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A proteção dos direitos humanos e sua interação diante do princípio da dignidade da pessoa humana

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10/12/2003 às 00:00
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2 A internacionalização dos direitos humanos

2.1 Precedentes históricos do processo de internacionalização dos direitos humanos

É pública e notória a discussão acerca do fundamento e da natureza dos direitos humanos, especialmente quando se questiona tratarem-se eles de direitos naturais e inatos, direitos positivos, direitos históricos ou direitos atrelados ao sistema moral. Os estudos contemporâneos inclinam-se pela historicidade dos direitos humanos, uma vez que esses se constituem num processo constante de construção e aperfeiçoamento de si mesmos.

Segundo as lições de Norberto Bobbio extrai-se que "os direitos do homem nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares, para finalmente encontrarem sua plena realização como direitos positivos universais" [24].

Dada a relevância da questão da proteção dos direitos humanos, colaciona-se ao presente estudo dos precedentes históricos do processo de internacionalização e universalização dos direitos humanos: o Direito Humanitário, a Liga das Nações e a Organização Internacional do Trabalho. Outrossim, faz-se mister referir a redefinição de conceitos como a soberania estatal absoluta e o status do indivíduo no cenário internacional.

O Direito Humanitário é considerado a primeira expressão, no plano internacional, do vínculo limitativo à liberdade e à autonomia dos Estados, mesmo em se tratando de conflito armado. É um instituto relacionado diretamente com a lei da guerra, que objetiva fixar limites à atuação do Estado, assegurando, ao mesmo tempo, a observância de direitos fundamentais e a proteção das populações civis e dos militares fora de combate, como feridos, doentes, prisioneiros, náufragos.

Quando do advento da Liga das Nações, esta reforçou a idéia de relativização da soberania dos Estados. Criada após a Primeira Guerra Mundial, sua finalidade era promover a cooperação, paz e segurança internacionais e condenar as agressões externas contra seus membros. A Convenção da Liga das Nações, de 1920, apresentava preceitos genéricos referentes aos direitos humanos no tocante ao sistema das minorias e aos parâmetros internacionais do direito ao trabalho, pelos quais os Estados comprometiam-se a assegurar condições dignas de trabalho para homens, mulheres e crianças; incorporando obrigações de repercussão internacional, sob pena de incorrerem em sanções econômicas e militares impostas pela comunidade externa.

A Organização Internacional do Trabalho também influenciou o processo de internacionalização dos direitos humanos. Igualmente criada após a Primeira Guerra Mundial, tinha como objetivo promover padrões internacionais de condições de trabalho e bem estar, levando seus Estados-partes ao compromisso de assegurar condições dignas aos trabalhadores.

É possível verificar que as referidas Organizações influenciaram decisivamente, cada qual a sua maneira, no processo de internacionalização dos direitos humanos, projetando o tema dos direitos humanos na ordem internacional, e registrando o fim de uma época em que o Direito Internacional era visto apenas como a lei da comunidade internacional dos Estados. Rompeu-se, assim, com a idéia de soberania nacional absoluta, vez que foram admitidas intervenções no âmbito interno em prol dos direitos humanos.

Logo, já não mais se considera um problema de jurisdição interna a forma pela qual o Estado trata os seus cidadãos, porque delegou-se ao indivíduo o papel fundamental de sujeito de direito internacional, conferindo-lhe direitos e obrigações no plano internacional. É nessa perspectiva que se consolidam a capacidade processual internacional dos indivíduos e a concepção de que os direitos humanos, não mais se limitando à exclusiva jurisdição doméstica, constituem em matéria de legítimo interesse internacional.

2.2 O Direito Constitucional Internacional

No século XIX, a constitucionalização dos direitos humanos inaugura uma nova fase no desenvolvimento dos sistemas de proteção destes direitos. Dessa forma, os direitos constantes das Declarações de Direitos passaram a ser inseridos nas Constituições dos Estados. Nesse contexto, os Estados passam a acolher as Declarações em suas Constituições, e as Declarações de Direitos, por sua vez, vão se incorporando à história do constitucionalismo.

O Direito Internacional dos Direitos Humanos concentra seu objeto nos direitos da pessoa humana. Por conseguinte, revela um conteúdo materialmente constitucional, uma vez que os direitos humanos, ao longo da experiência constitucional, sempre foram considerados como matéria constitucional. Entretanto, no plano do Direito Internacional dos Direitos Humanos, a fonte desses direitos é de natureza internacional.

É no cerne do Direito Constitucional Internacional que se objetiva equacionar as duas sistemáticas — nacional e internacional — em prol do modelo que mais eficazmente consiga proteger os direitos da pessoa humana. Ou seja, como as duas ordens (nacional e internacional) conjugam-se para reafirmar o valor da dignidade humana.

Antônio Augusto Cançado Trindade ressalta que:

(...) no domínio da proteção dos direitos humanos, na atualidade, faz-se mister expressar no direito interno as conquistas do direito internacional, ao invés de se tentar projetar neste a medida do direito interno. Há que se reduzir a distância entre as esferas internacionalista e constitucionalista. Nesse contexto, é necessário buscar uma maior concordância e aproximação entre o direito internacional e o direito interno, conjugando-se a realidade interna com os meios de proteção internacional dos direitos humanos [25].

Na verdade existe uma identificação entre o direito internacional e o direito público interno, na medida em que constitui objeto tanto de um quanto de outro a garantia de proteção cada vez mais eficaz dos cidadãos. Reafirma-se, assim, a indissociabilidade entre direitos e garantias, revelando a anterioridade ou a precedência dos direitos individuais em face do direito estatal.

Nesse sentido, afirma Antônio Augusto Cançado Trindade que:

Nas raízes do próprio pensamento constitucionalista mais esclarecido se encontra apoio para a proteção internacional dos direitos humanos. Há pouco menos de duas décadas, Mauro Cappelletti ressaltava que a proteção dos direitos humanos, no plano do direito interno, requer instrumentos processuais adequados, e é tamanha sua importância que transcende o sistema ordinário de proteção judicial; assim, em caso de ameaça aos direitos constitucionalmente reconhecidos, há que prover meios processuais extraordinários de proteção. E é quando nem mesmo estes são disponíveis que as garantias consagradas nos tratados e instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos operam em favor dos que necessitam de proteção. E segundo estes tratados de direitos humanos não é suficiente que os Estados Partes contem com um sistema de tutela jurídica de ‘caráter genérico’; encontram-se eles na obrigação de prover instrumentos processuais adequados e eficazes para a salvaguarda dos direitos constitucionalmente consagrados. Há, entre os constitucionalistas, os que revelam sensibilidade para as afinidades e interação entre o direito internacional e o direito interno no tocante à proteção dos direitos humanos [26].

Nas últimas décadas, os instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos têm-se incorporado de modo significativo em algumas Constituições, tais como: a Constituição Portuguesa, de 1976; a Constituição da República Federal da Alemanha (com emendas até dezembro de 1983); a Constituição da Espanha, de 1978; a Constituição do Peru, de 1978; a Constituição da Guatemala, de 1985; a Constituição do Chile, de 1989; a Constituição Brasileira de 1988, dentre outras. De modo geral, nos exemplos aqui elencados, os princípios e dispositivos referentes aos direitos humanos, do Direito Internacional Público, integram o direito interno, com maior ou menor grau de hierarquia.

A atual Constituição Brasileira fortalece a tendência das Constituições recentes de reconhecer a relevância da proteção internacional dos direitos humanos, na medida em que proclama que o Brasil se rege em suas relações internacionais pelo princípio da prevalência dos direitos humanos (artigo 4º, inciso II) [27], constituindo-se em Estado Democrático de Direito que apresenta como fundamento a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III) [28], e trazendo, de modo expresso, que os direitos e garantias constitucionais não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que o país seja parte (artigo 5º, §2º) [29]. Acrescenta-se, ainda, que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais possuem aplicação imediata (artigo 5º, §1º) [30].

Ressalta-se que, na Constituição Brasileira de 1988, os direitos se fazem acompanhar necessariamente das garantias, conforme disposto no art. 5º, §1º. Do que se depreende que as conquistas do direito internacional em favor da proteção do ser humano projetam-se no direito constitucional, enriquecendo-o, e evidenciando que a busca de proteção cada vez mais eficaz da pessoa humana encontra apoio no cerne do pensamento tanto internacionalista quanto constitucionalista.

O caráter especial dos tratados de proteção internacional dos direitos humanos encontra-se, com efeito, reconhecido e sancionado pela Constituição de 1988, não se fazendo necessária a intermediação do Poder Legislativo, tal qual para os tratados internacionais em geral. Distintamente no caso de tratados de proteção internacional dos direitos humanos em que o Brasil é parte, os direitos neles garantidos passam a integrar o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados, com aplicação direta e imediata no ordenamento jurídico interno, de acordo com o artigo 5º, §§ 1º e 2º.

Desse modo, os fundamentos últimos da proteção dos direitos humanos transcendem o direito estatal, e o consenso generalizado em torno da necessidade da internacionalização de sua proteção corresponde a uma manifestação cultural atual, juridicamente viabilizada pela congruência de finalidades entre o direito internacional e o direito interno quanto à proteção da pessoa humana.

O fenômeno internacional acompanha as Constituições há muito tempo, sendo que a Constituição norte-americana foi a primeira a trazer dispositivos concernentes à ação exterior do Estado. Contudo, o tratamento constitucional do Direito Internacional, pelo menos até a Segunda Guerra Mundial, ficava adstrito ao impacto do Direito Internacional no Direito interno, restringindo-se a temas como divisão de competências em matéria de relações exteriores e incorporação do Direito Internacional pelo Direito interno.

Após a Segunda Guerra Mundial, o tratamento constitucional do Direito Internacional passou a se preocupar com o próprio conteúdo do Direito Internacional e sua organização estrutural. Nesse contexto surgem dois fenômenos importantes a saber: a Internacionalização do Direito Constitucional e a Constitucionalização do Direito Internacional.

O primeiro é visível na inclusão, em todas as Constituições modernas, de verdadeiros preceitos de Direito Internacional. O segundo revela-se pela criação de organismos políticos, a que todos os Estados juridicamente organizados aderem, organismos que adotam, à guisa de tratados fundadores, verdadeiras Constituições internacionais, providas de órgãos que assemelham-se aos existentes nas instituições internas dos Estados. Tratam-se de fenômenos complementares e concomitantes, uma vez que os sistemas constitucionais internos continuam evoluindo no sentido de internacionalizarem os seus Direitos Constitucionais num processo contínuo.

Logo, é na convergência desses dois fenômenos que se encontra o atual tratamento constitucional do Direito Internacional. Inúmeras Constituições contemporâneas estão engajadas na formação do Direito Internacional, negando-se, assim, a idéia de separação entre ordem internacional e ordem interna. É nesse contexto que se faz necessário e relevante o estudo do Direito Constitucional Internacional.

O Direito Constitucional Internacional não se configura exatamente como um ramo da ciência jurídica; sua denominação cumpre mais um papel didático, no sentido de especificar as normas constitucionais que tratam das relações internacionais e, por conseqüência, do próprio Direito Internacional.

Tal denominação é característica dos sistemas continentais, tendo apresentado especial impacto na França. Os sistemas anglo-saxônicos, por sua vez — sobretudo o norte-americano, preferem referir-se ao chamado Direito das Relações Exteriores, que seria mais abrangente que o Direito Constitucional Internacional, uma vez que envolve o tratamento constitucional e infraconstitucional das relações exteriores.

A doutrina do início do século XX tinha um especial interesse pelos temas envolvendo as relações entre o Direito interno e o Direito Internacional. Para além das teorias que buscavam explicar tal relacionamento, surgiu a noção de Direito Constitucional Internacional.

Na visão de Celso D. de Albuquerque Mello, o Direito Constitucional Internacional, pode ser definido (2000, p. 6):

Como as normas constitucionais que regulamentam as relações exteriores do estado. Estas normas variam de uma constituição para outra, isto é, entre os estados, bem como dentro do próprio estado cada constituição de acordo com o momento histórico inclui ou elimina determinadas normas [31].

No mesmo sentido, acrescenta (2000, p. 36):

O Direito Constitucional Internacional é a tentativa de adaptar a Constituição à ordem jurídica internacional que se sobrepõe a ela. A Constituição é a manifestação da soberania estatal e o DIP a sua negação ou, pelo menos, a sua crescente limitação. A nosso ver não existe um D. Constitucional Internacional por falta de um objeto definido e método próprio. O que existe são normas constitucionais de alcance internacional que devem ser analisadas em cada caso procurando compatibilizar os dois ramos da Ciência Jurídica [32].

George Rodrigo Bandeira Galindo considera que foi Mirkine-Guetzévitch quem utilizou e divulgou o termo Direito Constitucional Internacional de forma correta:

Embora seu conceito tenha variado com os anos, chega ele, em 1948, à idéia de que seria ‘um conjunto de regras constitucionais nacionais que possuem, por seu conteúdo, um significado, uma eficácia internacional’. Mas tal noção surge já no período entre-guerras, onde se desenvolve uma tendência de harmonização entre as regras de Direito Internacional e as regras de Direito Constitucional [33].

Acredita-se que a definição de Mirkine-Guetzévitch se coaduna melhor com a idéia de que os fenômenos da Internacionalização do Direito Constitucional e Constitucionalização do Direito Internacional não podem ser compartimentalizados. A influência do Direito Constitucional no Direito Internacional é justamente a maior característica do Direito Constitucional Internacional posterior à Segunda Guerra Mundial, no tratamento das relações internacionais [34].

Assim, as diversas Constituições possuem a função de construir e fortalecer o Direito Internacional, devendo seu conteúdo, portanto, cumprir este papel. Neste sentido, determinadas normas constitucionais possuem e devem possuir uma significação internacional, uma vez que são voltadas para fora e não somente para dentro do sistema jurídico interno.

2.3 O processo de internacionalização dos direitos humanos

A verdadeira consolidação do Direito Internacional dos Direitos Humanos surge em conseqüência da Segunda Guerra Mundial, em meados do século XX. Trata-se de um movimento recente na história, que surgiu como resposta às atrocidades e às violações de direitos humanos cometidas durante a dominação nazista, em que a era Hitler ficou conhecida pela lógica da destruição e da descartabilidade dos seres humanos, onde os indivíduos tornaram-se supérfluos, abolindo-se o valor da pessoa. A partir desses acontecimentos, se fez necessária a reconstrução dos direitos humanos, como paradigma ético capaz de restaurar a lógica do razoável e de aproximar o direito da moral.

Partindo dessa premissa, os esforços de reconstrução dos direitos humanos constituíram-se em referencial para a ordem internacional contemporânea. Passa-se a acreditar que a proteção dos direitos humanos ultrapassara o âmbito interno do Estado para ser concebida como problema de relevância internacional, junto à comunidade internacional, delimitando-se, por conseguinte, a soberania estatal.

Paralelamente, tem-se a necessidade de uma ação internacional mais eficaz para a garantia e proteção dos direitos humanos, fato que impulsiona o processo de internacionalização desses direitos, desencadeando o surgimento de uma sistemática normativa de proteção internacional, que possibilitou a responsabilização do Estado quando suas instituições internas demonstram-se falhas ou omissas na efetiva proteção dos direitos humanos.

Há que se considerar, neste contexto, a significativa contribuição do Tribunal de Nuremberg, entre 1945-1946, ao movimento de internacionalização dos direitos humanos, quando os aliados, ao final da Segunda Guerra Mundial, convocaram um Tribunal Militar Internacional, fruto do Acordo de Londres de 1945, com o intuito de responsabilizar os alemães pelos horrores da guerra.

Este Tribunal, invocando o costume internacional, buscou a condenação criminal das pessoas envolvidas na prática de crime contra a paz, crime de guerra e crime contra a humanidade. Ressalte-se que, de acordo com o art. 38 [35] do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, o costume internacional — enquanto evidência de uma prática geral aceita como norma — é fonte do Direito Internacional e tem eficácia erga omnes, aplicando-se a todos os Estados.

Ao aplicar o costume internacional, deliberou o Tribunal de Nuremberg:

O Direito da guerra deve ser encontrado não apenas nos Tratados, mas nos costumes e nas práticas dos Estados, que gradualmente obtêm reconhecimento universal e ainda nos princípios gerais de justiça aplicados por juristas e pelas Cortes Militares. Este Direito não é estático, mas está em contínua adaptação, respondendo às necessidades de um mundo em mudança. Além disso, em muitos casos os Tratados nada mais fazem do que expressar e definir com maior precisão os princípios de direito já existentes. (...) a agressão da guerra é não apenas ilegal, mas criminal. A proibição da agressividade da guerra é demanda da consciência do mundo e encontra sua expressão em uma série de Pactos e Tratados a que o Tribunal já fez referência [36].

Desta forma, os indivíduos que colaboraram com o nazismo foram condenados criminalmente com fundamento na violação de costumes internacionais, embora muita discussão tenha sido suscitada acerca da afronta ao princípio da legalidade do direito penal, especialmente quando se defendeu a tese de que os atos punidos pelo Tribunal de Nuremberg não eram considerados crimes quando foram cometidos.

Com efeito, notável foi o significado do Tribunal de Nuremberg para a internacionalização dos direitos humanos, eis que, além de consolidar a questão da limitação da soberania nacional, reconheceu aos indivíduos direitos protegidos pelo Direito Internacional.

2.3.1 A Carta das Nações Unidas

O processo de internacionalização dos direitos humanos fortaleceu-se após a Segunda Guerra Mundial, graças à contribuição de significativos fatores, em que se destaca a forte expansão de organizações internacionais com objetivos de cooperação internacional. As Nações Unidas, organização internacional inspirada pelas forças aliadas da II Guerra, assim como suas agências especializadas, passaram a caracterizar uma nova ordem internacional, instaurando um novo modelo de conduta das relações internacionais, essencialmente preocupado com questões atinentes à manutenção da paz e segurança internacionais, ao desenvolvimento de relações amistosas entre as nações, à cooperação internacional nas áreas social, econômica, cultural, ambiental, etc.; e, sobretudo, com a proteção internacional dos direitos humanos.

Com o intuito de facilitar o alcance desses objetivos, as Nações Unidas foram organizadas em diversos órgãos, destacando-se: a Assembléia Geral, o Conselho de Segurança, a Corte Internacional de Justiça, o Conselho Econômico e Social, o Conselho de Tutela e Secretariado, conforme dispõe o art. 7º da Carta da ONU [37], assim como outros órgãos subsidiários posteriormente criados.

Ao Conselho Econômico e Social coube promover a cooperação no que tange a questões econômicas, sociais, culturais, e aos direitos humanos. No exercício de suas atividades compete-lhe fazer as recomendações destinadas a promover o respeito e a observância dos direitos humanos e criar as comissões necessárias ao desempenho de suas funções. Destarte, foi criada, em 1946, a Comissão de Direitos Humanos da ONU, integrada por cinqüenta e três membros governamentais eleitos, para um mandato de três anos, pelo Conselho Econômico e Social.

Ao tratar da Comissão de Direitos Humanos da ONU, Flávia Piovesan citando Thomas Buergenthal (2000, p. 138), refere:

Esta comissão deve submeter ao Conselho Econômico e Social propostas, recomendações e relatórios relativos aos instrumentos internacionais de direitos humanos, à proteção das minorias, à prevenção da discriminação e demais questões relacionadas aos direitos humanos. A Declaração Universal, os pactos, as Convenções e muitos outros instrumentos de direitos humanos adotados pela ONU foram redigidos pela Comissão [38].

Para idênticos efeitos, foi criado o Alto Comissariado para os Direitos Humanos, em 1993, objetivando evitar a guerra, manter a paz e a segurança internacionais; momento em que emergem novas questões relacionadas com a promoção e a proteção dos direitos humanos. Assim sendo, a agenda da comunidade internacional passa a ter novos contornos, delineados pela coexistência pacífica entre os Estados, conjugada com a busca de formas inéditas de cooperação econômica e social e de promoção universal dos direitos humanos.

Neste sentido, a Carta das Nações Unidas de 1945 colaborou diretamente para a internacionalização dos direitos humanos, partindo do consenso entre os Estados que elevam a promoção desses direitos a propósito e finalidade das Nações Unidas. Conforme dispõe em seu artigo 1º [39], um dos propósitos das Nações Unidas é encorajar o respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião. No mesmo sentido, o artigo 55 reitera a finalidade de promoção dos direitos humanos:

Com o fim de criar condições de estabilidade e bem-estar, necessárias às relações pacíficas e amistosas entre as Nações, baseadas no respeito ao princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos, as Nações Unidas favorecerão: a) níveis mais altos de vida, trabalho efetivo e condições de progresso e desenvolvimento econômico e social; b) a solução dos problemas internacionais econômicos, sociais, sanitários e conexos; a cooperação internacional, de caráter cultural e educacional; e c) o respeito universal e efetivo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião [40].

Giza-se que, embora a Carta das Nações Unidas estabeleça a importância de se promover e de se respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais, a mesma não definiu o conteúdo e o alcance das expressões "direitos humanos" e "liberdades fundamentais", revelando uma imprecisão de linguagem. Somente, em 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, é que se definiram claramente essas expressões, por meio da fixação de um código comum e universal dos direitos humanos, concretizando-se a obrigação legal ínsita à promoção dos direitos humanos.

2.3.2 A Declaração Universal dos Direitos Humanos

A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi aprovada de forma unânime por 48 Estados, apresentando apenas 8 abstenções. Sua expressão repercutiu, inclusive, no plano moral das Nações, despertando a consciência dos povos para a questão de seus destinos. Por conseguinte, a ausência de questionamentos ou reservas por parte dos Estados em relação aos princípios da Declaração, granjeou-lhe um status de código e plataforma comum de ação, consolidando a afirmação de uma ética universal, ao consagrar um consenso sobre valores de cunho universal a serem observados pelos Estados.

Segundo Flávia Piovesan:

A Declaração Universal de 1948 objetiva delinear uma ordem pública mundial fundada no respeito à dignidade humana, ao consagrar valores básicos universais. Desde seu preâmbulo, é afirmada a dignidade inerente a toda pessoa humana, titular de direitos iguais e inalienáveis. Vale dizer, para a Declaração Universal a condição de pessoa é o requisito único e exclusivo para a titularidade de direitos. A universalidade dos direitos humanos traduz a absoluta ruptura com o legado nazista, que condicionava a titularidade de direitos à pertinência à determinada raça (a raça pura ariana). A dignidade humana como fundamento dos direitos humanos é concepção que, posteriormente, vem a ser incorporada por todos os tratados e declarações de direitos humanos, que passam a integrar o chamado Direito Internacional dos Direitos Humanos [41].

Concomitantemente à universalidade dos direitos humanos, a Declaração de 1948 traça a indivisibilidade destes direitos, dispondo sobre a categoria dos direitos civis e políticos ao lado dos direitos econômicos, sociais e culturais. Destarte, define o sentido e o alcance da expressão "direitos humanos e liberdades fundamentais", conjugando o discurso liberal e discurso social da cidadania, bem como o valor da liberdade e o valor da igualdade, constituindo-se, assim, numa extraordinária inovação.

Até então, numa perspectiva histórica, era gritante a dicotomia entre o direito à liberdade e o direito à igualdade. No final do século XVIII, as duas principais declarações anteriormente referidas (a Declaração Francesa de 1789 e a Declaração Americana de 1776), valorizavam o padrão liberal-contratualista, que reduzia os direitos humanos aos direitos à liberdade, segurança e propriedade, complementados pela resistência à opressão. O discurso liberal de cidadania, tendo como coadjuvantes os direitos humanos, firmava-se como uma reação aos excessos do regime absolutista, a fim de limitar a atuação do Estado.

Com o fortalecimento do discurso social da cidadania, aliado à teoria marxista-leninista, surgiu, em 1917, a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado da República Soviética Russa, onde o valor da liberdade desencadeou a materialização do valor igualdade e o Estado passou a ter importante atuação no processo de transformação social e de prestação social. Ao lado da Constituição de Weimar e da Constituição Mexicana, essa Declaração destacou-se por conter um discurso social da cidadania, apresentando em sua base o direito à igualdade somado a uma gama de direitos econômicos, sociais e culturais.

Na verdade, a Declaração de 1948 inaugura a concepção contemporânea de direitos humanos ao conjugar o valor da liberdade com o valor da igualdade, delegando a esses uma unidade interdependente e indivisível, o que faz com que sejam complementares e interativos. Em suma, é preciso garantir-se a efetividade dos direitos econômicos, sociais e culturais para que se assegure a realização dos direitos civis e políticos, e vice-versa.

Daí, decorre como inferência lógica não ser possível se cogitar da liberdade desvinculada da justiça social. Ou seja, todos os direitos humanos são universais, decorrentes da dignidade humana, e compõem um complexo integral, único e indivisível, em que os direitos coexistem de forma dependente e inter-relacionada.

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Como valor jurídico, a Declaração Universal de 1948 não é um tratado, tampouco possui força de lei; foi adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas como uma resolução que consagra o reconhecimento universal dos direitos humanos e das liberdades fundamentais mencionados na Carta da ONU. Assim sendo, os Estados-membros das Nações Unidas têm a obrigação de assegurar o respeito e a observância universal dos direitos constantes da Declaração.

Ainda que não possua a forma de tratado internacional, a Declaração Universal de 1948 tem força jurídica obrigatória e vinculante, uma vez que porta em si a interpretação autorizada do termo "direitos humanos" como consta na Carta das Nações Unidas. Outrossim, a natureza vinculante da Declaração é reforçada pelo fato de que, por mais de cinqüenta anos desde sua adoção, tornou-se direito costumeiro internacional e princípio geral do Direito Internacional.

José Afonso da Silva (p. 168-169) chama a atenção para o problema da eficácia das normas da Declaração Universal dos Direitos Humanos ao dispor que:

O problema é ainda mais agudo em se tratando de uma Declaração Universal, que não dispõe de um aparato próprio que a faça valer, tanto que o desrespeito acintoso e cruel de suas normas, nesses quarenta anos, constituíra uma regra trágica, especialmente no nosso continente e também no nosso país. Não é, pois, sem razão que se afirma que o regime democrático se caracteriza, não pela inscrição dos direitos fundamentais, mas por sua efetividade, por sua realização eficaz [42].

Ademais, a notória influência que a Declaração de 1948 ainda exerce sobre os ordenamentos jurídicos dos Estados deriva da evidência que os direitos nela previstos têm sido incorporados pelas Constituições nacionais e, muitas vezes, tornam-se fontes para as decisões judiciais de âmbito interno. Considera-se, ainda, de modo geral, que os Estados que desrespeitam os postulados da Declaração, violando os direitos expressos ou ultrapassando os limites impostos, merecem desaprovação incondicional por parte da comunidade internacional.

Assim sendo, o período pós-guerra impulsionou a emergência do movimento de internacionalização dos direitos humanos, criando uma sistemática internacional de proteção dos direitos humanos, mediante um sistema de monitoramento e fiscalização internacional, que elevam o tema dos direitos humanos à condição de legítimo interesse da comunidade internacional.

2.4 O Direito Internacional dos Direitos Humanos

A questão referente aos direitos inerentes à pessoa humana vem se afirmando ao longo dos tempos nas mais diversas regiões do mundo; entretanto, a abordagem jurídica dessa questão é recente e floresceu, conforme exposto, graças ao surgimento da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. No mesmo sentido, a proteção internacional dos direitos humanos vem se desenvolvendo, no decorrer da história, influenciada por movimentos sociais e políticos, teorias filosóficas, avanços científicos e jurídicos.

De acordo com os ensinamentos de Antônio Augusto Cançado Trindade:

A idéia dos direitos humanos é, assim, tão antiga como a própria história das civilizações, tendo logo se manifestado, em distintas culturas e em momentos históricos sucessivos, na afirmação da dignidade da pessoa humana, na luta contra todas as formas de dominação e exclusão e opressão, e em prol da salvaguarda contra o despotismo e a arbitrariedade, e na asserção da participação na vida comunitária e do princípio da legitimidade. O reconhecimento destes valores e conceitos básicos, formando padrões mínimos universais de comportamento e respeito ao próximo, constitui um legado, mais do que do chamado pensamento ocidental, das mais diversas culturas, da consciência universal de sucessivas gerações de seres humanos, tendo presentes suas necessidades e responsabilidades [43].

É inegável a valiosa contribuição das correntes jusnaturalistas, da democracia grega, do Renascimento e do Iluminismo, para a conceituação jurídica contemporânea dos direitos humanos, que considera esses como inerentes a cada ser humano e, sobretudo, inalienáveis, antecedendo os direitos do Estado, e elevando o valor justiça acima do direito estatal positivo.

Com o despertar da consciência individual, há o reconhecimento dos direitos pessoais e das liberdades fundamentais, vinculando-se a noção de bem comum aos direitos humanos com o intuito de se garantir a emancipação do homem de qualquer tipo de servidão. Aqui, verifica-se que o processo de generalização da proteção do ser humano, em nível internacional, originado a partir da Declaração Universal de 1948, sempre considerou a universalidade dos direitos humanos, inerentes a todo ser humano, inobstante a diversidade cultural.

Os direitos pessoais invocados na Declaração Universal de 1948 atingiram efetivamente quase todas as Constituições nacionais, estendendo seus efeitos no plano do direito interno. Mesmo apresentando uma multiplicidade cultural, religiosa, política e social, grande parte dos países buscaram ratificar ou aderir aos tratados de direitos humanos de aplicação universal.

A questão da universalidade dos direitos humanos colabora diretamente para a identificação do Direito Internacional dos Direitos Humanos como um ramo autônomo do Direito Internacional contemporâneo, constituindo-se num "direito de proteção" [44], que tem o objetivo maior de salvaguardar os direitos dos seres humanos e não dos Estados. Logo, compõe um sistema de normas, com uma multiplicidade de instrumentos internacionais de proteção, de natureza e efeitos diversos, aplicáveis tanto em nível global como em nível regional, que visam assegurar a proteção do ser humano em qualquer circunstância e em todas as áreas da atividade humana.

Aliados ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, estão o Direito Internacional Humanitário e o Direito Internacional dos Refugiados, que convergem na ampliação da proteção dos direitos humanos e prevalência destes. Na última década, constatou-se uma crescente preocupação da comunidade internacional com as condições de vida em todos os países, e, por conseguinte, com a interação entre: direitos humanos, democracia e desenvolvimento, conforme se depreende das seguintes Conferências Mundiais das Nações Unidas realizadas: a) Meio Ambiente e Desenvolvimento, Rio de Janeiro, 1992; b) Direitos Humanos, Viena, 1993; c) População e Desenvolvimento, Cairo, 1994; d) Desenvolvimento Social, Copenhague, 1995; e) Mulher, Beijing, 1995; e f) Assentamentos Humanos, Istambul, 1996.

O Direito Internacional dos Direitos Humanos sustenta que o homem é sujeito tanto do direito interno quanto do direito internacional, possuindo, em ambos casos, personalidade e capacidade jurídica próprias. Há que se considerar, assim, a constante e dinâmica interação entre o direito internacional e o direito interno, contrariando a doutrina clássica, estática e compartimentalizada, que insiste na prevalência de um sobre o outro. O elemento nuclear sempre será a proteção do homem, ou seja, a primazia da norma mais favorável às vítimas, desimportando, assim, as questiúnculas sobre primazia de ordenamentos jurídicos.

Para o cumprimento das obrigações internacionais de proteção é fundamental a participação dos órgãos e das instituições de direito interno, a quem compete aplicar concretamente os dispositivos internacionais. É nesse contexto que, para o estudo da temática dos direitos humanos, é necessária a análise das normas de direito internacional e de direito constitucional de forma harmônica e integrada.

Assim que, o Direito Internacional dos Direitos Humanos insurge-se contra a classificação simplista e fragmentada dos direitos humanos como "gerações de direitos" [45], uma vez que defende a unidade fundamental de concepção e a indivisibilidade de todo os direitos humanos, em detrimento de sua categorização em determinada geração de direitos, e a busca pela expansão e fortalecimento dos direitos individuais e sociais. Assim, não é possível coadunar-se com a seletividade discricionária em relação aos destinatários ou às condições de aplicação das normas. O Direito Internacional dos Direitos Humanos está a serviço da defesa da pessoa humana contra todas as formas de dominação e arbitrariedade.

É de se ressaltar que o Direito Internacional dos Direitos Humanos não opera sobre as relações entre iguais; outrossim, existe para defender os mais fracos, os vulneráveis, remediando os efeitos das disparidades e amenizando o desequilíbrio que afeta os direitos humanos. Constata-se, pois, que a evolução histórica da proteção internacional do direitos humanos originou-se na mobilização da sociedade civil contra a repressão, a dominação e a exclusão.

Destarte, os instrumentos de proteção internacional têm se afirmado como uma reação à violação dos direitos humanos, no momento em que se mostram falhos ou inadequados os mecanismos de direito interno. Daí, que o sentido do Direito Internacional dos Direitos Humanos está atrelado à premissa de que os direitos humanos são inerentes ao ser humano e antecedem a qualquer forma de organização política.

Por esses motivos, a proteção internacional dos direitos humanos não se esgota na ação do Estado, puramente, devendo considerar as necessidades prementes e condições das supostas vítimas. Independentemente do que o ordenamento jurídico nacional estipula, os termos e os conceitos consagrados nos tratados de direitos humanos possuem um sentido autônomo.

É nesse sentido que se constata o surgimento e a consolidação do Direito Internacional dos Direitos Humanos como disciplina autônoma e dotada de especificidades próprias, voltada à construção de uma cultura universal de observância dos direitos humanos.

2.4.1 O sistema de proteção internacional dos direitos humanos

O movimento internacional de direitos humanos e a criação de sistemas normativos de implementação desses direitos passam, então, a ocupar um lugar de destaque na agenda da comunidade internacional, propiciando o surgimento de inúmeros tratados de direitos humanos, bem como de organismos governamentais e não-governamentais comprometidos com a defesa, proteção e promoção dos referidos direitos. O processo de universalização dos direitos humanos desencadeou a necessidade de implementação dos direitos humanos, mediante a criação de uma sistemática internacional de monitoramento e controle, também conhecida como "international accountability" [46].

Partindo-se do estudo da Carta da ONU de 1945, que estabelece que os Estados-partes devem promover a proteção dos direitos humanos e liberdades fundamentais, e da Declaração Universal de 1948, que define e fixa o elenco dos direitos e liberdades fundamentais a serem garantidos, constata-se, sob um enfoque estritamente legalista, que a Declaração não apresenta força jurídica obrigatória e vinculante. Após muitas discussões acerca de qual seria o modo mais eficaz para se obter o reconhecimento e a observância dos direitos previstos na Declaração de 1948, optou-se pelo entendimento de que esta deveria ser juridicizada na forma de tratado internacional, juridicamente obrigatório e vinculante no âmbito do Direito Internacional.

De 1949 a 1966, desenvolveu-se o processo de juridicização da Declaração, que culminou na elaboração de dois tratados que passavam a incorporar os direitos constantes da Declaração: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Esse fato configurou-se na mais significativa expressão do movimento internacional dos direitos humanos, traduzindo central importância para o sistema de proteção em sua globalidade.

Juntamente com a Declaração Universal de 1948, os Pactos Internacionais de 1966 compõem a Carta Internacional dos Direitos Humanos, ou International Bill of Rights, que, por sua vez, inaugura o sistema global de proteção desses direitos, ao lado do qual já se vislumbravam os contornos dos sistemas regionais de proteção: europeu, interamericano e africano. Nesse contexto, surgem inúmeros tratados multilaterais de direitos humanos referentes a determinadas violações de direitos, como o genocídio, a tortura, a discriminação racial, a discriminação contra as mulheres, a violação de direitos das crianças, etc., que resultarão em Convenções Internacionais específicas.

É fundamental atentar para a questão de que os tratados internacionais de direitos humanos, ao contrário dos tratados internacionais tradicionais, não visam ao equilíbrio de interesses entre os Estados, e sim buscam garantir o exercício de direitos e liberdades fundamentais dos indivíduos. Da mesma forma, o Direito Internacional dos Direitos Humanos não objetiva substituir o ordenamento nacional ou se sobrepor a este; contudo, coloca-se como direito paralelo e suplementar ao direito nacional, a fim de corrigir omissões e deficiências.

No sistema internacional de proteção dos direitos humanos a comunidade internacional tem responsabilidade subsidiária, ao passo que a responsabilidade dos Estados é primária. Logo, os procedimentos internacionais possuem natureza subsidiária e constituem-se numa garantia adicional de proteção dos direitos humanos, quando as instituições nacionais falham.

Objetivando fundamentar essas assertivas, passa-se ao estudo dos tratados internacionais mais importantes do sistema global de proteção dos direitos humanos.

2.4.2 O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos

Tal qual o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, foi aprovado pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 1966, entrando em vigor somente 1976, quando obteve o número de ratificações necessárias. Até a data de 30 de junho de 1996, ratificaram o Pacto 132 Estados-partes.

O processo de elaboração desse Pacto foi permeado por intensas discussões na ONU acerca da conveniência da existência de dois pactos diversos ou de um pacto único. Inicialmente, a Comissão de Direitos Humanos operacionalizou seus trabalhos sobre um projeto único de pacto, abarcando as duas categorias de direitos. Entretanto, sob a influência dos países ocidentais, a Assembléia Geral, em 1951, propugnou pela elaboração de dois Pactos a serem aprovados simultaneamente, com o intuito de enfatizar a unidade dos direitos neles previstos.

Na verdade, a ONU não deixou de reafirmar a indivisibilidade e a unidade dos direitos humanos, ainda que houvessem dois Pactos distintos, ressaltando que, sem os direitos sociais, econômicos e culturais, os direitos civis e políticos só existiriam no plano nominal e, de outra banda, sem direitos civis e políticos, os direitos sociais, econômicos e culturais apenas existiriam no plano formal.

O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos acabou por incorporar uma gama de direitos civis e políticos mais extensa do que a apresentada na Declaração Universal. O Pacto, na verdade, estipula a obrigação dos Estados-partes assegurarem imediata aplicação dos direitos nele elencados a todos os indivíduos sob sua jurisdição, tomando as providências necessárias para isso. Logo, cabe ao Estado-parte compor um sistema legal capaz de responder com eficácia às violações dos direitos civis e políticos. Daí, resultar sua auto-aplicabilidade.

Fundamental é a colaboração de Flávia Piovesan (2002) quando afirma:

No sentido de assegurar a observância dos direitos civis e políticos, o Pacto desenvolve uma sistemática peculiar de monitoramento e implementação internacional desses direitos – uma special enforcement machinery. O Pacto oferece, assim, suporte institucional aos preceitos que consagra, impondo obrigações as Estados [47].

Ao ratificarem o Pacto, os Estados-partes, por seu turno, assumem a obrigação de encaminhar relatórios ao Comitê de Direitos Humanos, acerca das medidas tomadas nas áreas: legislativa, administrativa e judiciária, para assegurar os direitos contidos no Pacto e prestar contas à comunidade internacional. Esse Comitê é o principal órgão de monitoramento, sendo formado por 18 membros nacionais dos Estados-partes, que atuam de forma independente e autônoma, desvinculados de seu Estado, nos termos do art. 29 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos [48].

O Pacto estabelece, ainda, um mecanismo de comunicações interestatais, no qual a determinado Estado-parte é facultado alegar violação dos direitos humanos por parte de outro Estado-parte (art. 41) [49]; desde que haja uma declaração em separado, de ambos Estados envolvidos — denunciante e denunciado —, reconhecendo a competência do Comitê para tais comunicações. Ao se recorrer ao procedimento das comunicações interestaduais, admite-se o fracasso das negociações bilaterais e o esgotamento das soluções no âmbito interno. Cabe, então, ao Comitê, intervir na disputa, apresentando proposta de solução amistosa.

Além dos direitos constantes da Declaração de 1948, o Pacto ampliou o catálogo dos direitos civis e políticos, destacando-se: o direito à vida; o direito de não ser submetido à tortura ou a tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes; o direito a não ser escravizado, nem submetido à servidão; os direitos à liberdade e à segurança pessoal e a não se sujeitar à prisão ou detenção arbitrárias; o direito a um julgamento justo; a igualdade perante a lei; a liberdade de movimento; o direito a uma nacionalidade; o direito de casar e formar família; as liberdades de pensamento, consciência e religião; as liberdades de opinião e de expressão; a liberdade de associação; o direito de sindicalizar-se e o direito de voto e de participação do governo, dentre outros, nos termos dos artigos 14 [50] e 15 [51] do Pacto.

O Pacto estabelece direitos inderrogáveis, como o direito à vida, a proibição da tortura e de qualquer forma de tratamento cruel, desumano ou degradante, a proibição da escravidão e servidão, o direito de ser reconhecido como pessoa, o direito de não ser preso por inadimplemento contratual, etc. Contudo, admite, em casos excepcionais, a derrogação temporária dos direitos que apresenta, nos termos do artigo 4º [52], dentro dos limites impostos pela decretação do estado de emergência, proibindo-se atos discriminatórios fundados em raça, cor, sexo língua, religião ou origem social. Admite, ainda, se necessário à segurança nacional ou à ordem pública, a limitação de determinados direitos, conforme disposto nos artigos 21 [53] e 22 [54].

Importante referir a existência do Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, que adiciona o mecanismo das petições individuais submetidas ao Comitê de Direitos Humanos, revelando-se num significativo avanço no plano internacional. Dessa forma, é assegurado ao indivíduo o direito de denunciar violações de direitos enunciados no Pacto, sob a forma de petição, evidenciando-se a capacidade processual internacional dos indivíduos.

De qualquer sorte há que se levar em conta a necessidade da ratificação do Estado violador do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e do Protocolo Facultativo para que se admita a petição ou comunicação individual, reconhecendo, assim, a competência do Comitê. Nesse sentido, sob a forma de um Protocolo distinto e opcional, os Estados-partes podem consentir em levar ao exame do Comitê de Direitos Humanos comunicações feitas por indivíduos, que estejam sob sua jurisdição e que tenham sofrido violação de direitos constantes do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.

Na linguagem do Protocolo Facultativo a comunicação tem o caráter de ser individual; entretanto, admite-se que organizações ou terceiros interessados representem a vítima da violação, encaminhando as comunicações. Reitera-se que é fundamental que as comunicações contenham violação a um ou mais direitos previstos no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e, também, que seja comprovado o esgotamento dos recursos de jurisdição interna, bem como que a matéria não esteja sob exame de outra instância internacional.

O Comitê, após o recebimento da comunicação, abrirá prazo de 6 meses para o Estado apresentar esclarecimentos e alegações acerca da matéria suscitada. Em seguida, os esclarecimentos prestados pelo Estado serão encaminhados ao autor ou autora para análise, sendo-lhe possibilitado prestar informações adicionais. Levando em conta todas as informações, o Comitê proferirá, então, uma decisão, por meio do voto da maioria dos membros presentes, que será publicada no relatório anual do Comitê à Assembléia Geral.

Além de declarar a alegada violação a direito previsto no Pacto, o Comitê pode, outrossim, determinar que o Estado repare a violação cometida e adote as medidas necessárias à estrita implementação do Pacto. Ressalte-se, todavia, que tal decisão não apresenta força obrigatória ou vinculante e tampouco há sanção prevista para o Estado que não cumprir as determinações. Inobstante o Estado violador, quando condenado no plano internacional, está sujeito a sofrer conseqüências na esfera política por meio de sanções morais constrangedoras.

Há que se atentar para a questão de que o Brasil, embora tenha firmado o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos em 1992, não fez a declaração opcional prevista no artigo 41, referente às queixas interestatais, e tampouco aderiu ao Protocolo Facultativo de petições individuais, demonstrando a falta de interesse e vontade política sobre a matéria [55].

O Comitê de Direitos Humanos vem adotando medidas no sentido de monitorar e fiscalizar a ação dos Estados em relação às decisões do Comitê. Exemplo disso é a solicitação ao Estado de informações acerca dos procedimentos adotados em relação ao caso, num prazo de 180 dias. Logo, o relatório anual do Comitê apontará os Estados que deixaram de atender à solicitação ou que falharam no tratamento eficaz da vítima, bem como indicará os Estados que cumpriram as decisões emanadas do Comitê.

2.4.3 O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

O objetivo primordial do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais foi a incorporação e a expansão dos dispositivos relacionados com os direitos sociais, econômicos e culturais estabelecidos na Declaração Universal na forma de preceitos juridicamente obrigatórios e vinculantes. Assim, tal qual um tratado internacional, o Pacto norteou-se pela busca de uma linguagem de direitos que implicasse obrigações no plano internacional, conforme a sistemática da international accountability [56], ou seja, por meio da criação de obrigações legais aos Estados-partes, esse pacto atribui responsabilização internacional para o caso de violação dos direitos que elenca.

Até a data de 30 de junho de 1996, 134 Estados-partes ratificaram o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Este Pacto traz em seu conteúdo um extenso catálogo de direitos entre os quais se destacam: o direito ao trabalho e à justa remuneração, o direito a formar e a associar-se a sindicatos, o direito a um nível de vida adequado, o direito à moradia, o direito à educação, o direito à saúde, o direito à previdência social e o direito à participação na vida cultural da comunidade.

O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais difere-se do Pacto dos Direitos Civis e Políticos, pois, enquanto este estabelece direitos endereçados aos indivíduos, o primeiro estabelece deveres concernentes aos Estados. Os direitos sociais, econômicos e culturais apresentam uma forma de realização progressiva, ou seja, não possuem auto-aplicabilidade, uma vez que estão condicionados à atuação do Estado, a quem compete adotar todas as medidas possíveis com o intuito de alcançar progressivamente a plena realização dos direitos previstos pelo Pacto (art. 2º, parágrafo 1º) [57].

Tais direitos constituem-se em direitos relativos e programáticos, que demandam aplicação progressiva e dependem de um mínimo de recursos econômicos disponível, assim como de suporte técnico-econômico, de cooperação econômica internacional e da previsão, como prioridade, diante da agenda política do Estado. Logo, demandam o emprego de um espaço de tempo considerável em relação aos direitos previstos pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.

A sistemática de monitoramento e implementação dos direitos do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais contempla o mecanismo de relatórios a serem encaminhados pelos Estados-partes. A exemplo do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, esses relatórios devem conter as medidas adotadas pelo Estado-parte no sentido de dar cumprimento aos direitos previstos no Pacto. Esses relatórios serão submetidos ao Secretário-Geral das Nações Unidas que, por sua vez, encaminhará cópia ao Conselho Econômico e Social para análise.

O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais não cria um comitê próprio como órgão de monitoramento, diferentemente do que ocorre com o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos. Também não prevê o mecanismo de comunicação inter-estatal; tampouco, mediante Protocolo Facultativo, permite a sistemática das comunicações individuais. Logo, o mecanismo de proteção dos direitos sociais, econômicos e culturais restringe-se à sistemática dos relatórios, destacando-se que existe a obrigação dos Estados em reconhecer e progressivamente implementar os direitos enunciados no Pacto.

Flávia Piovesan (2000) reitera que:

(...) da obrigação da progressividade na implementação dos direitos econômicos, sociais e culturais decorre a chamada cláusula de proibição do retrocesso social, na medida em que é vedado aos Estados retrocederem no campo da implementação destes direitos. Vale dizer, a progressividade dos direitos econômicos, sociais e culturais proíbe o retrocesso ou a redução de políticas públicas voltadas à garantia destes direitos [58].

É fundamental que se reconheça que os direitos econômicos, sociais e culturais são autênticos e verdadeiros direitos fundamentais, integrando, além da Declaração Universal e do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, outros tratados internacionais, como a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação Racial, a Convenção sobre os Direitos da Criança e a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, etc.

Por fim, constata-se que a violação aos direitos sociais, econômicos e culturais é conseqüência tanto da ausência de forte suporte e intervenção governamental, como da falta de pressão internacional em favor dessa intervenção. Trata-se, portanto, de um problema de ação e prioridade governamental e implementação de políticas públicas, que sejam capazes de atender a graves problemas sociais. Não se pode olvidar a questão da globalização econômica, que vem agravando as desigualdades sociais e aprofundando as marcas da pobreza absoluta e da exclusão social.

Concomitante a esses dispositivos convencionais, outros de suma importância merecem referência, como abaixo se delimita.

2.4.4 Outras Convenções Internacionais de Direitos Humanos

Por certo existem outros instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos que integram e complementam o sistema especial de proteção, no plano internacional.

A partir da International Bill of Rights [59], que foi o marco do processo de proteção internacional dos direitos humanos, muitas outras Convenções e Declarações em relação à matéria passaram a tutelar determinados grupos tidos como vulneráveis e, ainda, outras relativas a determinadas violações. Tal fenômeno se deve ao surgimento e ao desenvolvimento de direitos até então não tutelados pelo ordenamento existente.

É o que Norberto Bobbio (1992, p. 68-69) [60] denomina "multiplicação de direitos" quando aborda tanto o aumento dos bens merecedores de tutela, com a ampliação dos direitos a prestação, como também a extensão da titularidade de direitos, alargando-se o próprio conceito de sujeito de direito e, abrangendo, assim, além do indivíduo, a coletividade, os grupos organizados, os grupos vulneráveis e a própria humanidade.

O processo de internacionalização dos direitos humanos, associado ao fenômeno da multiplicação dos direitos, fez surgir um complexo sistema internacional de proteção, onde interagem os sistemas geral e especial de proteção. Tratam-se de sistemas complementares, em que o sistema especial visa à prevenção da discriminação ou à proteção de pessoas vulneráveis, que necessitam de proteção especial. De fato, deixa-se de considerar o indivíduo de forma genérica e abstrata, para tomá-lo em sua especificidade e concreticidade, levando-se em conta as categorias relacionadas a gênero, idade, etnia, sexo, etc., com o intuito de reconhecer direitos endereçados às crianças, aos idosos, às mulheres, às pessoas vitimadas pela tortura e pela discriminação racial, dentre outros.

As Convenções que integram o sistema especial de proteção são direcionadas para determinado sujeito de direito, isto é, visam responder a determinada violação de direito, uma vez que adotam como sujeito de direito o indivíduo historicamente situado, levando em conta, outrossim, a peculiaridade e a particularidade de suas relações sociais. Nesse contexto, destacam-se a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra Mulher, a Convenção sobre os Direitos da Criança, a Convenção contra a Tortura, a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime do Genocídio, dentre os principais instrumentos internacionais.

Passa-se, assim, ao estudo dos direitos básicos trazidos pelas referidas Convenções e de seus respectivos mecanismos de proteção. Via de regra, tais instrumentos adotam a sistemática de relatórios; por vezes, permitem o sistema de comunicações interestatais e o sistema de petições individuais, como cláusulas facultativas. Ressalte-se que as Convenções prevêem, como órgão de monitoramento dos direitos, o chamado Comitê, que é competente para apreciar os relatórios encaminhados pelos Estados-partes e para considerar as comunicações interestatais e as individuais.

2.4.4.1 Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial

A Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial foi adotada pela ONU em 21 de dezembro de 1965, com o objetivo primordial de se erradicar o racismo, num contexto marcado pelo crescente ingresso de países africanos nas Nações Unidas, pelo ressurgimento das atividades nazifascistas na Europa e pelas preocupações ocidentais com o anti-semitismo.

É fundamental destacar no preâmbulo da Convenção que qualquer "doutrina de superioridade baseada em diferenças raciais é cientificamente falsa, moralmente condenável, socialmente injusta e perigosa, inexistindo justificativa para a discriminação racial, em teoria ou prática, em lugar algum" [61].

Em seu artigo 1º, a Convenção traz como definição de discriminação racial,

qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica, que tenha o propósito ou o efeito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade dos direitos humanos e liberdades fundamentais [62].

Logo, a discriminação remete a toda distinção, exclusão, restrição ou preferência que vise prejudicar ou anular o exercício, em igualdade de condições, dos direitos humanos e liberdades fundamentais, nos planos: político, econômico, cultural, social, civil, etc., implicando sempre desigualdade.

Impõe-se urgência nas tratativas de erradicação de todas as formas de discriminação, fundamentadas em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica, a fim de que se possa garantir o pleno exercício dos direitos civis e políticos e também dos direitos sociais, econômicos e culturais, anteriormente abordados. Ratificando a Convenção, os Estados-partes obrigam-se, no campo internacional, a eliminar a discriminação racial, de modo progressivo, assegurando uma igualdade efetiva.

Há que se considerar que o combate à discriminação constitui-se numa medida emergencial e insuficiente, fazendo-se necessária, juntamente com a proibição da discriminação, a implementação de políticas compensatórias e de estratégias promocionais que garantam a igualdade no plano material por meio da inserção e da inclusão dos grupos socialmente vulneráveis no âmbito social. Nesse sentido, a Convenção prevê no artigo 1º, parágrafo 4º, a possibilidade de "discriminação positiva" [63], também denominada de ação afirmativa, que denomina o conjunto de medidas especiais e temporárias que objetivam acelerar o processo de igualdade por parte de grupos socialmente vulneráveis, remediando-se um passado discriminatório.

Dentre os principais direitos consagrados pela Convenção, destacam-se o direito à igualdade perante a lei, sem qualquer distinção de raça, cor, origem, nacionalidade ou etnia; o direito a tratamento equânime perante os Tribunais e demais órgãos administradores da justiça; o direito a recursos e remédios judiciais quando da violação a direitos assegurados pela Convenção; o direito à segurança e proteção contra violência; o direito ao voto; a proibição de propaganda e organizações racistas; o direito de acesso aos lugares e serviços públicos, proibida qualquer discriminação, dentre outros direitos de natureza civil, política, social, econômica e cultural.

Em relação ao sistema de monitoramento, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial foi o instrumento jurídico internacional precursor sobre direitos humanos, introduzindo como mecanismo próprio de supervisão o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação Racial, que é competente para examinar as petições individuais, as comunicações interestatais e os relatórios encaminhados pelos Estados-partes. Ressalte-se que o direito de petição é previsto sob a forma de cláusula facultativa, por isso deve o Estado autorizar o Comitê a examinar as petições individuais.

Como no Protocolo Facultativo ao Pacto dos Direitos Civis e Políticos, os procedimentos para recebimento e análise das petições individuais pelo Comitê sobre a Eliminação da Discriminação Racial são bastante semelhantes. Sendo que a opinião ou a decisão do Comitê é igualmente destituída de força jurídica obrigatória ou vinculante, como ocorre com o Comitê de Direitos Humanos. Contudo, consta do relatório anual elaborado pelo Comitê que é, por sua vez, encaminhado à Assembléia Geral da ONU.

2.4.4.2 Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher

As Nações Unidas aprovaram a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, em 1979, cuja origem remanesce à proclamação de 1975 como Ano Internacional da Mulher e à realização da primeira Conferência Mundial sobre a Mulher. Até 1996, essa Convenção recebeu a ampla adesão dos Estados, contando com 154 ratificações; entretanto, este instrumento foi alvo do maior número de reservas formuladas pelos Estados, dentre os tratados internacionais de direitos humanos.

A Convenção tem como objetivos: eliminar a discriminação e assegurar a igualdade, propugnando que o princípio da igualdade seja uma obrigação vinculante. A discriminação contra a mulher reflete, nos termos de seu artigo 1º:

Toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo, exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo [64].

A Convenção prevê a possibilidade aos Estados de invocar as "ações afirmativas", já referidas anteriormente, como importante medida para acelerar o processo de obtenção da igualdade, constituindo-se numa forma de compensação para remediar as desvantagens históricas, suavizando as condições resultantes de um passado discriminatório. Dessa forma, a Convenção busca, além de erradicar a discriminação contra a mulher e suas causas, estimular ações de promoção da igualdade.

Ressalta-se a preocupação com a urgência em se erradicar todas as formas de discriminação contra as mulheres, objetivando-se a garantia do pleno exercício de seus direitos civis e políticos, como também de seus direitos sociais, econômicos e culturais. Tem-se, assim, a obrigação internacional assumida pelo Estado que ratificou a Convenção. Em suma, a Convenção reflete a visão de que as mulheres são titulares de todos os direitos e oportunidades que os homens podem exercer, com o devido ajuste das habilidades e necessidades decorrentes das diferenças biológicas e sem eliminar a igualdade de direitos e oportunidades da titularidade das mulheres.

Há que se observar que a Convenção não ataca a problemática da violência contra a mulher de modo eficaz e explícito, todavia esta violência constitui-se em grave discriminação. A violência contra a mulher é concebida como um padrão de violência específico, baseado no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher. Este preceito corrobora a tese de que, no tocante à proteção dos direitos humanos, a violação destes direitos não se reduz à esfera pública, mas também estende-se ao domínio privado.

A proteção internacional dos direitos humanos foi reforçada pela Declaração e Programa de Ação de Viena de 1993 e pela Declaração e Plataforma de Ação de Pequim de 1995, instrumentos esses que reiteraram que os direitos das mulheres são parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais.

No que tange aos mecanismos de monitoramento, a Convenção estipula um Comitê próprio, que tem sua competência limitada à apreciação dos relatórios elaborados pelos Estados-partes. Os relatórios são o único mecanismo previsto pela Convenção; entretanto, existiram propostas para a introdução dos mecanismos de petição individual e de comunicação interestatal, mediante a elaboração de um Protocolo Facultativo.

Em 1999, concluiu-se o Protocolo Facultativo à Convenção sobre Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, que instituiu dois mecanismos de monitoramento: o mecanismo da petição, encaminhando denúncias de violação de direitos enunciados na Convenção para o Comitê; e, um procedimento investigatório, que habilita o Comitê a investigar a existência de grave e sistemática violação aos direitos humanos das mulheres.

2.4.4.3 Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes

Adotada pela ONU em 1984, a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes merece importante destaque. A definição de "tortura", como consta de seu artigo 1º [65], envolve três elementos essenciais: a) a inflição deliberada de dor ou sofrimento físicos ou mentais; b) o objetivo do ato (obtenção de confissão, castigo, intimidação ou coação, ou outro motivo discriminatório); c) a vinculação do agente ou responsável, direta ou indiretamente, com Estado.

Dentre outros direitos, a Convenção consagra a proteção contra atos de tortura e outras formas de tratamento cruel, desumano ou degradante; o direito de não ser extraditado ou expulso para um Estado onde há risco significativo de sofrer tortura; o direito à indenização no caso de tortura; os direitos de que haja exame imparcial da denúncia sobre tortura e o direito de não ser torturado para obtenção de prova ilícita, como a confissão.

É fundamental referir que a Convenção estabelece a jurisdição compulsória e universal para os indivíduos suspeitos de praticar a tortura, uma vez que é um crime que viola o Direito Internacional, conforme o disposto nos artigos 5º a 8º [66]. Compulsória porque obriga os Estados-partes a punir os torturadores, independentemente da questão territorial da violação ou da nacionalidade dos envolvidos (torturador e torturado). Universal porque o Estado-parte, onde se encontre o suspeito, deverá processá-lo ou extraditá-lo para outro Estado a fim de que seja processado, independentemente de acordo prévio bilateral sobre extradição.

Quanto ao sistema de monitoramento, são previstos os três mecanismos já analisados anteriormente: as petições individuais, os relatórios e as comunicações interestatais. É mister referir que, embora as decisões do Comitê contra a Tortura não sejam legalmente vinculantes e obrigatórias, tais decisões têm efetivamente auxiliado o exercício dos direitos humanos reconhecidos no plano internacional.

Ao contrário dos demais Comitês referidos, o Comitê contra a Tortura detém a iniciativa para investigação própria, na hipótese de recebimento de informações contendo significativos indícios de que a prática da tortura seja sistemática em determinado Estado-parte.

2.4.4.4 Convenção sobre os Direitos da Criança

Trata-se de um tratado internacional de proteção de direitos humanos com o mais expressivo número de ratificações. Adotada pela ONU em 1989 e vigente desde 1990, a Convenção, nos termos de seu artigo 1º, define criança como "todo ser humano menor de 18 anos de idade, salvo se, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes" [67].

A Convenção concebe a criança como um verdadeiro sujeito de direito, reconhecendo a exigência de especial proteção e absoluta prioridade. Dentre os direitos previstos na Convenção, destacam-se: o direito à vida e à proteção contra a pena capital; o direito a ter uma nacionalidade; a proteção ante a separação dos pais; a proteção para não ser levada ilicitamente ao exterior; a proteção de seus interesses no caso de adoção; a liberdade de pensamento, consciência e religião; o direito ao acesso a serviços de saúde, devendo o Estado adotar políticas para a redução da mortalidade infantil e das práticas prejudiciais à saúde; o direito a um nível adequado de vida e segurança social; o direito à educação, devendo os Estados promoverem educação primária compulsória e gratuita, a proteção contra a exploração econômica e a proteção contra a exploração e o abuso sexual.

Os Estados-partes, ao ratificarem a Convenção, se comprometem a proteger a criança de todas as formas de discriminação, assegurando-lhe adequada assistência. Registre-se a especial preocupação da Declaração de Viena, ao insistir na ratificação universal e sem reservas dos tratados e protocolos de direitos humanos, especificamente no que tange à Convenção sobre os Direitos da Criança, propugnando pela sua efetiva implementação por todos os Estados-partes, mediante a adoção de todas as medidas legislativas, administrativas e políticas, bem como mediante a alocação de todos os recursos disponíveis.

No mesmo contexto, a Declaração de Viena insiste que é fundamental a cooperação e a solidariedade internacionais com vistas a apoiar a implementação da Convenção sobre os Direitos da Criança e os direitos da criança devem ser prioritários em toda as ações da ONU na área dos direitos humanos.

Em relação ao mecanismo de controle e fiscalização dos direitos enunciados na Convenção, há o Comitê sobre os Direitos da Criança, ao qual cabe monitorar a implementação desta Convenção, por meio do exame de relatórios periódicos encaminhados pelos Estados-partes. A partir do Protocolo Facultativo, passou-se a contar com outros mecanismos de monitoramento, como as petições individuais e as comunicações interestatais.

2.4.4.5 Tribunal Internacional Criminal Permanente e a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio

Inicialmente, acerca da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, pode-se afirmar que se trata do primeiro tratado internacional de proteção dos direitos humanos aprovado pela ONU e adotado em 1948, que surgiu como resposta às atrocidades da Segunda Guerra Mundial, especialmente o genocídio que resultou na morte de 6 milhões de judeus. A Convenção enfoca o genocídio como um crime que viola o Direito Internacional, o qual os Estados comprometem-se a prevenir e a punir.

Por genocídio, nos termos do artigo 2º, a Convenção prevê:

(...) qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tal como: a) assassínio de membros do grupo; c) submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial; d) medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo e e) transferência forçada de crianças de um grupo para outro grupo [68].

Dessa forma, as pessoas que tiverem cometido genocídio serão punidas, sejam governantes, funcionários ou particulares.

No que diz respeito ao julgamento do crime de genocídio, conforme o artigo 6º da Convenção:

As pessoas acusadas de genocídio ou de qualquer dos outros atos enumerados no art. III serão julgadas pelos tribunais competentes do Estado em cujo território foi o ato cometido ou pela corte penal internacional competente com relação às Partes Contratantes que lhe tiverem reconhecido a jurisdição [69].

Logo, constata-se que, desde 1948, havia a previsão da criação de uma corte penal internacional para o julgamento do crime de genocídio, uma vez que as instâncias nacionais mostravam-se incapazes de processar ou julgar por um crime que afrontava a ordem internacional.

Como precedentes históricos do surgimento da Corte Penal Internacional, destacam-se os Tribunais de Nuremberg e Tóquio, como também os recentes Tribunais ad hoc da Bósnia e da Ruanda, constituídos por resolução do Conselho de Segurança da ONU, respectivamente, em 1993 e 1994. Outrossim, o Programa de Ação de Viena de 1993 enfatizou a importância de um sistema internacional de justiça para apreciar as graves afrontas aos direitos humanos.

Em 1998, na Conferência de Roma, foi aprovado o Estatuto do Tribunal Internacional Criminal Permanente, de caráter permanente, independente e vinculado ao sistema das Nações Unidas, com sede em Haia, na Holanda. O Tribunal Internacional Criminal Permanente surge como aparato complementar às Cortes nacionais, com o intuito de garantir o fim da impunidade para os crimes internacionais mais graves.

Tem-se, assim, evidenciada a responsabilidade primária do Estado no que diz respeito ao julgamento de violações de direitos humanos, delegando-se à comunidade internacional a responsabilidade subsidiária. De acordo com o artigo 1º do Estatuto da Corte Penal Internacional, a jurisdição o Tribunal é adicional e complementar à do Estado, ficando condicionada à incapacidade ou à omissão do ordenamento interno.

O Tribunal tem competência para julgar os seguintes crimes: a) crime de genocídio; b) crimes contra humanidade, inclusive ataques generalizados e sistemáticos contra a população civil, sob a forma de assassinato, extermínio, escravidão, deportação, encarceramento, tortura, violência sexual, estupro, prostituição, gravidez e esterilização forçadas, desaparecimento forçado, crime de apartheid, dentre outros; c) crimes de guerra (violações ao Direito Internacional Humanitário, especialmente às Convenções de Genebra de 1949) e d) crimes de agressão (ainda não definido), conforme disposto no art. 5º do Estatuto [70].

O exercício da jurisdição do Tribunal é condicionado à adesão do Estado ao tratado, sendo necessário o reconhecimento expresso por meio da ratificação integral e sem ressalvas. Levando-se em conta que o Tribunal Internacional Criminal Permanente é complementar à jurisdição penal interna, existem requisitos de admissibilidade para o exercício da jurisdição internacional, no moldes do art. 17 [71] do Estatuto, tais como a indisposição do Estado-parte ou sua incapacidade para realizar a investigação e o julgamento do crime.

Em relação às penas, o Estatuto prevê a pena máxima de 30 (trinta) anos, como regra, e, em casos excepcionais, a prisão perpétua, se justificada pela extrema gravidade do crime e pelas circunstâncias pessoais do condenado. Poderá, outrossim, impor sanções de natureza civil, estabelecendo a reparação às vítimas e aos seus familiares.

Há que ressaltar que o Estatuto aplica-se de forma igualitária a todas as pessoas, independentemente de cargo ou posição social. Asseguram-se aos acusados as garantias de um tratamento justo em todas as fases do processo, conforme os parâmetros internacionais.

2.4.5 Convenção Americana de Direitos Humanos

O sistema regional de proteção busca internacionalizar os direitos humanos no plano regional, particularmente na Europa, América e África. De extrema relevância para o presente estudo monográfico é o sistema interamericano, uma vez que se aplica diretamente ao caso brasileiro, que tem como principal instrumento a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 que, por sua vez, estabelece a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana.

Também denominada de Pacto de San José da Costa Rica, a Convenção entrou vigor somente em 1978, sendo que apenas os Estados membros da Organização dos Estados Americanos podem ser parte. O universo de direitos civis e políticos assegurados pela Convenção Americana é similar ao contido no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, destacando-se: o direito à personalidade jurídica, o direto à vida, o direito a não ser submetido à escravidão, o direito à liberdade, o direito a um julgamento justo, o direito à compensação em caso de erro judiciário, o direito à privacidade, o direito à liberdade de consciência e religião, o direito à liberdade de pensamento e expressão, o direito à resposta, o direito à liberdade de associação, o direito ao nome, o direito à nacionalidade, o direito à igualdade perante a lei, o direito à proteção judicial, dentre outros.

A Convenção Americana não dispõe de modo expresso acerca dos direitos sociais, culturais e econômicos, limitando-se a determinar aos Estados que promovam ações neste sentido. Foi o Protocolo Adicional à Convenção, em 1988, que trouxe o reconhecimento dos direitos sociais, culturais e econômicos. Cada Estado-parte tem o dever de respeitar e assegurar o livre e pleno exercício dos direitos e liberdades constantes da Convenção Americana, sem qualquer discriminação, adotando as medidas adequadas para conferir-lhes efetividade.

A Convenção Americana apresenta uma sistemática de monitoramento e implementação dos direitos enunciados, formada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e pela Corte Interamericana.

2.4.5.1 Comissão Interamericana de Direitos Humanos

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos tem sua competência estendida a todos os Estados-partes da Convenção Americana, no que diz respeito aos direitos humanos nesta consagrados. A competência estende-se ainda a todos os Estados-membros da Organização dos Estados Americanos no que tange aos direitos previstos na Declaração Americana de 1948.

Composta por sete membros de respeitada idoneidade moral e notável saber em matéria de direitos humanos, podendo ser nacionais de qualquer Estado-membro da Organização dos Estados Americanos, que são eleitos, a título pessoal, pela Assembléia Geral para um período de quatro anos, permitida uma reeleição.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos tem como principais finalidades a observância e a proteção dos direitos humanos na América, atuando por meio das recomendações aos governos dos Estados-partes, do preparo de estudos e relatórios, da solicitação de informações relacionadas às ações adotadas para a efetiva aplicação da Convenção e da elaboração do relatório anual para a Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos. Cabe, ainda, à Comissão examinar as comunicações encaminhadas por indivíduo ou grupo de indivíduos, ou ainda entidade não-governamental, contendo denúncia de violação a direitos previstos na Convenção.

Há requisitos de admissibilidade para as petições, devendo observar-se o prévio esgotamento dos recursos internos, salvo no caso de injustificada demora processual, ou no caso da legislação interna não respeitar o devido processo legal. Essa regra do esgotamento dos recursos de direito interno corrobora a interação entre o Direito Internacional e o Direito interno e da subsidiariedade do procedimento internacional. Outro importante requisito é a inexistência de litispendência internacional, isto é, a mesma questão não pode estar pendente em outra instância internacional.

A Comissão Interamericana, ao receber uma petição, primeiramente faz o juízo de admissibilidade da mesma, observados os requisitos enunciados no art. 46 [72] da Convenção. Admitida a petição, solicita informações ao Governo denunciado. Recebidas as informações do Governo, ou transcorrido o prazo sem as informações, a Comissão verifica se existem ou subsistem os motivos da petição. Em caso negativo, arquiva-se a denúncia; do contrário, a Comissão procederá à investigação dos fatos, com o conhecimento da partes.

Após o exame da matéria, buscar-se-á uma solução amistosa entre as partes: denunciante e Estado. Alcançada esta solução, a Comissão emitirá um informe, contendo um relatório acerca dos fatos e da solução, ao peticionário e aos Estados-partes da Convenção, comunicando-se também à Secretaria da Organização dos Estados Americanos para ser publicado. Todavia, não havendo solução amistosa, a Comissão emitirá um relatório, com os fatos e conclusões concernentes ao caso e, eventualmente, com recomendações ao Estado-parte, que terá três meses para conferir cumprimento a estas recomendações.

Nesse período de três meses, o caso poderá ser solucionado pelas partes ou encaminhado à Corte Interamericana de Direitos Humanos, que é o órgão jurisdicional deste sistema regional. Não é prevista a legitimação do indivíduo para encaminhar o caso à Corte, exclusivamente a Comissão Interamericana e os Estados-partes podem fazê-lo, conforme disposição do art. 61 [73] da Convenção. Entretanto, a questão somente poderá ser submetida à Corte, havendo o reconhecimento pelo Estado-parte da competência da Corte em relação à interpretação e aplicação da Convenção.

O sistema das comunicações interestatais é previsto como cláusula facultativa, sendo necessária a declaração expressa dos Estados-partes reconhecendo a competência da Comissão para receber e examinar denúncia de um Estado em relação a outro, desconsiderando-se objetivos políticos e propósitos intervencionistas.

2.4.5.2 Corte Interamericana

A Corte é composta por sete juízes nacionais dos Estados-membros da Organização dos Estados Americanos, eleitos a título individual pelos Estados-partes da Convenção Americana. Apresenta atribuições de natureza consultiva e contenciosa; a primeira, refere-se à interpretação das disposições da Convenção Americana e dos tratados relativos à proteção dos direitos humanos nos Estados Americanos; a segunda, de caráter jurisdicional, diz com a solução de controvérsias decorrentes da interpretação ou da aplicação da própria Convenção.

Os membros da Organização dos Estados Americanos, sendo partes ou não da Convenção, podem solicitar parecer da Corte em relação à interpretação da Convenção ou de qualquer outro tratado relativo à proteção dos direitos humanos nos Estados americanos. A Corte pode também emitir opinião acerca da compatibilidade da legislação interna em face dos instrumentos internacionais.

Já no plano contencioso, a competência da Corte para o julgamento dos casos limita-se aos Estados-partes da Convenção que tenham reconhecido expressamente tal jurisdição. Reitera-se que não está prevista a legitimação do indivíduo para submeter um caso à Corte; exclusivamente a Comissão Interamericana e os Estados-partes é que detêm tal legitimidade.

A Corte tem jurisdição para examinar casos que envolvam a denúncia de que um Estado-parte violou direito amparado pela Convenção, podendo, inclusive, determinar a adoção de medidas necessárias à restauração do direito então violado, bem como condenar o Estado ao pagamento de justa compensação à vítima.

É de se ressaltar que as decisões da Corte têm força jurídica vinculante e obrigatória, devendo o Estado velar pela imediata observância. Todavia, faz-se necessário o reconhecimento pelo Estado da jurisdição da Corte. O Brasil somente veio a reconhecer a competência jurisdicional da Corte Interamericana em 1998, por meio do Decreto Legislativo nº 89, de 3 de dezembro de 1998.

Flávia Piovesan (2000) destaca que:

No plano da jurisdição contenciosa, referência obrigatória é o famoso caso ‘Velasquez Rodriguez’, atinente ao desaparecimento forçado de indivíduo no Estado de Honduras. Acolhendo comunicação encaminhada pela Comissão Interamericana, a Corte condenou o Estado de Honduras ao pagamento de indenização aos familiares do desaparecido, em decisão publicada em 21 de julho de 1989 [74].

A questão trata do desaparecimento de Angel Manfredo Velasquez Rodrigues, ocorrido em setembro de 1981, num período político conturbado, em que imperava a violência e a repressão. A denúncia revelou que esse indivíduo fora preso de modo violento e sem autorização judicial, por pessoas armadas e ligadas ao governo.

A petição denunciava que Velasquez Rodriguez fora vítima de tortura cruel e desaparecimento forçado, e afirmava que o Estado de Honduras havia incorrido na violação de vários direitos previstos na Convenção, devendo ser condenado ao pagamento de indenização aos familiares. Sendo que até 1986 a vítima continuava desaparecida, a Comissão Interamericana considerou que o Governo de Honduras não oferecera provas substanciais e convincentes para afastar a denúncia e, por conseguinte, encaminhou o caso ao exame da Corte Interamericana.

Após o procedimento investigatório e a produção de provas, a Corte fundamentou sua decisão nos seguintes termos:

O desaparecimento forçado de seres humanos é uma violação múltipla e contínua de muitos direitos constantes da Convenção, que os Estados-partes são obrigados a respeitar e garantir. Essa obrigação implica no dever dos Estados-partes de organizar um aparato governamental, no qual o poder público é exercido, capaz de juridicamente assegurar o livre e pleno exercício dos direitos humanos. Como conseqüência desta obrigação, os Estados devem prevenir, investigar e punir qualquer violação de direitos enunciados na Convenção e, além disso, se possível, devem buscar a restauração de direito violado, prevendo uma compensação em virtude dos danos resultantes da violação. (...) a falha de ação do aparato estatal, que está claramente provada, reflete a falha de Honduras em satisfazer as obrigações assumidas em face do art. 1º (I) da Convenção, que obriga a garantir a Manfredo Velasquez o livre e pleno exercício de seus direitos humanos [75].

Assim, em face da violação dos artigos 4º [76], 5º [77] e 7º [78] da Convenção, combinados com o artigo 1º (I) [79], por parte do Estado de Honduras, a Corte decidiu, de modo unânime, pela condenação ao pagamento de justa indenização aos familiares da vítima.

Vários casos já foram submetidos à apreciação da Corte. Destaca-se, ainda um caso submetido pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em que a Corte estabeleceu a adoção de medidas provisórias para proteger 14 membros de organizações de direitos humanos no Estado da Guatemala, com base no art. 63 (2) [80] da Convenção. Ressalta-se que a Convenção Americana de Direitos Humanos é o único tratado internacional de direitos humanos que dispõe acerca de medidas preliminares ou provisórias judicialmente aplicáveis.

Pelo exposto, é possível concluir que, ainda que recente a atuação da Corte Interamericana, o sistema interamericano vem se consolidando como uma importante e eficaz estratégia de proteção dos direitos humanos, quando o ordenamento interno e suas instituições revelam-se omissos ou falhos.

Estabelecidos os parâmetros vinculados à questão dos direitos humanos e sua implementação perante o sistema internacional, cumpre se fazer a análise da efetividade de implementação desta sistemática perante o sistema interno brasileiro. De fato, ao analisar este contexto, pretende-se estabelecer o real prestígio que goza a normatividade internacional nessa matéria no ordenamento doméstico, bem como a expressão comportamental dos Poderes Legislativo e Judiciário.

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Sobre a autora
Mabel Cristiane Moraes

Servidora Pública do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES, Mabel Cristiane. A proteção dos direitos humanos e sua interação diante do princípio da dignidade da pessoa humana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 157, 10 dez. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4607. Acesso em: 19 abr. 2024.

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