Algumas práticas interpretativas no Direito conduzem a equívocos notáveis, nos quais uma visão parcial do problema compromete a correta aplicação das Leis e da Constituição. Entretanto, os equívocos passam a não mais ser aceitáveis quando assumem uma feição de patologia institucional. É o que vem ocorrendo, desde há alguns anos, no tocante à interpretação das regras jurídicas referentes à responsabilidade civil do Estado.
O Direito brasileiro, como é sabido por todos, aceita a teoria da responsabilidade objetiva do Estado. Mas será que isso quer dizer a responsabilidade do Poder Público por qualquer fato ou ato, comissivo ou omissivo no qual esteja envolvido, direta ou indiretamente? Qualquer acadêmico de Direito que tenha uma mínima noção dos requisitos para a configuração dessa responsabilidade civil sabe que não.
Porém, alguns de nossos juristas e magistrados têm-se servido de um conceito amplíssimo de responsabilidade objetiva, levando às raias do esoterismo a exegese para a definição do nexo causal. A esse respeito, alguns exemplos podem indicar a dramaticidade do problema, que não se restringe a discussões meramente acadêmicas – ao contrário, tratam do próprio núcleo do interesse público.
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário n.º 220.999, corrigiu uma dessas perplexidades. A hipótese, em resumo, era de uma empresa que pleiteava ressarcimento por cessação de lucros decorrentes da interrupção do escoamento de sua produção após a suspensão da prestação de serviço de transporte fluvial pela sociedade de economia mista federal FRANAVE. Para o espanto de todos, a decisão de 1ª instância, confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região, entendia que a União tinha o dever de manter em funcionamento a sociedade, mesmo que não houvesse qualquer previsão legal a respeito, nem obrigação de continuidade dos serviços entre a FRANAVE e a autora da ação. Pior, a decisão funda-se num misto de responsabilização da União pela edição de atos legislativos referentes à possibilidade de cessão dos bens da FRANAVE para os Estados e Municípios no processo de desestatização e responsabilização pela desativação da empresa, acusada como omissão da União. Em última análise, o que pleiteava a empresa era o direito ao lucro garantido, a ser custeado pelo Estado.
Graças à atuação diligente da Procuradoria da União em Pernambuco, o STF fez o bom senso voltar aos autos, corrigindo grave e lamentável equívoco do TRF da 5ª Região ao interpretar de forma precisa o nexo causal exigido para a apuração da responsabilidade.
Não paremos por aí. As companhias aéreas, beneficiárias de extensos estímulos e subvenções em determinado período, pleiteiam ressarcimentos por parte da União, em razão de supostas defasagens nas tarifas aéreas decorrentes de planos econômicos. Também os empresários do setor sucro-alcooleiro pretendem ser ressarcidos pela União por supostos prejuízos ocorridos no período compreendido entre março/85 e outubro/89, decorrentes da política econômica adotada pelo Governo Federal para o setor. Naquele período, o extinto Instituto do Álcool e do Açúcar – IAA era encarregado de definir os preços, tendo por subsídio levantamento de custos médios efetuados pela FGV. O fundamento das decisões judiciais é a infundada ilicitude decorrente da violação da Lei nº 4.870/65, pois o IAA não reconhecia caráter vinculante aos levantamentos da FGV, e essa equivocada presunção de ilícito determinou a incidência de correção monetária e juros desde a data da suposta lesão a direito. Em verdade, essas decisões violaram a Lei nº 4.870/65, bem como o DL nº 2.335/87 e a Lei nº 7.730/89 (oriunda da MP nº 32/89), que legitimavam a fixação dos preços pelas autoridades públicas ou determinavam congelamentos de preços.
O cortejo de aberrações não termina, e esses pleitos, pulverizados dentro da brutal massa de processos judiciais em curso, passam despercebidos, arrimados freqüentemente em laudos e pareceres técnicos de duvidosa idoneidade.
Alguns juízes entendem que estão a criar uma jurisprudência libertária quando condenam a União – significa dizer, a pobre sociedade brasileira – a pagar vultosas indenizações a segmentos largamente privilegiados, seja com a política de subsídios do passado, seja com a generosa hermenêutica do presente.
Por mais que se faça um pretenso juízo de eqüidade, constitui-se em abuso querer transformar o Poder Público em salvador de empresas com gestões comprometidas e concebidas dentro do peculiar conceito de capitalismo "à brasileira", no qual os lucros são apropriados e os prejuízos são socializados.
A consideração central a se fazer é, se determinados planos econômicos ou se determinadas políticas públicas afetaram toda a sociedade, por que razão pretenderiam alguns privilegiados encontrar numa atuação global do Poder Público um nexo de causalidade com eventual prejuízo. Essa obscura lógica só pode encontrar respaldo numa visão distorcida de Estado, protetora de privilégios e de corporativismos.
É necessário, portanto, identificar-se no Estado Democrático de Direito a formação do interesse público calcado em interesses universalizáveis e publicamente justificáveis. As razões e os interesses forjados em um discurso e uma prática corporativa, em sentido contrário, são unilaterais, sectários, e, freqüentemente, obscurantistas.
O que tem ocorrido, lamentavelmente, é a usurpação de instrumentos normativos destinados à proteção da cidadania para proteger privilégios, e os casos aqui abordados representam apenas parcela das conspirações sectárias que se fazem hoje para cooptar o interesse público para a defesa de interesses obscuros e injustificáveis. A tarefa de todos, nesse contexto, é desenvolver uma percepção crítica, para permitir-se a identificação e a denúncia das tentativas ilegítimas de apropriações indevidas de recursos da sociedade brasileira.