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A proteção dos direitos humanos e sua interação diante do princípio da dignidade da pessoa humana

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10/12/2003 às 00:00
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4 A relação entre a proteção dos direitos humanos e o princípio da dignidade da pessoa humana

4.1 Dignidade da pessoa humana: alcance e significação

Partindo-se da premissa de que o ser humano é, ao mesmo tempo e integralmente, um ser social e individual, matéria e espírito, animal e racional, enfim, complexo, reconhece-se que a filosofia democrática coaduna-se com essa complexidade do ser humano. Por fundamentar-se na dignidade da pessoa humana, a filosofia democrática é a única capaz de inspirar um regime político verdadeiramente equilibrado, que concilie a dimensão individual com a dimensão social do ser humano, seus anseios de iniciativa criadora e as exigências sociais de Justiça, seus direitos de liberdade com os princípios da ordem da autoridade.

Atualmente, o próprio conceito de democracia é indissociável do conceito de direitos da pessoa humana, pois não há constituição democrática que não pressuponha a existência de indivíduos singulares, detentores de direitos enquanto tais. Esses direitos são invioláveis, demonstrando, ainda que axiologicamente, a superioridade do ser humano em relação à sociedade da qual é integrante. Surge, nesse cenário, o dogma da dignidade da pessoa humana como valor eminente, isto é, em virtude de sua imensa dignidade, a pessoa humana é titular de um conjunto de direitos fundamentais anteriores e superiores ao próprio Estado [110].

Em relação ao significado e ao conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana, há que se dizer que não parece ser possível traçar uma definição clara e absoluta do que seja efetivamente esta dignidade, pois trata-se de conceito de contornos vagos e imprecisos. Ainda assim, sabe-se que a dignidade é algo real, facilmente identificada em situações em que sofre agressão. Neste contexto, atenta-se para a circunstância de que o princípio da dignidade da pessoa humana constitui uma categoria axiológica aberta, que abriga uma diversidade de valores presentes nas sociedades democráticas contemporâneas.

A dignidade, como um valor espiritual e moral inerente à pessoa, manifesta-se especificamente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida, portando em si a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas e constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.

Salienta-se que a dignidade, como qualidade inerente à pessoa humana, é algo que simplesmente existe, sendo irrenunciável e inalienável, na medida em que constitui elemento que qualifica o ser humano e dele não pode ser retirado. Trata-se de valor próprio, da natureza do ser humano, que independe das circunstâncias concretas e que é intrínseca a toda e qualquer pessoa humana, independente de sua condição. Tal entendimento está em consonância com o artigo 1º da Declaração Universal da ONU [111], uma vez que esta reconhece a dignidade como inerente a todos os membros da família humana e como fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.

Na visão de Dalmo de Abreu Dallari,

Existe uma dignidade inerente à condição humana, e a preservação dessa dignidade faz parte dos direitos humanos. O respeito pela dignidade da pessoa humana deve existir sempre, em todos os lugares e de maneira igual para todos. O crescimento econômico e o progresso material de um povo têm valor negativo se forem conseguidos à custa de ofensas à dignidade de seres humanos [112].

Nesse cenário, é conveniente, a título de ilustração, a decisão proferida pelo Tribunal Constitucional da Espanha, em 1985, no sentido de que "a dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que leva consigo a pretensão ao respeito por parte dos demais" [113].

À luz do que dispõe a Declaração Universal da ONU e da doutrina majoritária, o entendimento acerca do elemento nuclear da dignidade da pessoa humana reside primordialmente na autonomia e no direito de autodeterminação de cada pessoa. De outra sorte, há posicionamentos que se inclinam em considerar que a dignidade da pessoa humana não deve ser considerada exclusivamente como algo inerente à natureza do homem, na medida em que a dignidade apresenta também um sentido cultural, sendo fruto do trabalho de diversas gerações e da humanidade em seu todo.

No que respeita à clarificação do sentido da dignidade da pessoa humana, é necessário ponderar que apenas a dignidade de determinada pessoa, tomada em sua concretude, é passível de ser desrespeitada, inexistindo atentados contra a dignidade da pessoa humana em abstrato. Logo, não é lícito confundir as noções de dignidade da pessoa humana e dignidade humana, uma vez que esta diz com a humanidade, de modo genérico. Todavia, pode-se falar numa dimensão comunitária ou social da dignidade da pessoa humana, uma vez que todos são iguais em dignidade e como tais convivem em determinada comunidade.

Ante o exposto, verifica-se que não é tarefa fácil delimitar o conteúdo da dignidade da pessoa humana, salvo a análise no caso concreto. Em citação do Professor Ingo Wolfgang Sarlet [114], é válido referenciar a fórmula desenvolvida por G. Dürig, constitucionalista alemão, que afirma:

(...) a dignidade da pessoa poderia ser considerada atingida sempre que a pessoa concreta (o indivíduo) fosse rebaixada a objeto, a mero instrumento, tratada como uma coisa, em outras palavras, na descaracterização da pessoa humana como sujeito de direitos.

Desse modo, é possível verificar a existência de uma efetiva agressão contra a dignidade da pessoa humana atendo-se ao caso concreto.

Como bem assevera Cármen Lúcia Antunes Rocha, a dignidade da pessoa humana é um conceito diverso dos demais conceitos conhecidos no âmbito jurídico. A autora afirma que

a dignidade distingue-se de outros elementos conceituais de que compõem o Direito (...) a dignidade não é partida, partilhada ou compartilhada em seu conceito e em sua experimentação. Mostra-se no olhar que o homem volta a si mesmo, no trato que a si confere e no cuidado que ao outro despende [115].

Aduz ainda que:

Dignidade é o pressuposto da idéia de justiça humana, porque ela é que dita a condição superior do homem como ser de razão e sentimento. Por isso é que a dignidade humana independe de merecimento pessoal ou social. Não se há de ser mister ter de fazer por merecê-la, pois ela é inerente à vida e, nessa contingência, é um direito pré-estatal [116].

Há que se consignar que a dignidade da pessoa humana envolve necessariamente o respeito e a proteção da integridade física e corporal do indivíduo, do que decorrem, por exemplo, a proibição da pena de morte, da tortura, das penas de natureza corporal, da utilização da pessoa humana como experimento científico, limitações aos meios de prova (utilização de detector de mentiras), normas relativas a transplantes, etc. Outra dimensão associada ao valor da dignidade da pessoa humana diz com a garantia de condições justas e adequadas de vida para o indivíduo e sua família, dando-se ênfase especial aos direitos sociais ao trabalho e à seguridade social.

Outrossim, como pressuposto fundamental para o respeito da dignidade da pessoa humana está a garantia da isonomia de todos os seres humanos, que não podem sofrer tratamento discriminatório e arbitrário, razão pela qual são intoleráveis a escravidão, a discriminação racial, perseguições de cunho religioso, etc. Reitera-se também a garantia da identidade pessoal do indivíduo, tomada como autonomia e integridade psíquica e intelectual, como uma das principais expressões do princípio da dignidade da pessoa humana, que concretiza, dentre inúmeros aspectos, a liberdade de consciência, de pensamento, de culto, a proteção da intimidade, da honra e de tudo que se associe ao livre desenvolvimento da personalidade, bem como ao direito de autodeterminação sobre os assuntos concernentes à sua esfera privada.

Constata-se, após essas considerações, que, onde não houver respeito pela vida e pela integridade física do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde a intimidade e a identidade do indivíduo sofrerem ingerências indevidas, onde sua igualdade em relação aos demais não estiver assegurada, bem como onde não houver limitação do poder, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana, e esta revelar-se-á mero objeto de arbítrio e injustiças. Essa idéia de "homem-objeto" configura justamente a antítese da noção da dignidade da pessoa humana [117].

Jorge Miranda, partindo do fato de que os homens são dotados de razão e de consciência, leciona que a caracterização da dignidade respeita algumas diretrizes básicas, a saber:

a) A dignidade da pessoa humana reporta-se a todas e a cada uma das pessoas e é a dignidade da pessoa individual e concreta; b) A dignidade da pessoa humana refere-se à pessoa desde a concepção, e não só desde o nascimento; c) A dignidade é da pessoa enquanto homem e enquanto mulher; d) Cada pessoa vive em relação comunitária, o que implica o reconhecimento por cada pessoa da igual dignidade das demais pessoas; e) Cada pessoa vive em relação comunitária, mas a dignidade que possui é dela mesma, e não da situação em si; f) O primado da pessoa é o do ser, não o do ter; a liberdade prevalece sobre a propriedade; g) Só a dignidade justifica a procura da qualidade de vida; h) A protecção da dignidade das pessoas está para além da cidadania portuguesa e postula uma visão universalista da atribuição de direitos; i) A dignidade da pessoa pressupõe a autonomia vital da pessoa, a sua autodeterminação relativamente ao Estado, às demais entidades públicas e às outras pessoas [118].

Por fim, como proposta de conceituação jurídica da dignidade da pessoa humana, o Professor Ingo Wolfgang Sarlet dispõe que se trata da

qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos [119].

4.2 O princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais

Partindo-se do pressuposto de que os direitos fundamentais guardam estreita vinculação com os princípios constitucionais, pode-se afirmar que o direito à vida e os direitos de liberdade e de igualdade correspondem diretamente às exigências mais elementares da dignidade da pessoa humana. Igualmente, os direitos políticos, como o sufrágio, o voto e a possibilidade de concorrer a cargos públicos eletivos, são manifestações do princípio democrático e da soberania popular. Da mesma forma, grande parte dos direitos sociais (saúde, educação, etc.) radica tanto no princípio da dignidade da pessoa humana, quanto nos princípios que consagram o Estado Social de Direito.

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É possível se identificar os direitos fundamentais por seu conteúdo comum baseado no princípio da dignidade da pessoa humana, que é concretizado pelo reconhecimento e positivação de direitos e garantias fundamentais. Nesse sentido, o princípio da dignidade da pessoa humana, expressamente enunciado pelo artigo 1º, inciso III, da Carta de 1988, além de constituir o valor unificador de todos os direitos fundamentais, que, na verdade, são uma concretização daquele princípio, também cumpre função legitimatória do reconhecimento de direitos fundamentais implícitos, decorrentes ou previstos em tratados internacionais.

Em relação ao íntimo entrelaçamento entre o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana e os direitos e garantias fundamentais, salienta-se que o princípio da dignidade da pessoa humana é considerado o fundamento de todo o sistema dos direitos fundamentais, dando-lhes unidade e coerência, no sentido de que estes constituem exigências, concretizações e desdobramentos da dignidade da pessoa humana e assim devem ser interpretados. Relevantes também as noções de liberdade e de igualdade, indissociáveis da dignidade de cada pessoa humana, justificando o reconhecimento de direitos fundamentais estreitamente vinculados à proteção das liberdades pessoais e da isonomia.

A vinculação entre o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais abrange outros direitos fundamentais, ainda que alheios ao Título II da Carta de 1988. Sob este aspecto, outros princípios fundamentais podem ser considerados como exigências da dignidade do indivíduo, tais como o princípio democrático (artigo 1º, caput), o da soberania popular (artigo 1º, parágrafo único) [120], o do pluralismo político (artigo 1º, inciso V) [121], bem como o princípio do Estado de Direito (artigo 1º, caput), por sua vez concretizados em outras normas constitucionais. No âmbito dos direitos e garantias fundamentais, traz-se a título de ilustração os exemplos do direito de sufrágio, de voto, o direito de portar a nacionalidade brasileira, de ser titular de direitos políticos, a inafastabilidade do controle judiciário, as garantias processuais, etc.

Nesse contexto, também correspondem a explicitações, em maior ou menor graus, do princípio da dignidade da pessoa humana, os princípio ligados aos valores sociais do trabalho e da iniciativa privada (artigo 1º, inciso IV) [122] e os objetivos fundamentais da construção de uma sociedade justa, livre e solidária (artigo 3º, inciso I) [123] e da erradicação da pobreza e da marginalização (artigo 3º, inciso III) [124], que consagram a concepção do Estado social e a garantia de uma vida digna, com liberdade e igualdade reais.

4.3 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A ORDEM CONSTITUCIONAL

É dever do Estado, que tem por objetivo a realização do bem comum, o respeito e a proteção do bem comum. O direito surge, assim, como um instrumento de auxílio para a consecução deste fim. A exemplo do Estado, o direito também é uma decorrência da natureza humana e existe para o ser humano; a pessoa constitui o princípio e o fim do direito.

A pessoa humana adquire personalidade jurídica, sendo indispensável firmar-lhe direitos fundamentais para o pleno desenvolvimento de sua personalidade, seja na esfera do direito público ou do direito privado. É nesse sentido que a maioria dos ordenamentos e, sobretudo, aqueles dos Estados que almejam concretizar a democracia, preocupam-se com a dignidade da pessoa humana e sua proteção.

Torna-se indispensável a compreensão prévia do significado e do conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana, bem como de sua eficácia jurídica, à luz do ordenamento constitucional brasileiro. É sabido que a Constituição de 1988 foi a primeira na história das Constituições Brasileiras a prever um título destinado aos princípios fundamentais, tidos como normas embasadoras e informativas de toda a ordem constitucional, inclusive dos direitos fundamentais, que também integram o chamado núcleo essencial da Constituição material.

Outra relevante inovação, no âmbito do direito positivo, foi a consagração do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. Acrescente-se que o valor da dignidade da pessoa humana transita em vários planos da Carta de 1988, como na ordem econômica, ao assegurar a todos uma existência digna (artigo 170, caput) [125], na ordem social, fundando o planejamento familiar no princípios da pessoa humana e da paternidade responsável (artigo 226, caput) [126], além de assegurar à criança e ao adolescente o direito à dignidade (artigo 227, caput). [127]

Interessa consignar que a positivação do princípio da dignidade da pessoa humana é relativamente recente, passando a constar expressamente das Constituições, de modo especial após ter sido consagrado pela Declaração Universal da ONU de 1948. Ainda assim, muitos Estados integrantes da comunidade internacional não chegaram a inserir o princípio da dignidade da pessoa humana em seus textos constitucionais. Para exemplificar algumas Constituições que consagraram expressa ou indiretamente o princípio da dignidade da pessoa humana, destacam-se os seguintes países: Alemanha, Espanha, Grécia, Portugal, Irlanda, Paraguai, Cuba, Venezuela, Peru, Guatemala, dentre outros.

De suma importância é a contribuição do Professor Ingo Wolfgang Sarlet acerca do estudo do princípio da dignidade da pessoa humana ao tecer:

Com o reconhecimento expresso, no título dos princípios fundamentais, da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do nosso Estado democrático (e social) de Direito (art. 1º, inc. III, da CF), o Constituinte de 1987/88, além de ter tomado uma decisão fundamental a respeito do sentido, da finalidade e da justificação do exercício do poder estatal e do próprio Estado, reconheceu expressamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o homem constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal [128].

O princípio fundamental consagrado pela Carta de 1988 da dignidade da pessoa humana apresenta-se em uma dupla concepção. Primeiramente, prevê um direito individual protetivo, seja em relação ao próprio Estado, seja em relação aos demais indivíduos. Em segundo lugar, estabelece verdadeiro dever fundamental de tratamento igualitário dos próprios semelhantes. Esse dever configura-se pela exigência do indivíduo respeitar a dignidade de seu semelhante tal qual a Constituição Federal exige que lhe respeitem a própria. Daí, inferir-se que a dignidade da pessoa humana é ao mesmo tempo limite e tarefa dos poderes estatais.

De acordo com Alexandre de Moraes, a concepção de dever fundamental resume-se a três princípios do direito romano: honestere vivere (viver honestamente), alterum non laedere (não prejudique ninguém) e suum cuique tribuere (dê a cada um o que lhe é devido) [129].

Em relação à posição ocupada pelo princípio da dignidade da pessoa humana na Lei Maior Brasileira, há que se referir que o Constituinte de 1987/88 preferiu não incluir a dignidade da pessoa humana no rol dos direitos e garantias fundamentais, delegando-lhe o tratamento, até então inédito, de princípio fundamental do ordenamento constitucional, nos termos do artigo 1º, inciso III. Destarte, do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana podem ser deduzidas posições jurídico-fundamentais não-expressas, inclusive de natureza subjetiva, o que, aliás, foi considerado em relação aos direitos decorrentes do regime e dos princípios, bem como os constantes em tratados internacionais.

No mesmo contexto, não se pode olvidar que os direitos fundamentais são concretizações das exigências do princípio da dignidade da pessoa humana. A qualificação da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental, além de conter uma declaração de conteúdo ético e moral, constitui norma jurídico-positiva, com status constitucional, dotada de eficácia. Portanto a dignidade da pessoa humana, na condição de princípio fundamental, constitui valor-guia não apenas dos direitos fundamentais, mas de toda a ordem constitucional, razão pela qual se justifica plenamente sua caracterização como princípio constitucional de maior hierarquia axiológica-valorativa.

Partindo-se da premissa de que todas as normas constitucionais, inclusive as que expressam princípios, são dotadas de alguma eficácia jurídica, pode-se constatar que toda a atividade estatal e todos os órgãos públicos se encontram vinculados pelo princípio da dignidade da pessoa humana, impondo-se, assim, um dever de respeito e proteção, que se exprime tanto na obrigação por parte do Estado de se abster de ingerências na esfera individual que sejam contrárias à dignidade pessoal, quanto no dever de protegê-la contra agressões alheias.

Nesse sentido, o princípio da dignidade da pessoa humana identifica-se não apenas com o dever de abstenção e respeito, mas também em relação a condutas positivas tendentes a efetivar e proteger a dignidade do indivíduo. Com efeito, sustenta-se que a concretização do programa normativo do princípio da dignidade da pessoa humana incumbe aos órgãos estatais, especialmente ao legislador, encarregado de edificar uma ordem jurídica que corresponda às exigências do princípio.

Por outro lado, enfatiza-se a função integradora e hermenêutica do princípio, uma vez que este configura um parâmetro para a aplicação, interpretação e integração de todo o ordenamento jurídico, imprimindo à Carta de 1988 a condição de "Constituição da pessoa humana por excelência". [130] Assim sendo, afirma-se que o exercício do poder e a ordem estatal em seu todo serão legítimos caso observarem o respeito e a proteção da dignidade da pessoa humana, verdadeiro pressuposto da democracia.

Tem-se que o princípio da dignidade da pessoa humana constitui o reduto intangível de cada indivíduo, sendo, portanto, a última fronteira contra quaisquer ingerências externas; entretanto, isso não significa a impossibilidade de se estabelecer restrições aos direitos e garantias fundamentais, mas, sim, que as restrições efetivadas não ultrapassem o limite intangível imposto pela dignidade da pessoa humana.

A positivação da dignidade da pessoa humana torna cristalina sua condição de valor jurídico, e a sua constitucionalização na forma de norma, de princípio, expresso no primeiro artigo da Constituição Federal, atrelado diretamente à definição mesma do Estado do Brasil, um Estado Democrático de Direito, simplesmente corrobora que a pessoa humana é o fim maior do direito e do Estado.

Resta demonstrado, por sua vez, que tudo que consta no texto constitucional pode ser reconduzido, ainda que de modo indireto, ao valor da dignidade da pessoa humana. Reitera-se que o princípio da dignidade da pessoa humana pode, com efeito, ser tido como critério basilar, mas não exclusivo, para a construção de um conceito material de direitos fundamentais.

Diante do exposto, é possível concluir-se que a dignidade da pessoa humana é valor jurídico, fundamento e fim do Estado brasileiro, princípio constitucional e, como tal, norma jurídica. Trata-se de um princípio absoluto, porém aberto em seu conteúdo, que tem função de legitimação material da Constituição, serve de parâmetro de constitucionalidade das demais normas do ordenamento, possui superioridade interpretativa e projeção normativa e que é norma de conduta que vincula tanto os poderes públicos como os cidadãos [131].

4.4 A influência da proteção dos direitos humanos na construção da dignidade da pessoa humana

A noção de direitos humanos implica que se trata de direitos atribuíveis a cada ser humano enquanto tal, que esses direitos são vinculados à qualidade de ser humano, não fazendo distinção entre eles e não se estendendo a mais além. A pessoa possui uma dignidade que lhe é própria e merece respeito enquanto sujeito moral, livre e responsável, e cabe ao direito protegê-la.

Nesse sentido, leciona Chaïm Perelman:

Com efeito, se é o respeito pela dignidade humana a condição para uma concepção jurídica dos direitos humanos, se trata de garantir esse respeito de modo que se ultrapasse o campo do que é efetivamente protegido, cumpre admitir, como corolário, a existência de um sistema de direito com um poder de coação. Nesse sistema, o respeito pelos direitos humanos imporá, a um só tempo, a cada ser humano – tanto no que concerne a si próprio quanto no que concerne aos outros homens – e ao poder incumbido de proteger tais direitos a obrigação de respeitar a dignidade da pessoa. Com efeito, corre-se o risco, se não se impuser esse respeito ao próprio poder, de este, a pretexto de proteger os direitos humanos, tornar-se tirânico e arbitrário. Para evitar esse arbítrio, é, portanto, indispensável limitar os poderes de toda autoridade incumbida de proteger o respeito pela dignidade das pessoas, o que supõe um Estado de direito e a independência do poder judiciário. Uma doutrina dos direitos humanos que ultrapasse o estádio moral ou religioso é, pois, correlativa de um Estado de direito [132].

Levando-se em conta que o respeito pela dignidade da pessoa fundamenta uma doutrina jurídica dos direitos humanos, esta pode igualmente, ser considerada uma doutrina das obrigações humanas, pois cada indivíduo tem a obrigação de respeitar o outro e de se fazer respeitar. Assim também o Estado, incumbido de proteger esses direitos e de fazer que se respeitem as obrigações correlativas, além de ser obrigado a se abster de ofender esses direitos, deve, outrossim, propugnar pela manutenção da ordem. Ele também tem a obrigação de criar as condições favoráveis ao respeito à pessoa por parte de todos os que dependem de sua soberania.

O respeito pela dignidade da pessoa é tido como um princípio geral de direito comum a todos os povos civilizados. Entretanto, esse acordo geral apenas diz respeito a noções abstratas, cujo caráter vago e impreciso, aparecerá imediatamente quando se tratar de passar do acordo sobre o princípio para as aplicações particulares. Com efeito, como os diferentes direitos humanos não estão hierarquizados nas declarações que os enunciam, os textos não apresentam soluções para os conflitos que podem surgir, tanto entre os diversos direitos humanos, como entre estes e os direitos do Estado.

Diante do exposto, compreende-se que a aplicação de textos atinentes aos direitos humanos só pode ser delegada a um tribunal que detenha a confiança dos jurisdicionados. Daí o caráter essencial, ao lado de diversas declarações universais que só podem ter uma importância programática, de pactos regionais que não só proclamam os direitos que devem ser respeitados, mas estabelecem cortes de justiça que propugnem pela aplicação de uma ideologia relativamente uniforme e comum aos Estados signatários.

Ressalta-se que, diante das divergências sobre a própria idéia da pessoa humana e sobre as obrigações impostas pelo respeito à sua dignidade, pode parecer utópico, a até mesmo perigoso, acreditar-se que exista uma verdade absoluta nessa questão, uma vez que essa tese autorizaria os detentores do poder a impor suas ideologias, suprimindo, por conseguinte, toda opinião contrária. Todavia, se, no plano filosófico puramente teórico, divergências são normais e inevitáveis, impõe-se, para a salvaguarda prática dos direitos humanos, que não somente textos os proclamem, mas que instituições, normas procedimentais e homens, animados pela tradição e pela cultura, sejam incumbidos de aplicá-los e protegê-los.

No que tange aos direitos humanos, não há critério objetivo que permita definir a fronteira de equilíbrio entre os direitos de uns e de outros. A tradicional distinção entre as concepções liberal e socialista dos direitos humanos, correlativa de uma obrigação passiva que é abster-se, e de obrigações ativas, quais sejam as de propiciar meios efetivos que favoreçam o desenvolvimento da pessoa, não é uma distinção de natureza, e sim de grau.

De fato, o mais elementar dos direitos humanos, o direito à vida, por si só implica a constituição de um aparato que proteja a ordem pública, e, portanto, gerando para o Estado a obrigação de se dotar de meios que lhe permitam cumprir seu papel de guardião. Isso acarreta ao Estado um aumento de encargos e, portanto, as obrigações impostas pelo Estado a todos os que dependem de sua soberania. Aumentando dessa forma o papel e o poder do Estado, aumenta-se consideravelmente o risco de abuso e se favorece a proliferação de uma burocracia, tanto menos controlável por invadir mais setores.

Para se combater o perigo que o Estado moderno pode causar a liberdade, Chaïm Perelman defende uma descentralização crescente do poder [133], a fim de evitar os abusos de um Estado tentacular. Nesse cenário, para combater a arbitrariedade, é indispensável dar preeminência a um poder judiciário independente que, zelando por impedir os descaminhos do poder, poderá fazer uma interpretação extensiva ao princípio da igualdade perante a lei, impedindo-se, assim, qualquer discriminação injustificada.

O respeito ao princípio da igualdade, por todos os detentores do poder, teria como efeito impedir uma limitação arbitrária da liberdade de uns em proveito dos outros. Ao aplicar o princípio da justiça formal que exige o tratamento igual de situações essencialmente semelhantes, os tribunais superiores, na medida em que controlam a constitucionalidade das leis, zelarão por que as distinções estabelecidas em lei não sejam desarrazoadas, e sim justificadas pelos objetivos perseguidos.

Ainda que não exista critério objetivo e impessoal para determinar com precisão o limite entre o que é razoável e o que não o é, este limite não é, todavia, puramente subjetivo, uma vez que está atrelado às concepções e às reações do meio. Por isso, somente numa comunidade suficientemente homogênea, em que exista um consenso suficiente sobre o que é razoável ou desarrazoado, é que pode funcionar de forma satisfatória um sistema de direito democrático.

Daí inferir-se que, na ausência de um consenso sobre as questões essenciais apresentadas à comunidade, o sistema de direito e seus órgãos respectivos carecerão da autoridade necessária para se impor de outro modo que não seja por meio da força. Por isso, parece utópico a existência de uma ordem jurídica internacional, pois não há comunidade internacional suficientemente homogênea do ponto de vista cultural e moral.

É por essa razão que um sistema de direito positivo, que proteja os direitos do homem no plano internacional, impor-se-á, inicialmente, na esfera regional entre parceiros que estão de acordo sobre o essencial nessa área. Tal visão conduz, na melhor das hipóteses, a uma descentralização entre unidades de maior ou menor homogeneidade, acompanhada, num âmbito federal, de um pluralismo e de uma tolerância mútua entre sistemas políticos com ideologia diferente. É essa conclusão que se impõe na construção de um sistema de direito internacional legítimo, ou seja, que fundamentaria sua autoridade sem recorrer ao uso da força.

A determinação e a salvaguarda dos direitos do homem supõe um sistema de direito positivo, com suas normas e seus juízes, eis que a proliferação de regras gera crescente e constante conflito. A fim de evitá-lo ou dirimi-lo, cumpriria uma legislação complexa para dar precisão e hierarquia aos diversos direitos, redundando, por sua vez, numa intervenção crescente do Estado na esfera privada e na instauração de uma burocracia que desempenhe papel de guia, guardião e árbitro.

Evidentes os numerosos abusos que daí podem decorrer e a necessidade de submeter os poderes legislativo e o executivo ao controle do poder judiciário, que teria de zelar para que o poderes se exerçam no âmbito de um conjunto de valores e de princípios que desfrute um consenso suficiente da comunidade.

Para se alcançar um consenso conforme o descrito é preciso um longo processo educativo, tal como se realiza numa comunidade que apresente, além de um passado comum, valores e aspirações comuns, arraigados numa mesma tradição religiosa ou ideológica. Na medida em que a salvaguarda dos direitos humanos se realiza melhor no seio de uma comunidade nacional, com o poder de autodeterminação, capaz de defender sua autonomia e sua independência, ocorre uma passagem natural da doutrina dos direitos do homem para a doutrina dos direitos das comunidades. Dessa forma, o respeito pela dignidade do homem conduz ao respeito pelas entidades nacionais de que ele faz parte.

A proteção dos direitos humanos, na visão de Chaïm Perelman [134], originou-se da proteção e do respeito pela atividade filosófica, pois esta sempre buscou, por meio da verdade e da razão, a emancipação do pensamento como forma de oposição à autoridade e à tradição impostas pelo poder.

Sob o fundamento da consciência ética coletiva, convicção largamente estabelecida na comunidade, encontra-se a razão para a vigência dos direitos humanos além da organização estatal, uma vez que a dignidade da condição humana exige o respeito a certos bens ou valores em qualquer circunstância [135].

Daí que a Constituição, instrumento do Estado, ao elencar e proteger os direitos fundamentais (individuais, sociais e políticos), transforma-os em direitos do cidadão, e, além disso, ao incorporar os títulos que tratam da ordem econômica e social: põe-se em busca de justiça social. É nesse sentido que se objetiva a construção da civilização da cidadania mundial, com o respeito integral aos direitos humanos, segundo o princípio da solidariedade ética e os ditames da justiça social.

Fundamentais os papéis da publicidade dos casos de violações de direitos humanos e da pressão internacional, quando as violações são submetidas à arena internacional, à medida em que colaboram diretamente para compelir determinado Estado a se justificar, evidenciando uma tendência a alterações na própria prática do Estado relativamente aos direitos humanos e, por conseguinte, proporcionando um significativo avanço no modo pelo qual estes direitos são nacionalmente respeitados e implementados.

Logo, verifica-se que a ação internacional constitui uma importante estratégia para o fortalecimento da sistemática de implementação dos direitos humanos, proporcionando que o Direito Internacional dos Direitos Humanos estimule a redefinição do conceito de cidadania no plano interno. Dessa forma, amplia-se o conceito de cidadania uma vez que prevê não somente os direitos previstos no ordenamento nacional, como também os direitos internacionalmente enunciados.

O relacionamento entre os direitos humanos, de matriz internacional, e os direitos fundamentais constitucionais, que são concretizações positivadas das exigências do princípio da dignidade da pessoa humana, levam à constatação de este princípio converteu-se no coração do patrimônio jurídico-moral da pessoa humana, estampado nos direitos fundamentais acolhidos e assegurados na forma posta no sistema constitucional [136].

Por derradeiro, colaciona-se a importante contribuição de Cármem Lúcia Antunes Rocha a fim de corroborar os argumentos expostos ao longo deste estudo:

De se observar que aquele princípio é conjugado com o da cidadania, o que evita que o individualismo seja tomado de maneira exacerbada, conduzindo a uma condição social na qual se infirmem os interesses e bens de toda a coletividade. A afirmação da cidadania ao lado do princípio da dignidade da pessoa humana impede que se pense o sistema como uma ilusão perigosa no sentido de ser embaraço à liberdade política democrática que há de ser estendida ao todo e não apenas a uma parcela da sociedade. De outra parte, também impõe que os caprichos individuais não segreguem grupos ou pessoas e que os grandes debates não percam a dimensão da humanidade que está em cada um como representação do todo [137].

Contra todas as formas de desumano tratamento, em detrimento do princípio da dignidade da pessoa humana, pela inclusão no direito e pelo direito de todos os homens, é que o milênio que se aproxima volta-se ao humanismo ético procurando a realização do ser humano integral, aquele que integra o homem ao todo e propõe a crença no homem, certo de que o homem supera-se sempre e em todos os sentidos [138].

Assuntos relacionados
Sobre a autora
Mabel Cristiane Moraes

Servidora Pública do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES, Mabel Cristiane. A proteção dos direitos humanos e sua interação diante do princípio da dignidade da pessoa humana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 157, 10 dez. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4607. Acesso em: 29 mar. 2024.

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