Dignidade da pessoa humana e cirurgia de mudança de sexo:uma questão jurídica e médico-cirúrgica

21/12/2015 às 11:54
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Este trabalho acadêmico busca, através de um levantamento bibliográfico sobre o tema direitos civis dos transexuais, conceituar a condição da transexualidade e elencar quais direitos constitucionais e civis estão sendo garantidos à estas pessoas.

As situações jurídicas nem sempre acompanham a contento os fatos emanados da sociedade. Por vezes se faz necessária uma imensurável mobilização a fim de que os clamores sociais transponham a condição de mero fato social e alcancem o patamar de reconhecimento jurídico. O reflexo das lutas sociais se faz presente mais intensamente pelas classes sociais minoritárias, oprimidas e discriminadas, notadamente, a dos transexuais.

O tema transexualidade suscita ainda em nossa sociedade conservadora e arraigada em valores religiosos pragmáticos oriundos de raízes históricas coloniais, uma verdadeira celeuma com misto de preconceito, intolerância e discriminação.

A discussão perpassa de forma intensa pela categoria jurídica dos direitos da personalidade, notadamente, honra e imagem, positivados pela Constituição de 1988 e com isso adquirindo status de direitos fundamentais consubstanciados na dignidade da pessoa humana. Busca-se saber, outrossim, qual o grau de eficácia e efetividade das normas jurídicas vigentes na vida fática dos indivíduos transexuais e se realmente estão atendendo às necessidades e expectativas deste fato social.

Com a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DURH), foram condenadas todas as formas de discriminação, e a expectativa era de que paulatinamente todas as expressões de intolerância contra a pessoa humana fossem dissipadas. No entanto, a realidade refletida diariamente nos meios de comunicação e na própria vida em sociedade mostra-se diametralmente oposta a esses anseios, uma vez que cada vez mais assistimos as manifestações ferrenhas de violação à essa declaração.

Faz-se necessária a definição, caracterização e contextualização da transexualidade como fenômeno biopsicossocial complexo em que se apresenta, vez que a temática abrange fatos e fenômenos, éticos, biológicos, sociológicos e jurídicos.

O sufixo “ismo” do termo transexualismo remete a uma definição de estado patológico, o qual, hodiernamente, não mais deve enquadrar a condição transexual, muito embora, tal situação ainda seja difundida principalmente nas definições da área médica sobre o assunto,considerando-o com  uma patologia como qualquer outra e que portanto, ninguém escolhe ter.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) diz que o transexualismo é classificado como um transtorno de personalidade e de comportamento. Consta do CID 10 - Classificação Internacional das Doenças, como uma anomalia, um transtorno de identidade de gênero e se define comoum desejo imenso de viver e ser aceito como membro do sexo oposto, usualmente acompanhado por uma sensação de desconforto ou impropriedade de seu próprio sexo anatômico e o desejo de se submeter a tratamento hormonal e cirurgia, para seu corpo ficar tão congruente quanto possível com o seu sexo preferido .

Para demonstrar que a definição patológica da transexualidade anda na contramão dos estudos mais recentes sobre o assunto, podemos citar o teor da Resolução nº 001de 22 de março de 1999 do Conselho Federal de Psicologia, que considera que a homossexualidade não constitui doença ou perversão. No entanto, o entendimento está longe de ser pacificado, ficando afinal a discussão ferrenha sobre o que realmente seria a transexualidade: se patologia, ou, condição inata ao indivíduo. Fato é que De acordo com a Resolução nº 1.955/2010, o Conselho Federal de Medicina (CFM) define ser transexual aquele que é “portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação e/ou autoextermínio”.

Inicialmente as pessoas que realizavam cirurgia de mudança de sexo para obter uma melhor adequação psíquica e social, chegaram a ser criminalizadas, apesar de sua condição não ser considerada um crime pelo ordenamento. A criminalização se fez por parte da própria sociedade por meio de atos intolerantes e discriminatórios contra uma minoria emergente de pessoas consideradas “diferentes” do padrão comportamental adotado por todos.

Embora hodiernamente muito se tenha avançado no campo jurídico em relação à tutela dos direitos fundamentais como um todo, a sociedade demonstra ainda uma certa aversão ao que não se encaixa dentro dos padrões considerados “normais”. Faz-se mister assim, não somente a efetivação jurídica dos direitos dos transexuais, mas também a efetividade prática e social da situação fática.

O tema nasce como fruto de um desejo de reunir dois ramos do conhecimento científico: A medicina e o direito. No campo da medicina há que se aprofundar a questão biopsiquíca que repercute na pessoa que se submete à uma cirurgia de mudança de sexo e no campo do direto quais as implicações jurídicas referentes à temática em questão.

O estudo justifica-se principalmente por levantar questões e esclarecimentos acerca dos direitos dos transexuais, visto que durante muitas décadas foram-lhe cerceados os direitos e garantias de viver e conviver com os demais segmentos da sociedade local e global. Neste diapasão buscou-se por meio de uma consistente pesquisa divulgar quais direitos constitucionais e civis alicerçam e garantem aos transexuais a liberdade de viver dignamente em sociedade, respeitando a sua condição sexual e cidadã para a plena efetivação do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

O primeiro capítulo faz uma contextualização histórica da homossexualidade e de como a evolução dos tempos veio a influenciar na condição de vida das pessoas homossexuais, bem como, o que houve de mudanças e conquistas para esse segmento social.

No segundo capítulo, abordou-se a parte jurídica da questão dos transexuais em si, elencando quais direitos e garantias já estão consolidadas no que concerne à transexualidade, e o que ainda se pode melhorar com relação à referida temática.

O terceiro e último capítulo trata do direito específico dos transexuais à cirurgia de trangenitalização e sua repercussão para o próprio paciente, para a sociedade e na esfera jurídica.

Nesse ínterim, o Estado tem por atribuição, notadamente quando suscitada sua ação em temas polêmicos e geradores de intolerância social, como o é a transexualidade, intervir de forma a normatizar direitos, condutas e deveres em prol da melhor convivência em sociedade das minorias excluídas, fazendo valer assim a positivação na Carta Magna dos direitos e garantias fundamentais e do princípio da dignidade da pessoa humana.

 Assim podemos concluir que os direitos da personalidade abrangem o direito à vida e à integridade física e moral, à intimidade, o direito sobre o próprio corpo, o direito à liberdade, o direito à honra, à intimidade e à privacidade, o direito à identidade pessoal e ao nome, o direito à imagem, todos consagrados pela Constituição Federal de 1988 e devem ser estendidos à todos, sem restrição ou discriminação, configurando-se como uma garantias da liberdade e da igualdade entre os povos.

2. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E TRANSEXUALIDADE

            Com o advento da Constituição de 1988 o conceito de pessoa passou a ser um dos pilares balizadores da nova era Democrática que ora se iniciava. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana vem a resgatar os valores principais e primordiais do homem enquanto um ser complexo e digno de proteção jurídica de forma holística. Nesse diapasão, vários direitos inerentes à personalidade vêm à tona como, o direito à imagem, à privacidade, ao corpo, à vida digna em sociedade, ao nome, à identidade, à liberdade religiosa, à não discriminação ligada ao sexo, raça e tantos outros consagrados do ordenamento jurídico vigente, fazendo com que tais direitos, amplamente reconhecidos Constitucionalmente,retomem o verdadeiro significado da Constituição, qual seja, o de norma diretiva fundamental.

            Nesse sentido, a vulnerabilidade do homem enquanto um ser social amplamente necessitado de proteção jurídica perpassa por situações de extrema peculiaridade, visto que cada pessoa em si, encerra um mundo de possibilidades e desdobramentos. É nessa perspectiva que os transexuais, amplamente marginalizados e discriminados, buscam se inserir no âmbito social de forma livre e sem preconceitos.

O resgate, pois, dessa minoria social, em um estado Democrático e Social de Direito, que se mostra como espaço preservador da convivência social, garantindo o direito de expressar-se em uma análise, apontando a dignidade concreta como núcleo fundamental, imprescindível e impositivo (SCHEIBE, 2008, p.17).

            Hodiernamente a questão do sexo e da sexualidade vem deixando de ser um interesse meramente das ciências biológicas, médicas e psicológicas e adentrando no ramo de outros saberes como as ciências sociais e jurídicas. Os movimentos ligados ás questões feministas e de não discriminação étnica e sexual só vieram a contribuir para fomentar e despertar o interesse político, social e ético a respeito dos direitos e deveres dessas minorias marginalizadas, alavancando os debates, sempre pautados no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

            Frente a tantos movimentos sociais clamando por dignidade, a luta dos transexuais faz mudar o paradigma de que o sexo é tão somente aquele estado biológico revelado no nascimento da pessoa através dos órgãos genitais, dicotomizados em masculino e feminino. A definição ultrapassa essa fronteira biológica e abrange toda uma gama de sentimentos, reações, percepções e sensações vivenciadas ao longo do desenvolvimento humano e, tudo isso, num processo construcional, definirá a verdadeira identidade sexual de um indivíduo.

A sexualidade da pessoa humana não está reduzida apenas à genitália. É mais ampla do que a materialidade do ato sexual em si. Podemos dizer que todos os fenômenos genitais são sexuais, mas nem todos os fenômenos da sexualidade humana se restringem aos genitais. Ela abrange toda a dimensão da pessoa, seus relacionamentos, suas crenças e a posição que ocupa no mundo (KURAMOTO, 2004, p.155).

            A realidade fática, porém, demonstra que a diversidade sexual ainda é tratada como algo diferente e fora do padrão bipolar de masculino e feminino. A falta de políticas públicas adequadas e de legislação específica sobre o assunto só vem a contribuir para a manutenção desse status quo e da incerteza e insegurança jurídica para esta parcela da população. Tal constatação segue na contramão do que prevê o Estado Democrático de Direito, vez que este, traz em seu cerne novas maneiras de viver e se relacionar, desprovidas de rigidez ou de preconceitos, a fim de buscar uma vida harmônica em sociedade.

            A sociedade brasileira ainda é ricamente arraigadas de ideias patriarcais, machistas e eivadas de cunho preconceituoso. Infelizmente, mesmo diante da cirurgia de trangenitalização, mudança de sexo e prenome no registro civil, maior alcance e visibilidade dos movimentos anti-homofóbicos, dentre outras conquistas, longe ainda está a realidade brasileira de alcançar um patamar ideal de convivência harmônica entre a população dita heterossexual e a categoria intitulada LGBT.

            O certo é que mesmo veladamente a discriminação e a violação aos direitos e garantias fundamentais dos transgêneros é evidente no seio da nossa sociedade, menosprezando-se os direitos constitucionais e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Todo esse preconceito pauta-se na visão majoritária da identidade genética e biológica como verdade absoluta, seguindo uma única forma de expressão social, qual seja, a dicotomia homem/mulher, masculino e feminino. Necessário se faz com urgência a quebra desse paradigma, a fim de que se vejam respeitados e garantidos os direitos constitucionais, civis e a convivência digna dos transexuais no âmbito de uma sociedade mais justa, ética e humanitária.

            Ressalte-se ainda, o grande sofrimento psíquico vivenciado pelo transexual por estar em uma condição física que não condiz com sua realidade psicológica. Não bastasse essa ferida emocional, tais indivíduos ainda têm que se manter fortes e convictos da sua identidade frente aos embates sociais a que diariamente submetidos e frente às tentativas tantas vezes frustradas de ver seus direitos mínimos respeitados e assegurados.

Em face das disposições constitucionais e dos grandes avanços já ocorridos no âmbito infraconstitucional, é totalmente inconcebível que uma pessoa com percepção neurodiscordante entre seu corpo e sua identidade de gênero ainda tenha que recorrer às decisões do Poder Judiciário para garantir mudança de sexo e prenome em seus documentos de identificação. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, na brilhante definição do constitucionalista Alexandre de Moraes, só vem a ratificar esse entendimento, senão vejamos:

A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. O direito à vida privada, à intimidade, à honra, à imagem, entre outros, aparece como conseqüência imediata da consagração da dignidade da pessoa humana como principio fundamental da República Federativa do Brasil (MORAES, 2002, p.129).

            Atrelado ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana está o Princípio da Solidariedade Social. Este busca que as situações humilhantes, vexatórias e constrangedoras vivenciadas diariamente pelos transexuais, sejam evitadas ou pelo menos minimizadas. Junte-se ainda aos princípios, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, e a própria Constituição de 1988, a qual assegura em suas garantias o direito à intimidade e a vida privada, incluindo o princípio da liberdade sexual, em virtude de ser este atributo da personalidade dos indivíduos.

 A Constituição Federal exalta ainda em seu art. 5º, inciso X, o direito do indivíduo de optar pela condição sexual que bem lhe aprouver, sendo que qualquer ato que contrarie esta disposição configura violação aos direitos da personalidade.

A valorização da dignidade da pessoa humana, elemento fundamental do estado democrático de direito, não pode chancelar qualquer discriminação baseada em características pessoais individuais. Repelindo-se qualquer restrição à liberdade sexual, não se pode admitir desrespeito ou prejuízo a alguém em função da sua orientação sexual (DIAS, 2006, p.124).

            César Fiúza (2002), discorrendo sobre os direitos da personalidade no ordenamento jurídico brasileiro, ressalta que a morada principal de tais direitos repousa na Carta Magna de 1988. Segundo ele, a Constituição prevê a cláusula geral da tutela da personalidade, ao passo que elegeu como valor fundamental da República o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, previsto no artigo 1º, III, da Carta Magna. Sob essa ótica, percebe-se nitidamente a possibilidade do transexual ter a modificação de sexo e prenome realizada em seu registro civil, visto que tal direito está constitucionalmente garantido no ordenamento jurídico pátrio.

Considerando os princípios supracitados, principalmente o tripé dos princípios da dignidade solidariedade e igualdade, os magistrados não podem se fazer de cegos perante a realidade que bate às portas do judiciário, devendo  primar para que  os transexuais, tenham uma vida normal,  como todas as demais pessoas que vivem no Estado Democrático de Direito, o qual  se pauta fundamentalmente na dignidade da pessoa humana. O não – reconhecimento dos direitos e garantias fundamentais dos transexuais por parte do Estado, dos legisladores e da própria sociedade, configura-se em uma forma de opressão e de negação a estes indivíduos de poder ter uma vida digna, feliz e bem aceita em sociedade.

O estigma vivenciado desde a mais tenra idade pelos transexuais tende a aumentar ainda mais os sofrimentos psicológicos desses indivíduos, visto que o processo de estigmatizarão acaba fazendo com que o transexual, na busca de ser aceito pela sociedade e seus padrões normativos, passe a acreditar que é realmente alguém fora dos padrões, o que aumenta mais ainda suas dúvidas e angústias quanto à sua autopercepção.

Ainda pode perceber de maneira bastante correta que, não importa o que os outros admitam, eles na verdade não o aceitam e não estão dispostos a manter com ele um contato em “bases iguais”. Ademais, os padrões que Le incorporou da sociedade maior tornam-no imediatamente suscetível aos que os outros vêem como seu defeito, levando-o inevitavelmente, mesmo que em alguns poucos momentos, a concordar que, na verdade, ele ficou abaixo do que realmente deveria ser. A vergonha se torna uma possibilidade central, que surge quando o indivíduo percebe que um de seus próprios atributos é impuro e pode imaginar-se como um não- portador dele (GOFFMAN, 1988, p.14).

Certo é que o preconceito não se faz presente somente por parte da parte agressora, mas também a própria vítima se enxerga de forma preconceituosa em face da não aceitação de sua condição diversa pela sociedade, gerando situações de exclusão e até mesmo auto-extermínio. Araújo ressalta que a capacidade de produção e inserção dessas pessoas nos grupos sociais torna-se extremamente difícil. Nesse diapasão o preconceito e o estigma levam inevitavelmente à exclusão, passando o transexual, a se esconder de si mesmo e dos outros na tentativa dolorosa de se adequar aos padrões ditados pela sociedade.

São várias as situações constrangedoras pelas quais os transexuais são obrigados a passar, afrontando nitidamente a sua dignidade enquanto pessoa humana. Muitos são perseguidos desde a infância com agressão verbal e física, até mesmo no seio da própria família.

Sempre fui uma pessoa frustrada, vivo em conflito. Desde os dez anos que eu apanho, jogam pedra em mim, já chegaram a me amarrar, dizendo que era pra eu virar homem. Já fui estuprada e espancada. Eu só estudei até a quarta série, porque meus colegas da escola cuspiam na minha cara, quebravam o vidro da sala onde eu estava estudando. Era impossível estudar (SCHEIBE, 2008, p.41).

            Também relata Scheibe (2008), o caso de um transexual que passou pelo constrangimento de pensarem que um cheque seu era roubado. Em outra ocasião esse mesmo individuo foi aprovado em uma entrevista de emprego, mas dispensado na contratação. Tentou a automutilação, cortando os testículos: “sei que estava em uma fase de desespero e pensei que poderia ter complicações. Mas eu não suportava a situação na qual vivia.” Trancou-se no quarto e com uma tesoura e uma ampola de Xilocaína como anestésico, cortou os testículos. Relata, ainda, que jogou o que chamou de “excesso” no vaso, e deu descarga, para não correr o risco de que fizessem um reimplante.

            Fica mais que evidente nestes relatos como é difícil e sofrida a vida do transexual frente a uma sociedade arcaica e de pensamentos patriarcais. Evidencia-se ainda, o fato de não haver a garantia mínima da dignidade da pessoa humana para essa parcela da população, visto que tanto sofrimento e humilhação ainda passa despercebido aos olhos do poder público em geral. Restaurar a primazia do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana deve ser hoje a principal perspectiva da teoria do direito, tendo como base a o fenômeno da repersonalização das normas jurídicas. O direito não pode ser concebido como um conjunto de normas alheias à vida, mas sim, em consonância com os acontecimentos advindos da existência humana em sociedade. A verdadeira justiça só pode ser alcançada quando há uma aproximação entre a realidade normativa e a realidade social, em um verdadeiro entrelaçamento entre ambas.

O Direito antes de ser uma ciência jurídica, perpassa também por uma ciência social e como tal, deve apresentar construções, desconstruções e reconstruções a fim de acompanhar as mudanças na realidade fática.

Os atos de disposição sobre os direitos fundamentais da personalidade devem respeitar a ordem pública, limitando a atuação dos particulares, já que o homem jamais poderá ser tratado como mercadoria, uma vez que a “coisificação” do homem segue totalmente na contramão da noção de dignidade. O cerne da questão é que se deve tratar a pessoa humana como homem-sujeito e não como homem-objeto.

O direito fundamental aolivre desenvolvimento da personalidade garante a conformação dos interesses pessoais e o pleno desenvolvimento da personalidade. Tal garantia reflete o dinamismo dos direitos da personalidade, sendo esta extraída do Princípio da Dignidade Humana, ainda que implicitamente.

            Não há como se tratar hodiernamente a questão da transexualidade tão somente à luz de técnicas legalistas, doutrinárias e jurisprudências, muitas vezes controversas, sendo necessária também, a compreensão de tal realidade desse indivíduos pautada na dignidade da pessoa humana e nos preceitos Constitucionais balizadores dos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana. Respeito, autonomia, alteridade, são algumas das características a serem trabalhadas em conjunto com a dignidade da pessoa humana a fim de que os direitos dos transexuais sejam amplamente difundidos e garantidos.

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O tema da transexualidade e da identidade pessoal estão, pois, estreitamente vinculados aos direitos da personalidade, que, por sua vez, são direitos subjetivos cujo objeto são bens e valores essenciais da pessoa, resguardados pela dignidade da pessoa humana. Para o reconhecimento da dignidade como princípio basilar do ordenamento, atualmente é indispensável uma passagem pelos principais acontecimentos que perpassam a história e, que, bem ou mal, contribuam para a efetivação dessa proteção (SCHEIBE, 2008, p.53).

Para o transexual, não é o fato de realizar a cirurgia de transgenitalização que vai torná-lo igual a todos na sociedade, a cirurgia somente garante a sua aceitação, mas o seu psicológico já está consolidado, independente disso. É elemento primordial dos interesses do transexual ver reconhecido o seu direito à adequação de sexo e do prenome, uma vez que este direito também está pautado na dignidade humana.

Oportuno lembrar, que os direitos da personalidade são inerentes à pessoa humana, sendo, na sua origem, direitos humanos, conquistados por força de muitas lutas históricas envolvendo várias ciências como a filosofia, o direito e tantos outros ramos do saber.

No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente, mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e, portanto, não permite equivalente, então tem ela dignidade. O direito à vida, à honra, à integridade física, à integridade psíquica, à privacidade, dentre outros, são essencialmente tais, pois, sem eles, não se concretiza a dignidade humana. A cada pessoa não é conferido o poder de dispô-los, sob pena de reduzir sua condição humana, todas as demais pessoas devem abster-se de violá-los (KANT, 1990. p. 77).

Seguindo a ótica do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, é direito de todos ver possibilitada a sua integridade física, psíquica, o direito à vida, o direito à saúde, o livre desenvolvimento da personalidade e a salvaguarda da dignidade do ser humano.

De acordo com a perspectiva civil-constitucional, a personalidade não finaliza na possibilidade de titularizar direitos, a pessoa ainda pode tutelar os seus direitos fundamentais, primordiaisao exercício de uma vida digna.

Concorda-se plenamente com Lôbo (2011, p.1) que afirma: “A Constituição brasileira, do mesmo modo que a italiana, prevê a cláusula geral de tutela da personalidade que pode ser encontrada no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana”.

Existem julgados a respeito do caso, uns favoráveis e outros parcialmente favoráveis, compreendendo e buscando o bem estar físico psíquico e social.

5ª CÂMARA (TERCEIRA TURMA) 0078000-40.2008.5.15.0018 RO - Recurso Ordinário VARA DO TRABALHO DE ITU Recorrente: Nilson Pereira da Silva Recorrido: Município de Itu Juiz Sentenciante LUIS MARTINS JUNIOR DANO MORAL. TRABALHADOR QUE ASSUME SUA TRANSEXUALIDADE. DISCRIMINAÇÃO VELADA. TRABALHADOR MANTIDO EM OCIOSIDADE. ASSÉDIO MORAL CONFIGURADO. INDENIZAÇÃO DEVIDA. A discriminação é a negação do princípio da igualdade, eis que discriminar é fazer distinção

ASSÉDIO MORAL. DISCRIMINAÇÃO. DANO MORAL. RESTABELECIMENTO AO CARGO OCUPADO.

Portanto, não há dúvida de que o reclamante foi vítima de assédio moral, o qual foi decorrente de uma discriminação que não foi declarada, mas, sim, velada, que é aquela que é mais difícil de ser comprovada, porque não se caracteriza por comportamento visível a todos. Geralmente, a discriminação velada é constituída por atitudes que intimidam, preterem, penalizam o trabalhador, sem justificativa convincente, atitudes essas que, quando (5) Inteiro Teor do Acórdão | TRT-15 - Recurso Ordinário: RO 36151... http://trt-15.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/18927887/recurso-ordinari... De  26/10/2015 17:31 questionadas, são justificadas pelo agressor, na maioria das vezes, como sendo fruto da incapacidade/inaptidão do trabalhador. Neste contexto, é forçoso concluir, ao contrário do reconhecido na r. decisão de origem, que a conduta do superior hierárquico frente ao reclamante caracterizou, sim, o assédio moral, de acordo com a definição dessa figura jurídica, eis que o fato de ser marginalizado no ambiente de trabalho abalou profundamente sua autoestima, violando o princípio da dignidade como pessoa humana, adotado como fundamento de nossa república (art. 1º, III e IV, da CF). Sendo assim, é devida ao obreiro a reparação civil pelo dano moral sofrido mediante a condenação do reclamado ao pagamento de indenização. Para fixação da reparação do prejuízo moral que veio a sofrer, há de se levar em conta valores materiais que possam trazer certo conforto à dor moral da vítima, sem desconsiderar a gravidade e repercussão do dano, a situação econômica do empregador e o caráter pedagógico da punição. Deste modo, usando do bom senso, arbitro a indenização por dano moral no valor de R$40.000,00, quantia essa que representa justa reparação à dor moral da vítima. De igual modo, restabeleço a decisão liminar de fls. 45/46, acolhendo o pedido de antecipação de tutela para condenar o reclamado a promover o imediato retorno do autor às suas atividades de motorista, face o preenchimento dos requisitos do art. 273 do CPC, sob pena de multa no valor de R$150,00 por dia de atraso, na forma do art. 461, § 4º, do CPC. Ante o exposto, resolvo conhecer do recurso de Nilson Pereira da Silva e o prover em parte para julgar parcialmente procedente a ação, condenando o reclamado ao pagamento de indenização por dano moral e o imediato retorno do autor às atividades de motorista, sob pena de multa diária, tudo nos termos da fundamentação. Fica arbitrado o valor da condenação em R$ 40.000,00, invertendo-se o ônus das custas processuais, que passam a ficar a cargo do reclamado, no importe de R$ 800,00, dos quais fica isento por força do art. 790-A da CLT. LORIVAL FERREIRA DOS SANTOS. Desembargador Federal do Trabalho Relator Disponível em: http://trt-15.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/18927887/recurso-ordinarioro-36151-sp-036151-2010/inteiro-teor-104199138

            Podemos então concluir que apesar dos grandes avanços já conquistados pela população transexual ao longo de décadas de ostracismo e discriminação social, notadamente avanços na área da saúde, o ordenamento jurídico brasileiro ainda está muito aquém de ter uma realidade que torne, no mínimo, confortável a relação em sociedade desses indivíduos. Timidamente o que se tem de mais concreto no direito pátrio a esse respeito, não contempla plenamente o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, o que gera, dentre outros problemas, uma total insegurança jurídica e uma sensação ainda maior de rejeição na vida de quem busca as instituições jurídicas para ver seus direitos básicos garantidos e respeitados.

           

                                                                                 

 DIREITO CONSTITUCIONAL – NOME SOCIAL

Primeiramente é mister que se esclareça qual o conceito de transexualidade ou de um indivíduo dito transexual, a fim de que se possa entender a verdadeira necessidade da adequação de sexo e prenome para essas pessoas. O transexual possui forte convicção de que pertence ao sexo oposto ao que consta em seu registro de nascimento, desejando veementemente se livrar dos seus órgãos genitais que o tornam diferente daquilo que ele verdadeiramente acredita ser.

O componente psicológico do transexual caracterizado pela convicção íntima do indivíduo de pertencer a um determinado sexo se encontra em completa discordância com os demais componentes, de ordem física, que designaram seu sexo no momento do nascimento. Sua convicção de pertencer ao sexo oposto àquele que lhe fora oficialmente dado é inabalável e se caracteriza pelas primeiras manifestações da perseverança desta convicção, segundo uma progressão constante e irreversível, escapando ao seu livre arbítrio (VIEIRA, 2000, p.89-90).

Numa visão moderna, o transexual masculino é uma mulher num corpo de homem, ocorrendo evidentemente o contrário em um transexual feminino. Tais pessoas são, portanto consideradas portadoras de neurodiscordância de gênero, possuindo reações próprias do sexo com o qual se identificam psíquica e socialmente.

Quanto ao início das manifestações da transexualidade, esta ocorre precocemente, na mais tenra idade do indivíduo, visto que as próprias brincadeiras da infância são balizadas na dicotomia masculino/feminino, encontrando o transexual, dificuldade para se enquadrar nesse padrão que lhe é imposto.

[...] antes dos três anos de idade, espontaneamente, isto é, sem qualquer estímulo provocado por terceiros, se utiliza de roupagem feminina. Prefere brincadeiras femininas na infância e tal tendência também se manifesta, na idade adulta, na sua opção profissional. Suas atitudes são femininas e não efeminadas (SUTTER, 1993, p.109).

Note-se assim, que o transexual possui um grande sofrimento psíquico que lhe acompanha desde que se entende como pessoa, nos primórdios da sua infância, tendo que conviver com uma realidade social estigmatizadora, o que acarreta para este um enorme transtorno social, tendo em vista a percepção que tem de si mesmo e a percepção da sociedade a seu respeito.

No que concerne à adequação do prenome e sexo no Registro Civil, o transexual deverá recorrer ao judiciário, constituindo uma das últimas etapas a serem percorridas e fazendo esta etapa, parte do procedimento cirúrgico de transgenitalização. Há que se destacar aqui, que a decisão de adequação do prenome e sexo ao registro civil do transexual que já realizou a cirurgia de trangenitalização está praticamente pacificada entre os Tribunais no Brasil. A celeuma está, na garantia deste direito aos que ainda não realizaram o ato cirúrgico.

Nesse sentido, Venosa argumenta que o não consentimento da adequação do sexo à pessoa é uma atitude cruel, sujeitando-a a uma degradação que não comunga com os princípios que protegem a personalidade, assim, nessas circunstâncias o prenome deve ser alterado, não sendo o fato de o indivíduo não ter submetido à cirurgia, impedimento ou óbice ao não consentimento de tal direito, vez que a sexualidade não se resume apenas ao sexo biológico em si, mas contempla uma série de fatores sociais, psicológicos e culturais.  

No direito comparado, os países signatários da Convenção Europeia dos Direitos do Homem vêm acolhendo os pedidos de adequação sexual do transexual verdadeiro, ou seja, submetido ao processo cirúrgico, desde que esgotadas as vias internas de recurso.

 Segundo Vieira (2000), os Juízes da Corte Europeia têm entendido que o não acolhimento do pedido é uma transgressão ao art. 8o da Convenção. Eis o texto: “Toda pessoa tem direito ao respeito à vida privada e familiar de seu domicílio e da sua correspondência”.

O direito a ter um equilíbrio entre corpo e mente por parte do transexual, adequando assim seu sexo e prenome, está amparado no direito ao próprio corpo, no direito à saúde, consolidados no Artigo 6° da Constituição Federal e Artigo 196, também da Carta Magna e principalmente, no direito à identidade pessoal, o qual integra um forte direito de personalidade: a identidade pessoal, senão vejamos:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 90, de 2015)

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Analisando o tema em debate à luz do direito comparado constata-se a existência de uma forte corrente favorável ao reconhecimento da transexualidade, tanto na via judicial, como legislativa. As legislações sueca, alemã, holandesa, italiana e de certos estados dos Estados Unidos e do Canadá consagram os direitos dos transexuais. Seguem na mesma lógica de reconhecimento, Dinamarca, Finlândia, Noruega, Bélgica, Luxemburgo, França, Suíça, Portugal, Turquia, Peru, etc.

Em se tratando do tema transgenitalização várias polêmicas surgem no campo das diversas ciências, tanto psicossociais e biológicas quanto jurídicas. A ciência jurídica ainda caminha timidamente e com enormes divergências doutrinárias e jurisprudenciais nesta seara, vez que não há ainda no ordenamento jurídico brasileiro legislação específica sobre o assunto, ficando a cargo dos Tribunais dirimir as celeumas a eles encaminhadas e garantir a satisfação dos direitos dessa minoria, aplicando na maioria das demandas a Constituição e os Princípios pertinentes.

Uma das demandas mais comuns a ser enfrentada pelos Tribunais refere-se à identidade de gênero dos indivíduos transexuais, vez que estes se comportam em sociedade com uma identidade de gênero diversa da que consta em seus documentos e registros oficiais, o que gera um inegável constrangimento em inúmeras situações da vida cotidiana dessas pessoas. A questão da adequação do prenome e sexo à real situação vivida pelos transexuais, tem gerado imensuráveis discussões e divergências entre os magistrados e Tribunais Superiores, como se pode depreender dos seguintes julgados coletados em Tribunais de Estados diferentes do País:

APELAÇÃO CÍVEL – PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA – TRANSEXUAL –- REQUERIMENTO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL PARA MODIFICAÇÃO DO PRENOME E SEXO – REQUERENTE NÃO SUBMETIDO À CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO – ART. 58 DA LEI DE REGISTROS PÚBLICOS - INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO – Registro civil que não se coaduna com a identidade sexual do requerente sob a ótica psicossocial e não reflete a verdadeira identidade de gênero perante a sociedade. Intenso sentimento de desconforto com a obrigatoriedade de adotar identidade masculina. Negativa de realização de cirurgia de redesignação sexual. A transgenitalização, por si só, não é capaz de habilitar o transexual às condições reais do sexo, pois a identificação sexual é um estado mental que preexiste à nova forma física resultante da cirurgia. Não permitir a mudança registral de sexo com base em uma condicionante meramente cirúrgica equivale a prender a liberdade desejada pelo transexual às amarras de uma lógica formal que não permite a realização daquele como ser humano. No plano jurídico, a questão remete ao plano dos direitos fundamentais. Convocação do juiz a assumir o papel de intérprete da normatividade, mediante uma imbricação entre o direito e a moral. Utilização dos procedimentos jurídicos que permitam a concretização dos preceitos materiais assecuratórios do exercício pleno da cidadania. Os “novos tempos” do Direito não podem ser dissociados da vida em sociedade, na qual a cidadania se desenvolve pelo constante processo argumentativo que se dá nas instituições do Estado e nas organizações comunitárias. A cidadania adquiriu status de direito fundamental, tendo sido conceituado como “direito à proteção jurídica”, cujo significado sociológico cabe na expressão “direito a ter direitos”. Interpretação do art. 58 da Lei de Registro Público conforme a Constituição. Construção hermenêutica justificada. A norma tem por finalidade proteger o indivíduo contra humilhações, constrangimentos e discriminações, em razão do uso de um nome. A mesma finalidade deve possibilitar a troca de prenome e sexo aos transexuais. Imposição de manutenção de identificação em desacordo com identidade atenta contra a dignidade humana e compromete a interlocução do indivíduo com terceiros nos espaços públicos e privados. A alteração de nome corresponde a mudança de gênero. Autorização, por consequência, de alteração do sexo no registro civil para obviar incongruência entre a identidade da pessoa e os respectivos dados no fólio registral. Provimento ao recurso.(TJ/RJ - Apelação Cível nº 0013986-23.2013.8.19.0208. Relator: Des. Edson Aguiar de Vasconcelos. 21 de março de 2014).

Como se pode notar, a percepção do acórdão prolatado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, supracitado, é de que a mudança de sexo e prenome constitui um direito fundamental inerente aos transexuais, independentemente da realização ou não, de cirurgia transgenitalizadora. Outros Tribunais, porém, não corroboram deste mesmo entendimento:

Apelante: Rogério Tavares

Apelado: Juízo da Comarca

Juíza sentenciante: Renata Scudeler Negrato

Voto nº 6625

Apelação. Retificação do Registro Civil. Transexual que não se submeteu à cirurgia de adequação ao sexo feminino. Alteração de nome. Impossibilidade. Modificação do sexo biológico. Necessidade. Falta de interesse de agir verificada. Precedentes jurisprudenciais. Sentença de extinção mantida. Recurso não provido, com observação. Ressalvado o entendimento do Apelante, o presente recurso não merece prosperar. A r. sentença atacada analisou de forma correta as questões suscitadas, com adequada fundamentação jurídica à hipótese dos autos. O Apelante pretende evitar as situações de constrangimento que alega ter vivenciado, por assumir a aparência feminina, e, não obstante, fazer uso de nome masculino. Por esse motivo, é compreensível que o prenome masculino seja mesmo capaz de expor a pessoa a situações embaraçosas e constrangedoras no plano social, tendo em mira que ainda persiste forte carga de preconceitos. Entretanto, o Apelante ainda não se submeteu à cirurgia de transgenitalização, como ele próprio afirma em seu recurso, com o que não se mostra possível a alteração do nome, conforme pretendido. 0004467-07.2010.8.26.0120 (TJ/SP – Apelação Cível Nº 0004467-07.2010.8.26.0120. Relator João Pauzine Neto. 02 de julho de 2013).

O entendimento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo mostra-se diverso ao entendimento do Tribunal do Rio de Janeiro, vez que, diferentemente deste, utiliza-se do fato da não realização de cirurgia de transgenitalização por parte do apelante para denegar o pedido de mudança de sexo e prenome nos documentos oficiais do autor, apesar de convir que o prenome do autor o expõe a situações embaraçosas e constrangedoras.

Já no Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe, tem-se a seguinte decisão:

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SERGIPE

ACÓRDÃO: 20129963

APELAÇÃO CÍVEL 3976/2012

PROCESSO: 2012209865

RELATOR: DESA. MARIA APARECIDA SANTOS GAMA DA SILVA

APELANTE A.L.P.D.S. Defensor (a): MIGUEL DOS SANTOS CERQUEIRA

APELADO N.C. 

DESA. MARIA APARECIDA GAMA DA SILVA (Relatora): Presentes os requisitos de admissibilidade do recurso, impõe-se seu conhecimento. Trata-se de Ação de Retificação de Registro Civil na qual o autor Anderson Luiz Pinheiro de Sousa pretende a alteração do seu prenome para Kristhel Oliver, por ser transexual e tal nome condizer com o seu fenótipo e a sua crença interior de ser do sexo feminino. É cediço que, em regra, o nome da pessoa natural é inalterável, sendo possível a sua modificação apenas em situações excepcionais, como no caso deste submeter o seu titular ao ridículo ou à situação vexatória. Na hipótese submetida à apreciação desta Colenda Câmara Cível, assevera o recorrente que é transexual e que, nesta condição, sente-se constrangido todas as vezes em que necessita se apresentar com o nome masculino constante em seu registro de nascimento, porquanto desde que ingressou na adolescência se identifica como sendo psicologicamente e estruturalmente do sexo feminino. Trata-se de um desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto. Este desejo se acompanha em geral de um sentimento de mal estar ou de inadaptação por referência a seu próprio sexo anatômico e do desejo de submeter-se a uma intervenção cirúrgica ou a um tratamento hormonal a fim de tornar seu corpo tão conforme quanto possível ao sexo desejado. (fl. 81-v) Identificada tal condição, cumpre-nos aferir a possibilidade de alteração do seu prenome para um condizente com o sexo que entende pertencer. Nos casos em que o transexual já foi submetido a cirurgia para modificação do seu sexo, a jurisprudência há tempo já se manifesta no sentido da possibilidade de alteração não só do seu nome, como também do sexo constante no seu assentamento de nascimento. Em última análise, afirmar a dignidade humana significa para cada um manifestar sua verdadeira identidade, o que inclui o reconhecimento da real identidade sexual, em respeito à pessoa humana como valor absoluto. Destaco, por oportuno, que a fim de evitar outras situações constrangedoras, no caso de fornecimento de certidões não deverá ser declinada a causa da alteração registral, devendo-se apenas constar a existência da averbação à margem do termo para resguardar a boa-fé de terceiros. Ou seja, deverá constar na certidão apenas que existe averbação decorrente de determinação judicial alterando o registro sem, no entanto, fazer qual, quer menção à razão desta modificação. Por fim, comungo do entendimento firmado pela Procuradoria de Justiça no sentido da impossibilidade de fazer constar no registro do apelante, ao invés do sexo masculino, a expressão transexual sem ablação de genitália. Ora, é inquestionável que só existem duas espécies de gênero ou sexo, quais sejam, masculino ou feminino. Assim, considerando que a identidade biológica do apelante é a masculina, porquanto ainda não submetido à cirurgia, o gênero constante em seu registro deverá ser mantido, a fim, inclusive, de não induzir terceiros de boa-fé em erro. Pelas razões acima expendidas, dou provimento parcial ao apelo, apenas para deferir a alteração do prenome do apelante, que passa a ser Kristhel Oliver. É como voto.  Aracaju/SE,09 de Julho de 2012.DESA. MARIA APARECIDA SANTOS GAMA DA SILVA (TJ/SE. Apelação cível n°3976/2012. Relator: Desa. Maria Aparecida Santos Gama da Silva .09 de julho de 2012).

Para o Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe, só existem duas espécies de gênero ou sexo: masculino e feminino, o que justificaria apenas a mudança do prenome no registro civil dos transexuais não submetidos ainda à cirurgia de transgenitalização.

Frente a tantas divergências nos Tribunais, percebe-se o quanto ainda há que evoluir a ciência jurídica nas questões envolvendo os direitos civis dos transexuais, muito embora o Superior Tribunal de Justiça já venha pacificando o entendimento de que os transexuais submetidos à cirurgia de trangenitalização têm o direito de requerer a mudança de sexo e prenome nos documentos de identificação, conforme o seguinte precedente:

STJ - RECURSO ESPECIAL: Resp 737993 MG 2005/0048606-4

REGISTRO PÚBLICO. MUDANÇA DE SEXO. EXAME DE MATÉRIA CONSTITUCIONAL. IMPOSSIBILIDADE DE EXAME NA VIA DO RECURSO ESPECIAL. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SUMULA N. 211/STJ. REGISTRO CIVIL. ALTERAÇÃO DO PRENOME E DO SEXO. DECISÃO JUDICIAL. AVERBAÇÃO. LIVRO CARTORÁRIO.

EMENTA

REGISTRO PÚBLICO. MUDANÇA DE SEXO. EXAME DE MATÉRIA CONSTITUCIONAL. IMPOSSIBILIDADE DE EXAME NA VIA DO RECURSO ESPECIAL. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SUMULA N. 211/STJ. REGISTRO CIVIL. ALTERAÇÃO DO PRENOME E DO SEXO. DECISÃO JUDICIAL. AVERBAÇÃO. LIVRO CARTORÁRIO.

1. Refoge da competência outorgada ao Superior Tribunal de Justiça apreciar, em sede de recurso especial, a interpretação de normas e princípios de natureza constitucional.

2. Aplica-se o óbice previsto na Súmula n. 211/STJ quando a questão suscitada no recurso especial, não obstante a oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pela Corte a quo.

3. O acesso à via excepcional, nos casos em que o Tribunal a quo, a despeito da oposição de embargos de declaração, não regulariza a omissão apontada, depende da veiculação, nas razões do recurso especial, de ofensa ao art. 535 do CPC.

4. A interpretação conjugada dos arts. 55 e 58 da Lei n. 6.015/73 confere amparo legal para que transexual operado obtenha autorização judicial para a alteração de seu prenome, substituindo-o por apelido público e notório pelo qual é conhecido no meio em que vive.

5. Não entender juridicamente possível o pedido formulado na exordial significa postergar o exercício do direito à identidade pessoal e subtrair do indivíduo a prerrogativa de adequar o registro do sexo à sua nova condição física, impedindo, assim, a sua integração na sociedade.

6. No livro cartorário, deve ficar averbado, à margem do registro de prenome e de sexo, que as modificações procedidas decorreram de decisão judicial.

7. Recurso especial conhecido em parte e provido (STJ, REsp 737993 MG 2005/0048606-4. Relator: Ministro João Otávio de Noronha.10 de novembro de 2009).

Ainda com relação ao nome social a I Jornada de Direito da Saúde, no intuito de auxiliar nas decisões judiciais concernentes à área da saúde, aprovou 45 enunciados. Dentre estes, dois em especial, dispõem sobre os direitos dos transgêneros, e estabelecem que a cirurgia de transgenitalização seja dispensável para a retificação de nome no registro civil e para a retificação do sexo jurídico do indivíduo. 

ENUNCIADO N.º 42 Quando comprovado o desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto, resultando numa incongruência entre a identidade determinada pela anatomia de nascimento e a identidade sentida, a cirurgia de transgenitalização é dispensável para a retificação de nome no registro civil.

ENUNCIADO N.º 43 É possível a retificação do sexo jurídico sem a realização da cirurgia de transgenitalização.

Também a Resolução nº 12 de 16 de Janeiro de 2015 que trata sobre a operacionalização nas instituições de ensino, formulando orientações quanto ao reconhecimento da identidade de gênero, relata sobre o direito dos transexuais ao uso do nome social, como se pode depreender de alguns de seus artigos:

Art. 1° Deve ser garantido pelas instituições e redes de ensino, em todos os níveis e modalidades, o reconhecimento e adoção do nome social àqueles e àquelas cujas identificações civis não reflitam adequadamente sua identidade de gênero, mediante solicitação do próprio interessado.

Art. 2° Deve ser garantido, àquelas e àqueles que o solicitarem, o direito ao tratamento oral exclusivamente pelo nome social, em qualquer circunstância, não cabendo qualquer tipo de objeção de consciência.

Art. 4° Deve ser garantido, em instrumentos internos de identificação, uso exclusivo do nome social, mantendo registro administrativo que faça a vinculação entre o nome social e a identificação civil.

O presidente do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, também defende o direito do transexual em adequar sua documentação, no que concerne ao nome e ao sexo. Segundo ele, “de nada adianta superar esse impasse – a dicotomia entre a realidade morfológica e psíquica - se a pessoa continua vivendo o constrangimento de se apresentar como portadora do sexo oposto” (VIEIRA, 2000, p.98).

Os representantes atuais do Judiciário e do Ministério Público têm acompanhado a evolução científica, reconhecendo a relevância do sexo psicológico. Ademais, o advento da lei 9.708, de 18 de novembro de 1998, contribuiu para a adequação do nome, alterando a redação do art. 58 da lei 6.015/73 (Lei dos Registros Públicos), a qual prevê a imutabilidade do prenome. A atual redação prescreve que “o prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios. Parágrafo único: Não se admite a adoção de apelidos proibidos por lei” (VIEIRA, 2000, p.98).

Por fim pode-se constatar que em termos de legislação muito ainda há que se avançar no que concerne ao tema direito civil dos transexuais, ficando este assunto, amparado na Constituição Federal e principalmente nos Princípios, em especial, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

 Também há outros instrumentos que podem ser utilizados no auxílio às decisões judiciais como as resoluções, enunciados e julgados citados na confecção deste capitulo, muito embora nenhum desses instrumentos tenha força de Lei, o que gera uma imensurável sensação de insegurança jurídica para essa minoria que depende do judiciário para ver concretizado o seu direito.

 DO DIREITO À CIRURGIA

                   Hodiernamente a problemática da transexualidade tem suscitado imensurável interesse por parte da medicina, psicologia e dos Tribunais de Direito, vez que à luz das novas visões sobre o tema e da sua inegável atualidade, não se admite mais a concepção de sexo apenas como elemento fisiológico, determinado geneticamente e, portanto, imutável.

Sendo assim, as ciências biológicas e jurídicas devem se unir em prol do reconhecimento do direito dos transexuais em adequar a sua genitália ao seu verdadeiro sexo identificador, ou seja, ao sexo ao qual eles se enxergam e se aceitam, propiciando também essa adequação aos seus documentos oficiais.

A cirurgia de adequação de sexo é de natureza terapêutica, não se constituindo em uma violência punível. O indivíduo não quer simplesmente mudar de sexo. A adequação lhe é imposta de forma irresistível; portanto, ele nada mais reclama que a colocação de sua aparência física em concordância com seu verdadeiro sexo: o sexo psicológico (VIEIRA, 2000, p. 01).

Há algumas décadas a medicina tem progredido no tocante à adequação da genitália dos indivíduos que possuem plena convicção de pertencer a outro sexo. No entanto, vários questionamentos e dúvidas ainda pairam sobre os aspectos psicológicos, médicos e jurídicos que envolvem este procedimento cirúrgico, tendo em vista que há ainda muita celeuma acerca da etiologia da transexualidade, como já debatido nos capítulos anteriores.

Apesar das discussões conceituais, a cirurgia vem sendo a mais propícia solução na resolução do problema de adequação e aceitabilidade emocional dos pacientes a ela submetidos. Para o total êxito do procedimento são necessários vários procedimentos como uma triagem rigorosa dos candidatos, submetendo-os ao crivo de uma equipe multidisciplinar de profissionais especializados no assunto.

Como ficou claro no capítulo anterior, a doutrina e os Tribunais vêm se manifestando, em sua maioria, favoráveis ao acolhimento dos pedidos cirúrgicos de mudança de sexo, muito embora algumas tentativas de regulamentação da matéria, como o Projeto de Lei nº 70, de 1995, de autoria do deputado paulista José de Castro Coimbra, propondo alterações no Art.129 do Código Penal e no Art. 58 da Lei de Registros Públicos, ainda não obtiveram o almejado êxito. A lei é, sem sombra de dúvidas, a mais segura fonte para embasar as sentenças de pedido de adequação de sexo, o que deixa uma imensurável lacuna nas decisões, muito embora, a não previsão legal explícita, não justifique a recusa dos Tribunais em não atender aos anseios dos transexuais e a recusarem as novas descobertas da Medicina, vez que podem e devem tomar como pressupostos a doutrina e os Princípios Gerais do Direito.

Quanto ás questões de legalidade e licitude do procedimento cirúrgico em si, há também uma certa problemática, tendo em vista o fato de que a ablação do órgão genital constituiria uma mutilação e, consequentemente, tal fato acarretaria em cometimento de ato ilícito por parte do Médico- cirurgião.

O escopo curativo da operação exclui que possa falar-se de contrariedade à lei e à ordem pública, visto que objetiva melhorar a saúde do paciente. Assim, poderá o médico não apenas ministrar medicamentos inibidores de características de um sexo e estimuladores do sexo oposto, mas também executar a cirurgia de adequação, constituindo exercício regular da profissão. O transexual, por sua vez, exerce direito próprio, sem ofensa a direito alheio (VIEIRA, 2000, p.92).

No que concerne ao resultado da cirurgia, o cirurgião plástico não poderá ser obrigado a conseguir resultado exato e certo. O efeito estético com certeza deverá ser semelhante ao da genitália almejada, contudo a obtenção do orgasmo e do prazer sexual dependerá de vários fatores fisiológicos e psicológicos que independem da aparência estética.

A celeuma com relação a licitude ou não, do procedimento cirúrgico remonta há algumas décadas. Segundo Vieira (2000), em 6 de novembro de 1979 a 5ª Câmara do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, por votação majoritária, deu provimento ao apelo e absolveu o acusado. Eis a ementa:

Não age dolosamente o médico que, através de cirurgia,faz a ablação de órgãos genitais externos de transexual, procurando curá- lo ou reduzir seu sofrimento físico ou mental. Semelhante cirurgia não é vedada pela lei, nem pelo Código de Ética Médica (VIEIRA, 2000, p.93).

O Conselho Federal de Medicina (CFM), através da Resolução nº 1955 de 2010, autorizou a realização de cirurgias de transgenitalização em pacientes transexuais no país, alegando seu caráter terapêutico.

A resolução partiu do princípio de que “o paciente transexual é portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação ou auto-extermínio”. A intervenção cirúrgica passou a ser legítima no Brasil, desde que o paciente apresente os critérios necessários para a realização da mesma e o tratamento siga um programa rígido, que inclui a avaliação de equipe multidisciplinar e acompanhamento psiquiátrico por no mínimo dois anos, para a confirmação do diagnóstico de transexualismo (ARÁN M et al.2009 apud VIEIRA,2000,p.95).

A seleção dos pacientes, segundo a Resolução 1.955 de 2010, estabelece ainda, além do diagnóstico médico de transexualismo, a idade mínima de 21 anos, e a ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia, sendo exigido também o consentimento livre e esclarecido, de acordo com a Resolução do Conselho Nacional de Saúde - CNS n°196/96 revogada pela Resolução do Conselho Nacional de Saúde - CNS n°466 de dezembro de 2012 que regulamenta pesquisas em seres humanos no Brasil.

A doutrina majoritária entende não ser a cirurgia de ablação genital uma conduta criminosa, por não haver o dolo por parte do médico de mutilar o paciente. A intenção daquele é de curar, ou na menor das hipóteses, amenizar o sofrimento do indivíduo transexual. Ademais, o paciente assina o termo de livre consentimento esclarecido e há ainda laudos médicos e psicológicos autorizando a realização terapêutica da cirurgia.

 Juridicamente, para que uma conduta seja considerada crime, deverá estar tipificada explicitamente em lei.No caso da cirurgia de mudança de sexo, o médico está praticando ato no exercício regular de um direito, conforme o enunciado do artigo 23, inciso III, do Código Penal Brasileiro, tratando-se assim de uma cirurgia ética autorizada pelo Conselho Federal de Medicina, através da Resolução 1955 de 2010.

Destaca-se ainda entre os vários debates ocorridos sobre o tema, antes da publicação da Resolução 1955 de 2010 do Conselho Federal de Medicina, o I Encontro Nacional dos Conselhos de Medicina, nos quais pela primeira vez houve uma manifestação favorável à realização da cirurgia. Esta foi considerada o meio mais eficaz no tratamento do transexualismo, vez que possibilitaria a adequação da genitália ao sexo psicologicamente percebido pelo indivíduo transexual.

Alguns princípios serviram de embasamento e justificativa para a realização do procedimento, tais como: o princípio da beneficência, vez que a cirurgia possibilitaria a adequação entre o corpo e a identidade sexual psíquica do interessado,atrelado aos princípios da autonomia, direito de dispor do próprio corpo, e da justiça, o direito de a pessoa não ser discriminada ao pleitear a cirurgia. Tais situações culminaram na publicação da Resolução 1.482/97 do Conselho Federal de Medicina, revogada pela Resolução 1955 de 2010 do mesmo Conselho, ambas autorizando a realização da cirurgia de transgenitalização e estabelecendo os critérios para tal procedimento.

Por todo o exposto pode-se concluir que a cirurgia de mudança de sexo é uma saída eficaz para a adequação do sexo biológico ao psicológico percebido pelos indivíduos transexuais, trazendo para estes um resgate da sua cidadania, autopercepção e o respeito perante a sociedade. Muito embora ainda não haja no Brasil uma legislação específica tratando dessa questão, os Tribunais vêm entendendo favoravelmente à realização da cirurgia, valendo-se do direito comparado e dos Princípios Gerais do Direito.

 Por outro lado, é necessária urgentemente a manifestação do legislativo em termos de legalizar e positivar os direitos civis dos transexuais, vez que essa parcela da população não pode se ver amparada em um cenário de tamanha insegurança jurídica que se apresenta atualmente, a tal ponto de uma Resolução de Conselho de categoria profissional vir a ser um dos únicos pilares a embasar o direito à cirurgia de transgenitalização.

CONsiderações finais

A questão da transexualidade é uma temática delicada, visto que a grande maioria dos seguimentos da sociedade ainda se encontra arraigada de preconceitos e visões arcaicas a respeito da condição das pessoas transexuais. Mister se faz que setores dominantes da sociedade se unam para garantir minimamente os direitos desta parcela alijada da população, concedendo-lhes acesso igualitário à saúde, educação e direitos fundamentais garantido a quaisquer indivíduos na qualidade de pessoa humana.

Segundo os estudos já realizados ao longo de décadas, a condição de transexualidade não representa uma escolha, e sim, uma condição específica onde o indivíduo possui claramente e tem plena convicção de que há uma discordância entre seu sexo biológico e sua real percepção sexual psicológica. Sendo assim, embora a celeuma em torno da definição de transexualidade ainda exista, o que não se pode olvidar é que independente de ser este um estado patológico, um distúrbio comportamental ou uma mera condição biopsicológica do indivíduo, tais pessoas devem ser tratadas com respeito e dignidade. Os direitos e deveres concernentes à todos os cidadãos, devem por óbvio, contemplar os transexuais, que afinal não perdem sua condição de cidadania por assumirem sua realidade individual.

Neste ínterim, este estudo buscou reunir dois ramos do conhecimento científico: a medicina e o direito. No campo da medicina propôs se aprofundar na questão biopsiquíca que repercute na pessoa que se submete a uma cirurgia de mudança de sexo e no campo do direto, procurou contemplar o cenário dos direitos e garantias ofertadas atualmente à população transexual e quais as implicações jurídicas referentes à temática em questão.

O presente trabalho também se pautou principalmente em levantar questões e esclarecimentos acerca dos direitos dos transexuais, visto que durante muitas décadas foram-lhe cerceados os direitos e garantias de viver e conviver com os demais segmentos da sociedade local e global.

Neste mesmo diapasão buscou-se por meio de uma consistente pesquisa divulgar quais direitos constitucionais e civis alicerçam e garantem aos transexuais a liberdade de viver dignamente em sociedade, respeitando a sua condição sexual e cidadã para a plena efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana.

A fim de apresentar quais direitos constitucionais e civis alicerçam e garantem aos transexuais a liberdade de viver dignamente em sociedade, outros objetivos foram também almejados, como fundamentar as garantias constitucionais e civis dos transexuais na ordem jurídica vigente, especificar a aplicabilidade dos direitos supracitados à luz do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e observar a relação atual dos transexuais frente ao cenário social hodierno, buscando assim, fomentar no âmbito da sociedade esclarecimentos acerca dos direitos constitucionais e civis específicos aos transexuais.

Iniciando a confecção deste estudo lançamos mão, a priori, de um levantamento teórico e documental, afim de se ter embasamento e sustentação acerca dos diversos conflitos socioculturais relacionados ao tema transexualidade e dignidade da pessoa humana. Para o desenrolar do tema, utilizamos o método dialético que segundo Andrade (2010), “não envolve apenas questões ideológicas, geradoras de polêmicas. Trata-se de um método de investigação da realidade pelo estudo de sua ação recíproca”, bem como, como técnica de pesquisa, utilizamos a pesquisa bibliográfica que para Oliveira (2007) “é uma modalidade de estudo e análise de documentos de domínio científico tais como livros, periódicos, enciclopédias, ensaios críticos, dicionários e artigos científicos”.

Refletindo sobre os direitos e garantias fundamentais dos transexuais, independentemente da discussão médico-psicológica sobre a definição de tal condição, procuramos abordar qual o posicionamento do ordenamento jurídico sobre a realidade fática vivenciada por essa parcela da população e como as leis podem proporcionar eficazmente uma melhor aceitação social dessas pessoas frente às manifestações estigmatizantes de intolerância advindas da sociedade global. A discussão perpassou precisamente por dois direitos da personalidade, em especial quando vivenciados pela condição da transexualidade: o direito ao nome civil e o direito ao corpo.

 Necessário se fez também discorres sobre o papel do Estado que tem por atribuição, notadamente quando suscitada sua ação em temas polêmicos e geradores de intolerância social, como o é a transexualidade, intervir de forma a normatizar direitos, condutas e deveres em prol da melhor convivência em sociedade das minorias excluídas, fazendo valer assim a positivação na Carta Magna dos direitos e garantias fundamentais e do princípio da dignidade da pessoa humana. Constatou-se que a atuação do Poder Legislativo ainda é muito incipiente quando se trata de garantir os direitos de personalidade aos transexuais, haja vista, a falta de dispositivo legal que regulamente tanto a opção em realizar a cirurgia de mudança de gênero, como também a alteração do nome no registro civil.

Por fim, podemos concluir que, apesar dos avanços já ocorridos ao longo de décadas a respeito dos direitos e garantias dos indivíduos transexuais, notadamente no campo da saúde, tendo em vista a modernização da técnica cirúrgica de mudança de sexo, na seara jurídica muito ainda há que se avançar, vez que não há até o momento legislação específica sobre esta importante temática, ficando a cargo da doutrina e da jurisprudência dos Tribunais, decidir e dirimir conflitos concernentes ao tema transexualidade, o que denota uma imensurável fragilidade, instabilidade e insegurança jurídica para as pessoas transexuais.

Sobre o autor
Vladya Nobre

Enfermeira graduada pela Universidade Regional do Cariri - URCA; Pós graduada em Saúde Pública pela Universidade Estadual do Ceará- UECE. Bacharel em Direito pela Faculdade Paraíso do Ceará- FAP.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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