Breves considerações sobre o pedido de explicações a Dilma Roussef

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Considerações sobre a tentativa de criminalização da retórica política e dos riscos que essa prática pode trazer para o exercício de garantias fundamentais asseguradas na Constituição Federal.

No dia 18 de maio de 2016, os jornais de todo país noticiaram que o Supremo Tribunal Federal, por despacho da Ministra Rosa Weber, intimou a Presidenta Dilma Roussef a esclarecer a utilização do termo “golpe” em seus pronunciamentos políticos a respeito do processo político e jurídico que culminou em seu afastamento do cargo, que teria ocorrido em conformidade com os preceitos estabelecidos em lei.

Analisemos o caso em tela para compreender exatamente em que consiste o pedido de explicações e seu deferimento pela mais alta corte do país.

Em petição dirigida ao STF, a Câmara dos Deputados, por sua Procuradoria, cobra a responsabilidade de Dilma Roussef por sua “verborragia política”, em atenção a pedido formulado pelos deputados federais Júlio Luiz Baptista Lopes, Carlos Henrique Focesi Sampaio, Pauderney Tomaz Avelino, Rubens Bueno, Antônio José Imbassahy da Silva e Paulo Pereira da Silva, com fundamento no art. 144 do Código Penal. De modo ostensivamente intimidatório, são feitas seis perguntas, algumas delas capciosas e arrogantes:

1) A interpelada ratifica as afirmações – proferidas em distintos eventos – de que há um golpe em curso no Brasil?

2) Quais atos compõem o golpe denunciado pela Interpelada?

3) Quem são os responsáveis pelo citado golpe?

4) Que instituições atentam contra seu mandato, de modo a realizar um golpe de estado?

5) É parte desse golpe a aprovação, pelo Plenário da Câmara dos Deputados, da instauração de processo contra a Interpelada, por crime de responsabilidade, nos termos do parecer da Comissão Especial à Denúncia por Crime de Responsabilidade 1/2015, dos Srs. Hélio Pereira Bicudo, Miguel Reale Junior e Janaina Conceição Pascoal?

6) Se estamos na iminência de um golpe, quais as medidas que a Interpelada, na condição de Chefe de Governo e Chefe de Estado, pretende tomar para resguardar a República?

O pedido de explicações é algo que se possa pleitear judicialmente, quando se trate de esclarecimento acerca de se estar diante de calúnia ou injúria. Trata-se, como se lê no próprio despacho que recebeu a petição, de faculdade prevista no artigo 144 do Código Penal.

Mas a quem teria Dilma caluniado ou injuriado?

Pode um processo político ser criticado sem que sejam fatalmente envolvidas as instituições que o chancelam? Pode um processo de impeachment (ou um golpe) ser examinado e qualificado de forma positiva ou negativa poupando-se as decisões da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal? Ou, até mesmo do Tribunal de Contas da União?

Veículos de comunicação que têm se mostrado escancaradamente parciais deram destaque à informação de que “A ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, notificou a presidente afastada Dilma Roussef a esclarecer a declaração de que é vítima de um golpe de estado. A ministra atendeu a pedido de seis deputados”.

Todavia, temos aqui uma clara manipulação da notícia, pois não se trata de atendimento a pedido de esclarecimento e sim de acolhimento, em despacho de mero expediente, de pleito de notificação dos termos da petição inicial. Corretamente, aliás, a Ministra Rosa Weber destaca, no item 7 de seu despacho: “O ato judicial que analisa a Interpelação criminal não emite juízo de valor sobre o conteúdo debatido, uma vez que representa providência de contenção cognitiva”. Esta importante ponderação não mereceu de referidos órgãos de imprensa qualquer destaque.

Avancemos, porém, no mérito do pedido formulado: o de exigir, pela intimidação penal, de um político, que se expresse sempre de forma neutra, impensavelmente morna, numa sociedade neolatina que herdou de Roma a tradição da retórica de Cícero!

Partindo do pressuposto de que os autores da petição são honrados parlamentares de reputação ilibada, há uma pergunta que merece ser feita: o que seria de nosso universo político se, a cada vez que alguém ousasse dizer que os últimos governos petistas estariam aderindo à doutrina bolivariana de Hugo Chaves, fosse chamado a responder judicialmente por denunciação caluniosa?

Afinal a Presidente da República estaria simplesmente obedecendo princípio constitucional de regência das relações internacionais da República Federativa do Brasil segundo o qual deve nosso país buscar “a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações” (art. 4º, parágrafo único, da Constituição Federal)?

O que dizer, por outro lado, das inumeráveis vezes em que parlamentares afirmaram que nosso país estaria sob uma ditadura comunista? Como reagiriam diante de eventual chamamento judicial para que dessem explicações destas palavras que, inequivocamente, incendiaram o país, fomentando o surgimento de grupelhos radicais totalmente avessos aos valores da democracia?

Falar em “bandeira vermelha do Partido”, “convicções comunistas da Chefe do Executivo e seus companheiros”, é o mesmo que dizer que nunca foi proclamada a República no Brasil porque o Marechal Deodoro era monarquista e morreu monarquista, ao que se sabe.

O próprio governo do PT está muito mais longe de um socialismo do que parece. Tanto que as medidas que tomou foram bem longe do próprio discurso. Este, o discurso, é pelo “aumento do Estado”, mas, na prática, pode-se ver que não houve nenhuma hostilidade ao mercado. Sequer as privatizações mais questionáveis foram revertidas. Houve medidas, inclusive, que estancaram a rebelião de quem pudesse ser hostil. Os tais benefícios, como Bolsa-Família, “Programa Minha Casa Minha Vida”, se olharmos para as medidas adotadas por Bismarck em 1885, têm um efeito muito semelhante. Se virmos quanto de isenções fiscais foram concedidas ao setor automotivo, aos bancos, e se lembrarmos, novamente, que não foi revertida nenhuma privatização, vê-se que a alegada “engorda do Estado” é mais aparente que real.

Longe, pois, de uma “ditadura comunista”, o que se tem aqui é um “capitalismo com o Estado, com capa socialista”. O próprio tabelamento dos juros, que veio na redação original da Constituição de 1988, foi escoimado, surpreendentemente, no governo petista (a Emenda 40, de 2003, foi de iniciativa do Planalto). E a nova lei falimentar, então, nem se fala. Pôs os créditos bancários na frente dos créditos fiscais, inclusive. As medidas adotadas na prática, não no discurso, são até tímidas em face, por exemplo, de países como Noruega e Suécia. E a oposição não faz nenhuma objeção de mérito a elas. Somente ad personam. Não foram estatizadas empresas privadas, não houve confisco de propriedades, as crianças não aprenderam a cantar a “Internacional”, não se implementou o ateísmo, os meios de comunicação puderam livremente criticar e, mesmo, atacar o Governo de todas as formas, não houve, enfim, nenhum dos episódios que poderiam caracterizar a implementação de um regime como os da antiga URSS e similares.

Claro que alguém dirá que isto tem conteúdo “ideológico”, de “defesa do sindicato travestido de Governo”. Ao contrário: estas proposições são de fato. Para dizer-se que foi instaurada uma “ditadura comunista”, precisaria ser demonstrado que estas proposições não são verdadeiras, até porque a veracidade independe de simpatia ou antipatia.

Se fosse necessário à Chefe do Executivo, ora afastada, trazer os elementos para provar a existência de “golpe”, em sede de pedido de explicações, seria necessário, então, a cada um dos que disseram que o Brasil estaria sob uma “ditadura comunista”, trazer os elementos em função dos quais iriam caracterizar o regime como tal, até porque numa “ditadura comunista” sequer poderiam utilizar esta expressão.

Direito vulnerado: liberdade de consciência, de convicção política e de expressão

O assunto diz respeito a garantias constitucionais insculpidas no art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, verbis:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença

De 1964 a 1985, vivemos e sofremos por viver num país sob ditadura militar. Na época, qualquer pessoa correria um risco muito grande, de vida, integridade física ou em sua liberdade, se dissesse publicamente que aquilo era uma ditadura militar – uma constatação que restou óbvia com a redemocratização em 1988 e que se acha muito bem demonstrada na produção bibliográfica de Elio Gaspari ou Marcelo Ridenti, dentre muitos outros textos reveladores. Por isso, aliás, os malabarismos na música popular, onde se procurava dizer por metáforas e jogos de palavras o que acontecia no país, já que não era permitido usar as palavras certas para descrever tais fatos.

Emblemático foi o discurso do Deputado Márcio Moreira Alves, em 12 de dezembro de 1968 quando, em sua própria defesa, assim se manifestou na Câmara dos Deputados:

Sei que a tentativa de cassar o meu mandato é apenas a primeira, de muitas que virão. Sei que o apetite, dos que a esta Casa desejam mal, é insaciável. Os que pensam em aplacá-lo hoje, com o sacrifício de um parlamentar, estarão apenas estimulando a sua voracidade. Buscam os inimigos do Congresso um pretexto. Acusam-me de injuriar as Forças Armadas. Nos processos penais de injúria a ação é liminarmente suspensa quando o acusado nega o seu ânimo de injuriar, e o acusador aceita a explicação. Nego aqui e agora que haja, em qualquer tempo ou lugar, injuriado as Forças Armadas. As classes militares sempre mereceram e merecem o meu respeito. O militarismo, que pretende domina-las e comprometer-lhes as tradições democráticas, transformando-as em sua maior vítima, esse militarismo – deformação criminosa que a civis e militares contamina – impõe-se ao nosso repúdio.

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Como é sabido, este memorável discurso acabou servindo de pretexto para a edição do Ato Institucional n. 5 dois dias mais tarde. A reação do governo militar ao discurso escancarou a ditadura (para nos servirmos das expressões de Élio Gaspari), confirmando a procedência da própria denúncia do deputado.

É evidente, porém, que a liberdade da tribuna política não é absoluta. O elogio à tortura, por exemplo, é terminantemente vedado pela Constituição Federal. No entanto, ao que parece, o discurso de um parlamentar em louvor de um torturador, por ocasião da votação do encaminhamento do processo de impeachment ao Senado Federal, não causou absolutamente nenhuma estranheza aos nobres deputados que subscrevem a petição ao STF que se indignam com o uso da expressão “golpe”.

Um documento histórico

Se alguém ainda entender que se trata de “pontos de vista”, de “introdução de visões próprias de quem tem lado contrário”, o site do Supremo Tribunal Federal é riquíssimo em documentos que revelam a situação em que se vivia, circunstâncias de processos nos quais, por exemplo, magistrados que haviam tido, antes do movimento de 64, uma atuação parlamentar muito intensa, chegavam, ao mesmo tempo em que trancavam denúncias manifestamente ineptas, redigiam, em seu voto, os termos da denúncia a ser oferecida contra aquele em prol do qual estavam a conceder os habeas corpus. E isto, antes mesmo que viesse o já mencionado Ato Institucional n. 5, de 1968, cujo artigo 10 era expresso em arredar o cabimento do mais antigo dos instrumentos processuais de defesa da liberdade em se tratando de crimes contra a segurança nacional e crimes contra a economia popular.

Intimidar quem quer que seja por se servir de expressões como “golpe”, obrigando todos a utilizarem o vocabulário imposto por quem se encontra no poder é uma manifestação inequívoca de que a democracia está desmoronando.

Isto, por sinal, já se inicia quando, esquecendo que não se está nem na antiga União Soviética, onde a defesa era considerada mera formalidade, nem na República Popular da China, onde a única atitude exigível ao acusado, no processo, é confessar, sob pena de ofensa aos acusadores, um Senador da Oposição questiona a própria possibilidade de o defensor utilizar tal ou qual linha de argumentação, e se aventa, pelo emprego da expressão, identificar ofensa aos princípios da Administração Pública, como se não fosse próprio do Estado de Direito que o advogado, público ou privado, no exercício de atos de postulação, seja inviolável, até mesmo para que a sua defesa seja efetiva (Constituição Federal, art.133; Lei 8.906, de 1994, arts. 3º e 31), para que possa assegurar à parte que defende um julgamento baseado na licitude ou ilicitude da conduta respectiva, e não baseado na simpatia ou antipatia que desperte. Aos 48 anos, já proclamava Ruy Barbosa que quando a lei deixa de proteger nossos adversários, virtualmente deixa de nos proteger.

Muito do que se sabe hoje da Escravatura e da Ditadura é em função de acórdãos. E, quanto aos acórdãos, temos de nos lembrar de um dado importante: somente os do Supremo Tribunal Federal, do antigo Tribunal Federal de Recursos e dos Tribunais de Justiça e de Alçada, hoje, são acessíveis. Os dos Tribunais Militares, referentes ao período, não o são. E isto é tanto mais grave quanto mais se recorda que era da Justiça Militar a competência para o julgamento dos crimes contra a segurança nacional.

No oitavo ítem de seu despacho, a Ministra Rosa Weber destaca quatro alternativas para a interpelada, consoante jurisprudência do STF (Pet. 5563, 17.3.2015, do Min. Celso de Mello): a) poderá, querendo, atender ao pedido formulado; b) poderá, igualmente, a seu exclusivo critério, abster-sede responder à notificação efetivada, deixando escoar, in albis, o prazo que lhe foi assinado; c) poderá, ainda, em atenção ao Poder Judiciário, comunicar-lhe, de modo formal, as razões pelas quais entende não ter o que responder ao interpelante; e d) poderá, finalmente, prestar as explicações solicitadas.

Caso venha a atender aos termos do item 8-d do despacho exarado na Petição 6.126/DF, ou seja, explicar os motivos que a levaram a utilizar a expressão “golpe”, Dilma Roussef terá oportunidade de levar ao Supremo Tribunal Federal documentos que não poderão nunca mais ser apagados da memória. Estes documentos, eventualmente, constituirão o registro de algo mais grave do que um suposto golpe, qual seja o advento de um estado de exceção, no qual as garantias citadas do art. 5º da Constituição Federal já estarão suspensas. E isto porque, quando a intimidação atinge a parte diretamente atingida por um processo do qual busca defender-se, não apenas juridicamente, mas também politicamente, já não podemos mais falar de simples sinal de desmoronamento da democracia, mas de seu próprio enterro.

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Sobre os autores
Guilherme José Purvin de Figueiredo

Professor de Direito Ambiental junto aos Cursos de Pós-Graduação da PUC-SP (COGEAE), PUC-RJ (NIMA-JUR), Escola Paulista da Magistratura e Escola Superior de Advocacia Pública da PGE-SP. Doutor e Mestre pela Faculdade de Direito da USP. Autor de "Curso de Direito Ambiental" (6ª Ed., RT, SP), "A Propriedade no Direito Ambiental" (4ª Ed., RT, SP), "Direito Ambiental e a Saúde dos Trabalhadores" (2ª Ed. LTR, SP) e "Estado no Direito do Trabalho" (LTR, SP), dentre outras obras. Procurador do Estado-SP. Coordenador Geral da APRODAB - Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil. Sócio fundador e Presidente Honorário do IBAP - Instituto Brasileiro de Advocacia Pública. Colunista d'O Eco.

Ricardo Antônio Lucas Camargo

Professor de Direito Econômico - UFRGS, Doutor em Direito pela UFMG. Diretor do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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