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A efetividade das normas constitucionais:

as normas programáticas e a crise constitucional

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26/01/2004 às 00:00
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4- A EFETIVIDADE DAS NORMAS E A CRISE CONSTITUCIONAL: SUA SUPERAÇÃO

Depois de analisados os planos de concretização normativa, os tipos de normas constitucionais e seus efeitos, com atenção especial às normas programáticas, almejamos agora tecer breves considerações históricas para atestar que as críticas e a relativa falta de efetividade de certas normas constitucionais são fruto de um momento de transição do Constitucionalismo, que caminha para modificações profundas principalmente no patamar do relacionamento Sociedade - Estado.

Neste item, observaremos a Crise vivida pelo Constitucionalismo e as necessárias mudanças que o Direito Constitucional deve sofrer para que suas normas e princípios sejam respeitados e realmente efetivados tanto jurídica como socialmente.

O movimento constitucionalista moderno surgiu no séc. XVIII quando do avento da Revolução Francesa e da Independência das 13 Colônias Britânicas na América do Norte.

Neste momento histórico, apoiado na doutrina do liberalismo, o Poder Público - Estado - não passava de mero espectador da vida social e econômica. A função do Estado era apenas a de resguardar a liberdade do indivíduo, expressa nas Declarações de Direitos e Garantias. Preocupava-se, apenas, o ente estatal em criar uma Constituiçâo Orgânica que detalhasse a estrutura do Estado e preservasse certos direitos civis e políticos da comunidade. (DANTAS, 1994.1:22)

Toda a ideologia constitucional se centrava, pois, nas Declarações de Direitos. Não se importavam as Constituições Liberais com as relações sociais, tendo um conteúdo e substância bastante sucintos. Existia apenas uma preocupação com o Estado, sua estrutura e com o indivíduo, isoladamente considerado.

Também é importante ressaltar que as primeiras Declarações de Direitos no séc. XVIII tinham um alto grau de programaticidade e não eram nem mesmo incluídas no Corpo das Constituições. Mesmo a concretização dos direitos à liberdade e igualdade não geravam de início direitos subjetivos públicos, faltando meios processuais idôneos para garanti-los em sua plenitude. Isto acontecia porque a sociedade estava passando por um momento de transição e crise, que só teve sua superação com a Constituição Belga de 1832.

A Constituição Belga foi de fundamental importância, incorporando as Declarações de Direitos como artigos da Constituição, tornando-os verdadeiros direitos públicos subjetivos positivados e exercitáveis por meio de instrumentos processuais previstos na própria Carta Fundamental. Foi o momento de ganho de positividade e concretização dos direitos individuais de 1ª geração, correspondendo ao fim das Crises provenientes da passagem do Feudalismo para o Capitalismo, com o coroamento da ideologia liberal.

Paulo Bonavides atesta que " a Constituição belga de 1832 é, todavia, documento constitucional de culminante importância: resume a plenitude jurídica de instituições que entraram na história debaixo de resignação do Estado de Direito. Se houve exagero de quem a batizou com o epíteto de ‘mãe das Constituições'', não cometeria excesso, porém quem a reputasse a Constituição per excelência do Estado Liberal e de sua estrutura jurídica." (BONAVIDES, 1993:205)

O segundo momento de crise constitucional, que repercutiu na reformulação da estrutura das Cartas Magnas, foi o surgimento da doutrina socialista que atacava o modo de produção capitalista e seu caráter destrutivo e explorador da sociedade e dos trabalhadores.

Surgia, então, o constitucionalismo social, baseado no Estado de Bem-estar, no qual foram inclusos nos textos fundamentais dispositivos de ordem social e econômica. A Constituição passa a denotar - além de uma preocupação com a organização do Estado e com o indivíduo isoladamente - uma atenç5o especial com a Sociedade e seu desenvolvimento.

Vem a Constituição de Weimar, trazendo os direitos sociais que são preceitos implicadores em um atuar do Estado, vinculando o ente estatal a prestações positivas, a um fazer, prestando serviços de saúde, educação, saneamento, etc. Como lembra Ivo Dantas, " passa-se, portanto, da Democracia Política para a Democracia Social, da Ideologia Constitucional Liberal à Ideologia Constitucional Social. O Lema do Estado Liberal (...) cede lugar à presença do Estado que assume o papel e a responsabilidade de oferecer ao Homem um mínimo de condições para viver com dignidade." (DANTAS, 1994.1:25)

O fato é que o Estado não estava preparado para oferecer tantos serviços e prestações sociais e econômicas à população. Acabou-se, então, por garantir estes direitos de modo programático, perdendo a Constituição certa juridicidade.

Esta Crise derivada do surgimento do Constitucionalismo Social continua a repercutir atualmente, pois o Estado prevê muitos direitos sócio-econômicos para melhorar a vida do cidadão, mas não confere aos mesmos um tom de efetividade normativa ou social.

Com isenção científica, temos de entender como Paulo Bonavides que " o recurso às normas programáticas, tendo em vista reconciliar o Estado e a Sociedade, de acordo com as bases do pacto intervencionista, conforme sói acontecer no constitucionalismo social do século XX, deslocou por inteiro o eixo de rotação das Constituições nascidas durante a segunda fase do liberalismo, as quais entraram em crise. Uma crise que culminou com as incertezas e paroxismos da Constituição de Weimar, onde se fez, por via programática a primeira grande abertura para os direitos sociais " (BONAVIDES, 1993:210)

Também, é vital ressaltar que a efetividade das normas programáticas, ou seja, a concretização fático-social dos direitos sociais, econômicos e dos princípios e objetivos constitucionais, não dependem só do Estado, como diz a doutrina clássica.

Deve haver um comprometimento de toda a Sociedade, pois o que se discute na realidade, quando se busca a eficácia da maioria das normas programáticas, é a construção de uma cidadania real para cada Estado. Esta cidadania não é construída apenas pelo desenvolvimento eficaz de políticas sociais pelo Estado, mas pela participação da Sociedade com a colaboração e atuação concreta no desenvolver do espírito de solidariedade e de cidadania.

Aqui não se defende a saída do Estado da seara social, como querem os neoliberais. Procura-se na realidade perceber que os caminhos são tortuosos e exigiram esforço para a consecução de uma sociedade mais igualitária e justa. Esforço e sacrifício que implicarão em apoio efetivo de toda a coletividade na luta contra a pobreza, fome e a falta de dignidade humana que tanto assolam as várias nações do mundo dito civilizado. (cf. BARACHO, 1995)

Essa participação mais efetiva da Sociedade junto ao Estado na busca da solução dos graves problemas sociais existentes está previsto, por exemplo, no Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado Brasileiro. Afirma-se neste estudo aprovado pelo Congresso Nacional em 21 de setembro de 1995 que: " o Projeto das Organizações Sociais tem como objetivo permitir a descentralização de atividades no setor de prestação de serviços não-exclusivos, no quais não existe o exercício do poder de estado, a partir do pressuposto que esses serviços serão mais eficientemente realizados se, mantendo o financiamento do estado, forem realizados pelo setor público não-estatal."

Na atualidade, o constitucionalismo não cuida mais do Estado ou do indivíduo isoladamente (fase liberal), nem tampouco se preocupa com a Sociedade como um todo (fase social-democrática). O constitucionalismo passa a se ater e se preocupar com o Indivíduo inserido na Sociedade, como um ser humano, que deve ser tratado com dignidade e ter seu espaço privado, vivendo em condições dignas para ser FELIZ.

A busca da felicidade, como realização efetiva do ser humano, deve ser o objetivo principal dos Estados na evolução constitucional. E esta felicidade só será atingida com o trabalho de TODA a sociedade através de um redimensionamento do papel do Estado e do entendimento de quais são os limites entre o espaço público e o privado.

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Quando este momento for atingido, sem apelo ao discurso jusnaturalista, as normas programáticas atingirão sua eficácia plena e irrestrita. O Estado, em parceria com a sociedade, cumprirá os objetivos principais de erradicar pobreza, marginalização e realizar a justiça social. A crise, então, estará superada e o homem encontrará a paz que tanto almeja com a implementação de uma cidadania real e efetiva.


5- CONCLUSÃO

Deve-se entender que as normas constitucionais são dotadas de imperatividade e produzem efeitos no mundo dos fatos, inclusive conseqüências punitivas quando do seu descumprimento.

Ao nosso ver, o que levou alguns filósofos e estudiosos do Direito a afirmar que as normas constitucionais, especialmente as programáticas, são meras diretrizes morais e éticas, estipuladas pelo constituinte foi uma visão arcaica e privatista da fenômeno constitucional,

A Constituição não pode, assim, sufocar o fenômeno político, juridicizando-o em sua plenitude. O Direito e o Político tem de conviver e se interpenetrar. Como bem assevera Celso Ribeiro Bastos "é o próprio processo diuturno da política que não pode deixar de subsistir, e é evidente que este processo político só ocorrerá na medida em que haja espaço para que ele possa atuar e o excesso de normas programáticas de maneira a antecipadamente prever todas as áreas possíveis de atuação do Estado acabe por exaurir por completo a necessidade de novas decisões. Assim, tudo estaria antecipadamente decidido, não teríamos mais decisões a tomar, mas simplesmente medidas a executar, isto é, uma forma insuportável de autoritarismo jurídico-político." (BASTOS, 1994:133)

Em síntese, a programaticidade e a conseqüente relativa efetividade de certas normas e preceitos constitucionais são fruto de um estágio da evolução do Movimento Constitucionalista que procura integrar as NORMAS ao SISTEMA JURÍDICO e aos VALORES SOCIAIS sempre em busca da implementação de um Estado e uma Comunidade mais solidária com os menos afortunados, consagrando na Carta Magna metas, fins e propósitos que deverão ser adotados com a evolução do ser humano rumo a construção de um mundo melhor.


6- BIBLIOGRAFIA

ADEODATO, João Maurício Leitão. A "concretização constitucional" de Friedrich Müller in Revista da ESMAPE, ano: 1, n. 1 1996, Recife - PE, pp. 223-232.

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O princípio de subsidiariedade: conceito e evolução. Belo Horizonte: Movimento Editorial da Faculdade de Direito da UFMG, 1995.

BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas - limites e possibilidades da constituição brasileira. Rio de Janeiro:Renovar, 2ª edição, 1993.

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo:Saraiva. 16ª edição, 1994.

BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1991.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo:Malheiros, 4ª edição, 1993.

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra:Almedina, 4ª edição, 1986.

DANTAS, Ivo. Constituição Federal - Teoria e Prática. Rio de Janeiro:Renovar, 1ª edição, 1994(1).

DANTAS, Ivo. Princípios Constitucionais e Hermenêutica. Rio de Janeiro:Lumen Juris. 1ª edição 1994(2).

DINIZ, Maria Helena. Norma Constitucional e seus efeitos. São Paulo:Saraiva, 2ª edição, 1992.

HORTA, Raul Machado. Estudos de Direito Constitucional. Belo Horizonte:Del Rey, 1ª edição, 1995.

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional - 3 vols. Coimbra:Coimbra Editora, 2ª edição, 1983.

PONTES DE MIRANDA. Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda nº 1, de 1969, tomo I. São Paulo:Ed. Revista dos Tribunais, 1969.

RUI BARBOSA. Comentários a Constituição Federal Brasileira, tomo Il. São Paulo, 1933.

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 2ª edição, São Paulo:Ed. Revista dos Tribunais, 1982.

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Sobre o autor
Marcos André Couto Santos

procurador federal junto ao INSS em Recife (PE), mestre em Direito Público pela UFPE, professor universitário

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Marcos André Couto. A efetividade das normas constitucionais:: as normas programáticas e a crise constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 204, 26 jan. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4731. Acesso em: 24 abr. 2024.

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