.

CONCLUSÃO

Assim, podemos afirmar que não houve mudança na jurisprudência do STF sobre o tema. O registro do medicamento na ANVISA como condição para seu fornecimento irá continuar. A decisão do ministro Fachin foi uma decisão única e que levou em consideração uma situação particular.

No caso da fosfoetanolamina sintética entendemos que a polêmica somente irá acabar quando o Ministério da Saúde realizar os testes necessários para se comprovar a real eficácia dessa substância.

Entendemos que em nome do princípio da dignidade da pessoa humana e da eficácia plena do direito fundamental à saúde, o Poder Judiciário deve ordenar o fornecimento de medicamentos para pessoas necessitadas, mas desde que exista o registro na ANVISA e que o medicamento seja eficaz. Senão estiverem presentes esses requisitos, entendemos que o Judiciário somente pode determinar o fornecimento de um medicamento sem registro e sem eficácia comprovado, se estiver diante de um caso concreto, onde o paciente esteja à beira da morte, e esse medicamento for a última esperança para o restabelecimento da saúde.

Esperamos que a fosfoetanolamina sintética seja testada e que seja provada sua eficácia com o conseqüente registro na ANVISA e que a mesma seja assegurada a todas às pessoas que dela necessitarem, sem que seja preciso judicializar a demanda.

O Estado é responsável em implementar as políticas públicas de saúde, dentre elas, o fornecimento de medicamentos gratuitamente, nos termos do art. 196 da CF/88.  


[1] Disponível em: http://www.cnj.jus.br/images/programas/forumdasaude/demandasnostribunais.forumSaude.pdf. Acesso em: 16/11/2015.

[2] Pet 5828 MC, Relator(a): Min. EDSON FACHIN, julgado em 06/10/2015, publicado em PROCESSO ELETRÔNICO DJe-203 DIVULG 08/10/2015 PUBLIC 09/10/2015). Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28%28FOSFOETANOLAMINA%29%29+NAO+S%2EPRES%2E&base=baseMonocraticas&url=http://tinyurl.com/oapjtdh. Acesso em: 16/11/2015.

[3] STA 175, Relator(a): Min. PRESIDENTE, Presidente Min. GILMAR MENDES, julgado em 18/09/2009, publicado em DJe-182 DIVULG 25/09/2009 PUBLIC 28/09/2009 RTJ VOL-00210-03 PP-01227 RDDP n. 81, 2009, p. 161-166). Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28STA%24%2ESCLA%2E+E+175%2ENUME%2E%29+E+S%2EPRES%2E&base=basePresidencia&url=http://tinyurl.com/bblsmom. Acesso em: 16/11/2015.

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Sobre o autor
Márcio de Almeida Farias

Mestre em Direitos Fundamentais pela Universidade da Amazônia. Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Estácio de Sá. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Pará. Promotor de Justiça no Ministério Público do Estado do Pará.

Informações sobre o texto

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