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Novas (e velhas) polêmicas sobre os crimes de trânsito

14/03/2004 às 00:00
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1- ASPECTOS GERAIS

Inicialmente aclamado como "legislação de primeiro mundo", a verdade é que passados mais de seis anos desde que entrou em vigor, o "novo" Código de Trânsito Brasileiro ainda suscita dúvidas e inspira críticas. A sua parte criminal inovou na forma de definir tipos penais e trouxe questões polêmicas que ainda causam grandes divergências na doutrina penal pátria. O objetivo original do legislador era reprimir com rigor as infrações de trânsito no sentido de garantir à coletividade maior segurança no tráfego de veículos automotores. Aliás, essa preocupação já advém de tempos remotos, pois VIVEIROS DE CASTRO, no ano de 1900, já dizia que "os acidentes automobilísticos são verdadeira epidemia, tão mortífera como a febre amarela" (Questões de direito penal, Rio de Janeiro, 1900, p. 57). Entretanto, em que pese a boa intenção do legislador pátrio, alguns dispositivos dos crimes de trânsito são confusos e, em certos aspectos, padecem do mais grave dos vícios, que é a inconstitucionalidade. Por isso parece ter sido acertada a previsão feita por WILLIAM TERRA DE OLIVEIRA ao dizer que "é muito provável que o CTB nunca alcance seus objetivos, porque foi demasiado ambicioso, sendo uma resposta simbólica que compromete ainda mais o sistema penal brasileiro" (in "CTB – Conrovertido, Natimorto, Tumultuado", publicado no Boletim IBCCRIM n.º 62).

Natureza dos crimes de trânsito. 1. A doutrina tradicional classifica os crimes de trânsito em crimes de dano (homicídio culposo e lesão corporal culposa) e de perigo (abstrato ou presumido e concreto). Entretanto, ZAFFARONI e PIERANGELI advertem que os tipos de perigo têm acarretado sérios problemas interpretativos (Manual de Direito Penal Brasileiro, parte geral, SP, RT, 1997, p. 563, n. 311). É por isso que a moderna doutrina penal conclui pela inconstitucionalidade dos delitos de perigo abstrato em nossa legislação. Essa interpretação se deve à reforma penal de 1984 que baseou nosso direito penal na culpabilidade e também aos princípios estabelecidos pela Constituição de 1988.

2. Fugindo desse conceito, a doutrina de DAMÁSIO defende que os crimes de trânsito são de lesão e de mera conduta, demonstrando ser inadequada a classificação tradicional (Crimes de Trânsito, SP, Editora Saraiva, 2002, p. 18). Conforme leciona o festejado autor, a partir do momento em que alguém pratica um crime de trânsito irá reduzir substancialmente o nível de segurança desejado pelo interesse coletivo. Assim, "a essência dos delitos automobilísticos está na lesão ao interesse jurídico da coletividade, que se consubstancia na segurança do tráfego de veículos automotores" (ob. cit.). Nessa definição, os crimes de trânsito são ainda classificados como crimes de mera conduta porque basta o comportamento perigoso ou imprudente do agente, sem necessidade de prova de que o risco atingiu determinada pessoa, uma vez que o sujeito passivo é a coletividade. Entretanto, divergimos dessa definição porque, em tese, ela não diferencia as infrações administrativas dos delitos. Preferimos a classificação tradicional e entendemos que os chamados crimes de perigo abstrato falecem ante o primeiro filtro de constitucionalidade. Restariam, portanto, os crimes de dano e os de perigo concreto.

3. No acertado magistério de LUIZ FLÁVIO GOMES os crimes de trânsito devem ser classificados de acordo com a doutrina tradicional, mas são de perigo concreto. Para este autor, os crimes de trânsito dos artigos 304, 306, 308, 309, 310 e 311 "não são de perigo abstrato", isto é, "não basta ao acusador apenas comprovar que o sujeito dirigia embriagado (art. 306) ou sem habilitação (art. 309) ou que participava de ‘racha’ (art. 308), etc." (CTB: primeiras notas interpretativas, publicado no Boletim IBCCRIM n.º 61/1997). E prossegue: "Doravante exige-se algo mais para a caracterização do perigo pressuposto pelo legislador. Esse algo mais consiste na comprovação de que a conduta do agente (desvalor da ação), concretamente, revelou-se efetivamente perigosa para o bem jurídico protegido". Ao se presumir, prévia e abstratamente, o perigo, resulta que, em última análise, perigo não existe, de modo que acaba por se criminalizar simples atividades, ferindo de morte modernos princípios de direito penal. Por fim, LUIZ FLÁVIO GOMES arremata que "o conceito de perigo é sempre relacional, isto é, o perigo sempre se refere a algo ou a alguém (perigo para o quê? perigo para quem?)" (ob. cit.). É justamente por isso que o legislador diferenciou as infrações administrativas dos delitos. Para as primeiras basta o perigo abstrato, enquanto que nos crimes é imprescindível a demonstração de que a conduta seja potencialmente lesiva para a coletividade.

Perdão judicial. De acordo com a grande maioria da doutrina, entendemos perfeitamente cabível o perdão judicial nos crimes de trânsito. Isso porque o veto presidencial se deu por outros motivos e não pela inaplicabilidade do instituto nesses delitos. No Projeto de Lei, o instituto só era admitido em determinados casos, restrição com a qual não concordou o Senhor Presidente da República. Por isso impugnou o dispositivo, não sem antes dizer da conveniência da medida nos crimes de trânsito: "as hipóteses previstas pelo §5.º, art. 121, e 8.º, do art. 129, do Código Penal, disciplinam o instituto de forma mais abrangente". Ora, todos sabemos que é exatamente nos acidentes automobilísticos que muitas pessoas acabam perdendo entes queridos, o que torna a pena criminal desnecessária e inútil. Defender a inaplicabilidade do perdão judicial nessa hipótese é algo ilógico. Também não convecem as teses de que a Lei n.º 9.503/97 no artigo 291, caput, mandou aplicar somente as "normas gerais" do Código Penal, sendo que o perdão judicial não poderia ser aplicado porque se encontra na Parte Especial do estatuto repressivo. Ora, é do conhecimento de todos que há normas gerais de direito penal também na Parte Especial, p. ex., o art. 150, §4.º que define a expressão "casa" e o art. 327 que traz o conceito de funcionário público para fins penais. Em sentido contrário, RUI STOCO se manifestou contrário à aplicação do perdão judicial aos crimes de trânsito. Entretanto, tal divergência resta superada uma vez que a jurisprudência tem concedido o perdão judicial aos delitos de circulação de forma relativamente pacífica.

Suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação. Inicialmente cumpre esclarecer que essa pena de interdição de direitos está prevista no preceito secundário das normas incriminadoras cumulativa ou alternativamente com a pena privativa de liberdade conforme cominação expressa na lei. Entretanto, a redação confusa do art. 292 pode levar a outro entendimento, isto é, no sentido de ter criado a possibilidade do juiz impor a suspensão ou a proibição com prejuízo das demais penas (privativa de liberdade e pecuniária). Todavia, esse entendimento deve ser afastado já que levaria à conclusão de que o legislador inseriu inutilmente em determinados crimes a obrigatoriedade de aplicação dessa sanção cumulativamente com a de detenção ou multa. De qualquer forma, esta penalidade não se confunde com a pena restritiva de direitos prevista no Código Penal. Considerando que os delitos culposos de trânsito (art. 57, CP) passaram a ser punidos com essa nova interdição temporária de direitos, considera-se revogada a pena de suspensão de habilitação para dirigir veículo prevista no art. 47, III, do Código Penal brasileiro. Por fim, ainda que não esteja prevista na cominação abstrata, a pena de suspensão da permissão ou habilitação para dirigir veículo automotor pode ser aplicada para o autor de qualquer dos delitos previstos no Código de Trânsito Brasileiro quando for ele reincidente na prática desses ilícitos, nos termos do que prevê o art. 296 (reincidência específica). A pena terá a duração de dois meses a cinco anos e não se inicia enquanto o sentenciado estiver recolhido a estabelecimento prisional (art. 293). Após transitar em julgado a sentença condenatória, o réu será intimado a entregar à autoridade judiciária a permissão ou a habilitação em 48 horas, sob pena de responder pelo crime do art. 307 e ser imposta nova interdição de direitos. A suspensão ou proibição será sempre comunicada pela autoridade judiciária ao Conselho Nacional de Trânsito e ao órgão de trânsito do Estado em que o réu ou indiciado foi domiciliado (art. 295). Existe ainda a possibilidade do juiz de suspender a permissão ou a habilitação ou proibir a sua obtenção como medida cautelar, em qualquer fase do procedimento (inquérito policial ou ação penal) atendendo a requerimento do Ministério Público ou ainda mediante representação da autoridade policial desde que houvesse necessidade para a garantia da ordem pública.

Multa reparatória. Medida polêmica e de pouca aplicação prática nesses seis anos de vigência do Código de Trânsito Brasileiro, a multa reparatória surgiu no cenário jurídico brasileiro como "uma alma perdida vagando pela imensidão do Direito Penal à procura de um corpo", no dizer de DAMÁSIO DE JESUS (Temas de Direito Criminal – 1ª. Série, São Paulo, Editora Saraiva, 1998, p. 6). Segundo o autor, a multa reparatória não poderia ser aplicada pelo juiz em virtude da ausência de dispositivo genérico de cominação. O instituto seria uma pena sem crime, violando o princípio da reserva da lei (art. 1.º do Código Penal). Entretanto, há autores que consideram a multa reparatória como indenização de cunho civil. De acordo com LUIZ OTAVIO DE OLIVEIRA ROCHA, "o legislador deixou patenteada a natureza exclusivamente civil da reparação, viabilizando sua concessão pelo Juízo Criminal, todavia" (in Código de Trânsito Brasileiro: Primeira Impressões, publicado no Boletim IBCCRIM n.º 62). Também nos parece que a intenção do legislador da época era justamente facilitar a obtenção de uma reparação cível pela vítima dos crimes de trâsnsito, abreviando o tempo que levaria para obter uma sentença favorável num processo de cunho indenizatório. Entretanto, há posições da jurisprudência no sentido de que a imposição dessa multa reparatória diretamente pelo juiz criminal violaria princípios constitucionais explícitos, como o do contraditório e da ampla defesa. Tal entendimento parece correto. Melhor seria o legislador pátrio melhorar a sistemática do processo civil brasileiro e o garantir o acesso à justiça para todos.

Aplicação da Lei dos Juizados Especiais Criminais.1. No artigo 291, o CTB manda aplicar a Lei n.º 9.099/95 aos crimes de trânsito, no que couber. Isso não significa que a Lei n.º 9.503/97 tenha feito qualquer alteração no conceito de infração de menor potencial ofensivo. Essa transformação somente seria possível com a modificação da Lei n.º 9.099/95 ou através de outra lei ordinária específica, como de fato ocorreu com a edição da Lei n.º 10.259/01. Com relação ao parágrafo único desse artigo, este não pode ser apreciado isoladamente no sentido de que a transação penal, a representação do ofendido e a composição dos danos civis são de aplicação incondicional e imediata aos crimes de embriaguez ao volante, lesão corporal culposa e participação em competição não autorizada. É preciso adequar a esses delitos as hipóteses previstas na Lei n.º 9.099/95 no que for apropriado. Assim, não faz sentido exigir representação do ofendido nos crimes de embriaguez ao volante e "racha". Da mesma forma, a inocorrência de dano real para ser reparado nessas infrações impede a aplicação da composição civil (art. 74). Nesse sentido: TACRIMSP, CPar 1.149.165, 9ª. Câm., rel. Juiz Aroldo Viotti, RT, 770/599. Portanto, não prevaleceu o entendimento inicial da doutrina de que os arts. 74, 76 e 88 da Lei n.º 9.099/95 aplicam-se aos crimes de trânsito por exceção, pois não se enquadram na expressão "no que couber" do caput. Concluindo, a disposição do parágrafo único é redundante.

2. Em virtude das modificações impostas pela Lei n.º 10.259/01 no conceito de infração de menor potencial ofensivo, houve algumas modificações no que pertine à incidência da Lei n.º 9.099/95 sobre os crimes de trânsito. Se considerarmos que infração de menor potencial ofensivo é aquela com pena máxima in abstracto não superior a dois anos, teremos os seguintes crimes de competência do Juizado Especial Criminal: art. 303, caput; art. 304; art. 305; art. 307; art. 308; art. 309; art. 310; art. 311 e art. 312. Portanto, apenas os crimes de homicídio culposo (art. 302), lesão corporal culposa qualificada (art. 303, parágrafo único) e embriaguez ao volante (art. 306) escapariam da alçada na Lei n.º 9.099/95 segundo a nova definição de infração de menor potencial ofensivo, o que tornou inócua boa parte das discussões que vieram à lume quando da edição do Código de Trânsito Brasileiro.


2- CRIMES EM ESPÉCIE

2.1- Homicídio culposo de trânsito (art. 302)

O grave problema apontado inicialmente pela doutrina é com relação ao tipo penal do homicídio culposo praticado na direção de veículo automotor. Este fere de morte o princípio de direito penal da taxatividade, corolário lógico do princípio constitucional da legalidade. O que seria "praticar homicídio culposo"? Para saber, o intérprete terá que recorrer ao tipo penal do artigo 121 do Código Penal: "matar alguém". O mesmo problema é encontrado no artigo seguinte que trata da lesão corporal culposa praticada na direção de veículo automotor. Após seis anos ainda não houve manifestação do Supremo Tribunal Federal acerca de eventual inconstitucionalidade deste artigo por ferir o princípio constitucional implícito da taxatividade dos tipos penais. Melhor seria se o Poder Judiciário brasileiro fosse duro com o legislador simbólico, declarando a inconstitucionalidade dos tipos penais que ferem princípios do moderno direito penal. Ademais, ao majorar a pena de homicídio culposo de trânsito, em comparação com as demais condutas previstas no Código Penal em seu art. 121, §3.º, atribuiu-se um desvalor objetivo que é tido por muitos como inconstitucional. Entretanto, o legislador pretendeu que o condutor de veículo automotor agisse com maior cuidado objetivo no trânsito do que em outros atos da vida diária. Entendemos essa valoração legítima, sem afrontar o princípio da proporcionalidade e da adequação.

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Tarefa ingrata é diferenciar a situação de homicídio culposo de trânsito e de homicídio doloso do Código Penal quando da ocorrência de dolo eventual e culpa consciente. Até hoje a mais avalizada doutrina encontra dificuldades em diferenciá-los e a questão fica relegada ao entendimento do juiz. No ensinamento clássico de DAMÁSIO, "no dolo eventual, o agente tolera a produção do resultado, o evento lhe é indiferente, tanto faz que ocorra ou não. Ele assume o risco de produzi-lo (CP, art. 18, I, parte final). Na culpa consciente, ao contrário, o agente não quer o resultado, não assume o risco nem ele lhe é tolerável ou indiferente. O evento lhe é representado (previsto), mas confia em sua não-produção" (ob. cit, p. 83). A dificuldade do operador do direito será de penetrar na mente do sujeito a fim de verificar se este assumiu o risco ou se apenas confiou em sua não ocorrência. Cabe dizer que o homicídio culposo absorve todos os demais delitos de trânsito, em face do princípio da consunção. Havendo duas ou mais vítimas, aplica-se a regra do concurso formal de crimes (art. 70, CP). Por fim, a questão da co-autoria nos crimes de trânsito é deveras tormentosa, especialmente em matéria de homicídio culposo. Para JOSÉ CARLOS GOBBI PAGLIUCA, "se o crime de trânsito é de mão própria e este não pode ser realizado senão exclusivamente pelo próprio possuidor da qualidade típica, não se vê como seja possível a co-autoria ou mesmo participação, mesmo em se entendendo esta última cabível em delitos culposos em geral, o que já é complicado" (in artigo publicado no Boletim IBCCRIM n.º 110).

Fazendo menção ao aspecto processual, é importante lembrar aos operadores do direito que não se imporá prisão em flagrante ao condutor do veículo que, mesmo após ter praticado homicídio culposo, tentar minimizar o ato prestando pronto e integral socorro à vítima (art. 301). Se essa situação não ocorrer e desde que presentes as hipóteses taxativas do artigo 302 do estatuto processual penal, caberá à autoridade policial a lavratura do auto de prisão em flagrante e posterior fixação de fiança ao condutor, nos termos do artigo 322, já que o crime é punido com detenção. Dessa forma, a não ser que haja dolo eventual -onde o delito será reclassificado como sendo o do art. 121, do Código Penal -, e não ocorrendo as hipóteses do arts. 323 e 324 do CPP que vedam a concessão da fiança, o motorista que praticou homicídio culposo na direção de veículo automotor deverá ser solto pelo delegado de polícia após a lavratura da peça coercitiva e prestação da fiança.

2.2- Lesão corporal culposa de trânsito (art. 303)

Aspecto criticado e polêmico da incriminação da lesão corporal culposa de trânsito é acerca da dosimetria de sua pena in abstracto porque ela acaba ultrapassando a pena da lesão corporal simples praticada com dolo prevista no Código Penal. Logo, poderíamos ter a incongruência de que o condutor afirme ter praticado a lesão "dolosamente" apenas para submeter a uma pena mais branda. A redação do tipo também deixa a desejar, valendo os comentários que fizemos a respeito do crime de homicídio. De acordo com o art. 88 da Lei n.º 9.099/95, esse crime depende de representação do ofendido, independentemente da gravidade das lesões causadas na vítimas. Por fim, a Lei n.º 10.259/01 modificou o conceito de infração de menor potencial ofensivo, hipótese que abarcou o crime do art. 303 que passa a ser de competência do Juizado Especial Criminal.

2.3- Omissão de socorro (art. 304)

De pouquíssima aplicação prática, este artigo acabou caindo em desuso. Isso porque seu enunciado típico agrava a pena de homicídio culposo bem como da lesão corporal culposa, não se podendo imaginar nenhuma possibilidade de bis in idem. A única hipótese possível de aplicação desse crime autônomo é a de um motorista – sem qualquer culpa – atropelar alguém e omitir-se a prestar socorro. Mas ainda assim não haveria diferença entre a omissão de socorro comum do Código Penal (art. 135).

2.4- Fuga do local (art. 305)

Ao tentar punir criminalmente alguém somente pelo fato de não fazer prova contra si mesmo, o artigo 305 é de flagrante inconstitucionalidade. O dispositivo também viola frontalmente o art. 8.º, II, g, do Pacto de São José: ninguém tem o dever de auto-incriminar-se. Além disso, há outro aspecto a ser considerado. A obrigação de sujeitar-se ao processo (penal ou civil) é puramente moral. Dessa forma, poderia o legislador transformar em crime uma obrigação moral? Até o momento, o dispositivo foi de pouquíssima aplicação prática, caindo em absoluto desuso em função das controvérsias que suscitou.

2.5- Embriaguez ao volante (art. 306)

Sobre a embriaguez no volante, CUELLO CALÓN chegou a afirmar que "conduzir automóvel sob o efeito de substâncias alcoólicas encerra grave perigo para a segurança coletiva, tanto que, em alguns países, os tribunais costumam negar o benefício da suspensão condicional da pena, ainda que se trate de delinqüente primário" (La ley Del automóvil, 1940, p. 11). Por outro lado, no Brasil, há uma espécie de incentivo à indústria das bebidas alcoólicas. O paradoxo que chega a existir entre a lei e a realidade beira ao ridículo. Ao mesmo tempo em que o art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro incrimina a conduta de dirigir embriagado, a legislação administrativa permite a venda de bebidas alcoólicas às margens das rodovias. Além disso, as restrições à propaganda de bebidas são poucas e insuficientes, permitindo uma estranha associação entre álcool e atividades esportivas, automobilismo, lazer, mulheres bonitas, sensação de bem estar, etc. Esquece-se que a embriaguez é a principal causa de acidentes de trânsito, quase sempre fatais. Além disso, a educação dos motoristas é fundamental para superar essa questão. A conscientização através da inclusão de disciplinas como segurança no trânsito a partir das séries iniciais no ensino fundamental daria resultados mais significativos do que a edição de qualquer lei punitiva. Para exemplificar essa questão, basta ir a qualquer festa em qualquer cidade brasileira para presenciar que inúmeros motoristas dirigem embriagados para suas residências nos finais de noite.

Analisando o tipo penal do art. 306, percebemos que ainda restam dúvidas por parte dos operadores do direito quanto à ocorrência do delito em questão. Em primeiro lugar, é preciso fixar que a punição criminal independe da multa de trânsito que será emitida nos termos do art. 165 do CTB. Para configurar a infração administrativa, há de se comprovar a presença de pelo menos seis decigramas de álcool por litro de sangue. Quantidade inferior a esta não configura a infração, mas pode tipificar o crime do art. 306. Essa é a interpretação dominante nos tribunais acerca do tema. Mas será a mais correta? Afinal, o Direito Penal é sempre subsidiário e só atua quando os demais ramos da ciência jurídica não forem suficientes para reprimir determinado comportamento. Essa valoração será feita pelo legislador que se utilizará de modernos princípios penais, como da ultima ratio, para valorar determinadas condutas. Portanto, é de se pensar que se a infração administrativa requer, no mínimo, seis decigramas, o direito penal não deveria contentar-se com menos do que isso. Nessa interpretação, o tipo penal exige que o condutor do veículo tenha, no mínimo, essa quantidade de álcool para que se configure o crime. Nesse sentido: ARIOSVALDO CAMPOS PIRES e SHEILA JORGE SELIM DE SALES. Em que pese a lógica de tal raciocínio, é de se lembrar que o tipo penal exige outro elemento normativo que irá suprir essa quantidade mínima de álcool: a condução anormal do veículo. Portanto, a "barbeiragem", ainda que de leve, é elementar do tipo, pois a conduta consiste em "dirigir sob a influência...", "expondo a dano potencial a incolumidade de outrem" (cfe. DAMÁSIO, ob. cit.). Dessa forma, se ficar demonstrado a presença de álcool no sangue do motorista superior a seis decigramas e este conduzir seu veículo sem anormalidades, não configurará o crime do art. 306, sem ressalvas para a infração administrativa.

A prova da influência do álcool poderá ser feita por qualquer meio válido em direito. Essa é a interpretação mais razoável da lei em perfeita consonância com o Código de Processo Penal. É claro que sempre será preferível uma prova técnica, mas o estatuto processual não estabeleceu hierarquia entre os meios probatórios. Assim está escrito na Exposição de Motivos do atual CPP: "...nem é prefixada uma hierarquia de provas: na livre apreciação destas, o juiz formará, honesta e lealmente, a sua convicção". Portanto, o operador do Direito deverá ser coerente com nosso sistema processual e atender ao disposto na lei adjetiva. Qualquer interpretação no sentido de que a prova deverá ser essencialmente pericial e técnica não é válida em face ao sistema legal de provas exposto no atual CPP. Temos para nós que meros indícios, desde que fortes e coerentes com o contexto apresentado nos autos da ação penal, são suficientes para embasar uma condenação. Essa é a melhor interpretação até mesmo porque, de acordo com os modernos princípios do garantismo, o acusado não é obrigado a se submeter a qualquer exame e negando-se, não responde por crime de desobediência. De observar novamente o art. 8.º, II, g, do Pacto de San Jose: "ninguém tem o dever de auto-incriminar-se". Por isso, é urgente e necessário instruir os agentes policiais rodoviários que parem de ameaçar os condutores que irão "para a cadeia" caso se neguem a fazer o exame do "bafômetro". Seus ultrapassados formulários ainda contêm um espaço onde se prevê que o condutor que se negar a produzir prova contra si mesmo responde automaticamente pelo crime de desobediência. A situação beira ao ridículo e não se coaduna com o Estado Democrático de Direito. Deve a Administração Pública adequar-se ao ordenamento jurídico e padronizar a conduta de seus agentes.

2.6- Violação da suspensão ou proibição (art. 307)

O comportamento do agente consiste em violar, isto é, transgredir, infringir a suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor, imposta como reprimenda penal ou administrativa. O delito é consumado com o motorista colocando o veículo em movimento, estando impedido de dirigi-lo por penalidade anteriormente imposta. A hipótese do caput, e também do parágrafo único, não passa de uma nova modalidade do crime de desobediência (art. 330, CP). O art. 307 traz uma exceção ao princípio da dosimetria da penalidade prevista no art. 293 (de dois meses a cinco anos).

2.7- "Racha" (art. 308)

Trata-se de crime de perigo concreto, uma vez que exige para sua configuração "dano potencial à incolumidade pública ou privada". Observação interessante é que o crime exige concurso de dois ou mais motoristas, já que o "racha" não pode ser cometido por uma só pessoa. Na hipótese de ocorrer homicídio culposo ou lesão corporal culposa, o crime do art. 308 é subsidiário. E na eventual hipótese da competição ser autorizada, o fato será atípico.

2.8- Direção sem habilitação (art. 309)

Da mesma forma que o crime anterior, a direção sem habilitação é crime de perigo concreto, exigindo que haja "perigo de dano" para potencial configuração do tipo penal. A conduta transforma-se em crime somente quando o motorista dirige de forma anormal, rebaixando o nível de segurança viária, p. ex., quando trafega na contramão de direção, ultrapassa sinal vermelho, efetua manobra arriscada, etc. Inexistindo perigo real, o fato é penalmente atípico, havendo somente ilícito administrativo (art. 162, I a V, do CT: infração gravíssima; multa; recolhimento da CNH e retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado). Dessa forma, conclui-se que o art. 32 da LCP foi derrogado por esse dispositivo. Nesse sentido: Informativo STF, 12-16 fev. 2001, p. 1. A jurisprudência também decidiu que no caso do sujeito surpreendido na direção de veículo depois de aprovado no exame de habilitação, porém antes da expedição do documento, inexiste crime e sim mero ilícito administrativo (TACRIMSP, ACrim 107.034, JTACRIMSP 68/117). Da mesma forma, o condutor habilitado que esquece o documento ou não o portava por qualquer motivo no momento da abordagem, responde somente pela infração administrativa (TACRIMSP, ACrim 722.639, 7ª. Câm., j. 27-8-1992). Em todo caso, compete ao réu provar ser habilitado e não à Justiça comprovar que ele não o é.

2.9- Entrega da direção a determinadas pessoas (art. 310)

A natureza jurídica do crime do art. 310 é discutível. Segundo a maioria da doutrina, o crime é de perigo abstrato e deve ser considerado inconstitucional pela presunção do perigo, o que já não existe mais em nossa legislação. Entretanto, outro entendimento é possível, uma vez que considerando o crime como de lesão e de mera conduta, o comportamento do agente rebaixa o nível de segurança no tráfego. Daí punir quem entrega, permite ou confia a alguém nas condições mencionadas a direção indevida. Nesse sentido: DAMÁSIO. Importante acrescentar que admitindo o tipo como válido mesmo após o filtro constitucional, este não prevê forma culposa. Significa dizer que não há crime na falta de cautela na guarda da chave do veículo, por ex. Nesse sentido: JTACrimSP, 81/359. Questão polêmica é com relação à responsabilização de quem entrega veículo a terceiro que, ao conduzi-lo, comete crime culposo (homicídio ou lesão corporal). A jurisprudência se divide. Alguns julgados dão conta que ambos respondem pelo crime culposo, hipóteses em que estará absorvido o crime do art. 310. Outros sustentam que a simples entrega do automóvel não configura necessariamente conduta culposa, uma vez que o terceiro pode até ser bom motorista, situação em que o agente será responsabilizado apenas pelo crime desse artigo.

2.10- Excesso de velocidade em determinados locais (art. 311)

O artigo trata de hipóteses de direção perigosa com excesso de velocidade em determinados locais. O tipo penal é de perigo concreto ao afirmar que o motorista deve gerar perigo de dano à incolumidade pública. Não é preciso, entretanto, prova de perigo real a determinada pessoa, bastando demonstrar que o condutor efetuou manobra perigosa. Interessante é que se o condutor trafegar com velocidade incompatível fora dos locais previstos no art. 311, não está configurado o crime. Da mesma forma se efetuou manobras perigosas em velocidade compatível e de acordo com a sinalização. Nos dois casos, entretanto, subsiste a hipótese do art. 34 da Lei das Contravenções Penais.

2.11- Fraude processual (art. 312)

O crime visa proteger a administração da justiça, tal como o art. 347 do Código Penal. DAMÁSIO explica que "pretende a disposição proibir os meios de iludir o juiz, o perito ou o agente policial na coleta e na apreciação da prova, evitando-se injustiça nos julgamentos de crimes automobilísticos com vítima" (ob. cit., p. 237). É importante salientar que o dispositivo não exige procedimento criminal em andamento, bastando inovar em boletim de ocorrência, levantamento de local, preparatório, etc. Assim, pode a conduta ser praticada até mesmo antes da chegada dos peritos ao loca. Aliás, esse é o momento em que normalmente ocorrem as fraudes.


3- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Subsistem os artigos 32 e 34 da LCP? O art. 32 da Lei das Contravenções Penais trata-se da falta de habilitação para dirigir veículo. Conforme a jurisprudência majoritária, a contravenção penal era de perigo abstrato, não subsistindo mais em face do princípio constitucional implícito da ofensividade ao bem jurídico protegido pela norma penal (cfe. LUIZ FLÁVIO GOMES). Entretanto, havia entendimentos contrários na doutrina e na jurisprudência. O Supremo Tribunal Federal acabou com a polêmica, tendo julgado que "A Lei n.º 9.503/97, ao regular inteiramente o direito penal de trânsito nas vias terrestres do território nacional, derrogou parcialmente o citado art. 32". Portanto, conclui-se que o art. 32 subsiste apenas para punir a direção inabilitada de embarcações a motor em águas públicas (desde que haja perigo concreto). Quanto à conduta do motorista que dirige normalmente em via pública sem a devida habilitação, resta a mera infração administrativa do art. 162, I, do CTB. Já o art. 34 da mesma LCP prevê a conduta de direção perigosa. Esta contravenção, contrario sensu, é de perigo concreto, pois o tipo penal expressamente exige que a conduta ponha em perigo a segurança alheia. A discussão que surgiu é quanto ao aparente conflito com os arts. 306, 308, 309 e 311 da Lei n.º 9.503/97. O entendimento dominante é que a contravenção penal continua valendo como "soldado de reserva" (na feliz expressão de Nélson Hungria), isto é, quando não contempladas as hipóteses do CTB, a conduta do motorista poderá configurar a prevista pelo art. 34.

Conclusão. Como vimos, os aspectos criminais do Código de Trânsito Brasileiro continuam a suscitar polêmicas nos tribunais do país. Questões controvertidas ainda não foram completamente pacificadas, novos vícios de inconstitucionalidade foram suscitados e a miscelânea legislativa continua a proliferar novas leis semelhantes. O caos legislativo na seara penal é iminente e aos operadores do Direito resta apelar para verdadeiros malabarismos a fim de poder aplicar as novas normas jurídicas que brotam do nada, dia após dia. Da análise dos delitos de trânsito comparada à nova ordem constitucional, talvez fique assentado que os crimes de perigo abstrato ou presumido padecem de inconstitucionalidade, afrontando o princípio da lesividade e o caráter de extrema ratio do direito penal. Essa é a tendência que parece ser seguida pela mais alta corte e que deve orientar os juristas daqui por diante.

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Sobre o autor
Átila Da Rold Roesler

Procurador federal da Advocacia-Geral da União, especialista em Direito Processual Civil, autor do livro Execução Civil - Aspectos Destacados (Editora Juruá, 2007), ex-Delegado de Polí­cia Civil do Estado do Paraná.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROESLER, Átila Rold. Novas (e velhas) polêmicas sobre os crimes de trânsito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 250, 14 mar. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4949. Acesso em: 24 nov. 2024.

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