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A teoria da desconsideração da personalidade jurídica e a sua previsão no ordenamento jurídico brasileiro

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21/01/2004 às 00:00
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CONCLUSÕES

É certo que, muitas vezes, o instituto da pessoa jurídica, criado pelo direito com o objetivo de favorecer a exploração de atividades econômicas, é utilizado com a intenção de prejudicar interesses alheios, obtendo-se uma vantagem ilícita ou indevida.

O desvio de função da pessoa jurídica, caracterizado pelo seu mau uso, seja através do abuso de direito, seja através da fraude, não pode ser acolhido pelo ordenamento jurídico, sob o argumento de que deve prevalecer a distinção da personalidade da pessoa jurídica daquelas dos que a integram. A personalidade jurídica não é absoluta, tal qual prevista no artigo 20 do anterior Código Civil Brasileiro. Havendo o desvio de função da pessoa jurídica, deve a sua personalidade ser desconsiderada, sob pena de se dar guarida à injustiça.

De criação exclusivamente jurisprudencial, visa a Teoria da Desconsideração da Personalidade jurídica coibir a fraude e o abuso de direito no mau uso da pessoa jurídica. Esse o pilar da Disregard Doctrine: o mau uso da pessoa jurídica, que é desviada da função para a qual fora criada, empregando-se a fraude ou o abuso de direito em prejuízo de terceiros. Sua aplicação é especialmente indicada na hipótese em que a obrigação imputada à sociedade oculta uma ilicitude. Abstraída, assim, a pessoa da sociedade, pode-se atribuir a mesma obrigação ao sócio ou administrador e, em decorrência, caracteriza-se o ilícito. Em síntese, a desconsideração é utilizada como instrumento para responsabilizar sócio por dívida formalmente imputada à sociedade. Em algumas hipóteses, contudo, é possível o inverso, desconsiderando a autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizá-la por obrigação do sócio.

Em virtude de sua importância fundamental para a economia capitalista, o princípio da personalização das sociedades empresárias, e sua repercussão quanto limitação da responsabilidade patrimonial dos sócios, não pode ser descartado na disciplina da atividade econômica. Em conseqüência, a desconsideração da personalidade jurídica deve ter necessariamente, natureza excepcional, episódica, e não pode servir ao questionamento da subjetividade própria da sociedade, que produz os efeitos para todos os demais fins.

O Código de Defesa do Consumidor foi o primeiro texto de lei a prever expressamente a desconsideração da personalidade jurídica no ordenamento jurídico brasileiro. Certamente a previsão legal significou um avanço para a Teoria da Desconsideração, bem como para a garantia dos direitos do consumidor.

Todavia, apesar de louvável o intuito, laborou com impropriedade o legislador, cometendo erros ao regular tão complexa matéria.

De fato, a única hipótese prevista no CDC que enseja a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica é a de abuso de direito. As demais hipóteses, previstas no caput do artigo 28 daquele diploma legal, não guardam correspondência com o instituto, muitas das vezes caracterizando motivos para responsabilização do administrador por ato próprio.

O § 5º do dispositivo, embora traga um conceito aberto que torne ampla por demais a incidência da Teoria da Desconsideração, sequer deveria estar vigindo. Erroneamente, fora vetado o § 1º em seu lugar. As razões do veto dão conta disso.

Os §§ 2º, 3º e 4º, embora inseridos sob a epígrafe Desconsideração da Personalidade Jurídica, tratam de hipóteses de responsabilidade de sociedades consorciadas, coligadas e integrantes de grupos, não havendo aí que se falar em desconsideração da personalidade jurídica.

J. Lamartine Corrêa de Oliveira, já nos idos de 1979, questionava os limites e pressupostos da desconsideração da personalidade jurídica. Pretendê-la, tal qual o Código de Defesa do Consumidor, é algo um tanto quanto temerário, posto que totalmente desvirtuada de sua origem, bem como confundida com outros institutos jurídicos.

Mesmo se não prevista, a desconsideração da personalidade jurídica teria aplicação no âmbito do Direito do Consumidor. Poderia continuar a ser aplicada como fruto da atuação dos tribunais. A responsabilização dos sócios, por outro lado, também não estaria prejudicada, pois a legislação posta, em especial a societária, legitima a imputação de responsabilidade àqueles que, por atos próprios, causem prejuízos ao consumidor.

Outros dispositivos de lei tratam expressamente sobre o tema. Assim ocorre que a Lei Atitruste (Lei Federal 8.884/94) e a lei que dispõe sobre a responsabilidade por danos causados ao meio ambiente (Lei Federal 9.605/98). Verifica-se, entretanto, que referidos diplomas legais não reproduzem, com fidelidade, a Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica.

Por fim, conclui-se que o Novo Código Civil não trata adequadamente a matéria, sendo o texto altamente divorciado da centenária Teoria da Desconsideração. As sanções ali inseridas, bem como a legitimidade prevista, não refletem o pensamento da Disregard Doctrine.

A aplicação da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica, a bem da verdade, independe de previsão legal. Em qualquer hipótese, mesmo naquelas não abrangidas pelos dispositivos de leis que se reportam ao tema, está o juiz autorizado a ignorar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica sempre que ela for fraudulentamente manipulada para frustar interesse legítimo do credor. Por outro lado, não pode o juiz afastar-se dos requisitos indispensáveis para a desconsideração, desprezando a pessoa jurídica apenas em função do desatendimento de um ou mais credores da sociedade. A melhor interpretação dos artigos de lei que dispõem acerca da desconsideração é a que prestigia a contribuição doutrinária, respeita o instituto da pessoa jurídica, reconhece a sua importância para o desenvolvimento das atividades econômicas e apenas admite a superação do princípio da autonomia patrimonial quando necessário à repressão de fraudes e à coibição do mau uso da forma da pessoa jurídica.

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Sobre o autor
Juliano Junqueira de Faria

advogado em Belo Horizonte (MG), especialista em Processo Civil e em Direito de Empresa

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FARIA, Juliano Junqueira. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica e a sua previsão no ordenamento jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 199, 21 jan. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4768. Acesso em: 19 abr. 2024.

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