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A coisa julgada no processo civil romano

20/03/2004 às 00:00
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1.1 Introdução:

Nas palavras de Celso Neves [1], "estudar a coisa julgada é examinar a sua história". É daí, segundo o referido jurista, que advirão os dados necessários para o delineamento de seu conceito, dos seus lindes, definindo o conteúdo que lhe é específico e, por fim, preordenando os efeitos que lhe são próprios.

Seguindo este pensamento, antes de qualquer estudo acerca da teoria da coisa julgada no direito processual civil pátrio, ora vigente, cumpre destacar a evolução histórica deste instituto jurídico extremamente complexo e polêmico.

Assim, apesar de não ter a pretensão de esgotar o tema, este artigo visa trazer aos estudiosos do Direito alguns aspectos relevantes do direito processual civil romano, notadamente do processo das "legis actiones", do processo formular e do processo da "extraordinaria cognicio", fazendo os apontamentos necessários de modo a vislumbrar a presença e a evolução da coisa julgada nestes processos.


1.2 A coisa julgada no Processo Civil Romano:

1.2.1 O processo das ações das leis – "legis actiones"

O processo civil romano se apresenta como um conjunto de regras que o cidadão romano deveria seguir para realizar e efetivar seu direito material [2].

Impende destacar que o direito romano sofreu profundas transformações e evoluções durante os doze séculos que vigorou, sucedendo-se três sistemas de processo: o das "legis actiones", o formular e o da "extraordinaria cognicio".

O sistema das ações da lei ("legis actiones") representa o ponto inicial do lento, mas contínuo desenvolvimento histórico do processo romano, cujos traços mais remotos se encontram na Lei das XII Tábuas. É, sem dúvida, o mais antigo dos sistemas de processo civil romano, tendo vigorado do século VIII ao século V a.C [3].

Julga-se que a denominação de ações da lei decorreu do fato de as "legis actiones" se originarem da lei, ou então, da circunstância de elas se conformarem de forma estrita com as palavras da lei [4].

O processo das ações da lei é marcado por um extremo formalismo, uma vez que segue a rituais imutáveis e a palavras solenes, pré-determinadas. Os litigantes não podem expor suas pretensões, empregando palavras próprias. Devem empregar verba certa, pronunciando oralmente os termos já definidos pela lei. Uma troca de palavras neste sistema pode implicar na perda do processo. Daí a denominação "legis actiones".

Ou seja, as ações são marcadas pela tipicidade, conformando-se às palavras das próprias leis. Em decorrência deste rigor formal, as "legis actiones" eram extremamente escassas.

O processo das "legis actiones" é dividido em duas fases distintas [5]: a primeira perante o magistrado, que é órgão público (fase no Tribunal, in iure); a segunda perante o juiz popular, que é um particular indicado pelas partes ou pelo magistrado (fase apud iudicem, in iudicio). A principal distinção que se apresenta é o fato de o Estado assumir apenas uma parte da função judiciária. Esta separação é de suma importância para a identificação da coisa julgada neste processo, conforme se verá a seguir.

Com efeito, na primeira fase, o magistrado, órgão estatal, tem como papel fiscalizador do procedimento, determinando qual é o direito que deve se aplicar na espécie, cabendo, exclusivamente ao juiz popular, na segunda fase, analisar as provas trazidas pelas partes e respeitar os limites jurídicos fixados anteriormente pelo magistrado. A sentença final, portanto, será proferida por um particular, não possuindo sequer motivação e poder de comando.

Importante ressaltar que a fase "in iure", perante o órgão estatal, só se realizava na presença das duas partes litigantes. Assim, cabia ao demandante citar o demandado, levando-o à presença do magistrado, inclusive por meio da força. Era um ato essencialmente privado, sendo certo que aquele que pretendia fazer valer o seu direito em juízo devia assegurar pelos seus próprios meios a presença do demandado, sob pena da não instauração do processo.

Feita a referida citação, as partes compareciam perante o magistrado (fase "in iure") e debatiam formalmente e oralmente a causa, conforme os rigores das "legis actiones" já referidos anteriormente. Se o réu negasse as afirmações do autor, procedia-se a escolha do juiz popular, privado (o"iudex").

Neste momento (não se sabe se antes, ou depois, da nomeação do "iudex") [6], com a fixação do litígio e instauração do contraditório, as partes tomavam como testemunhas os assistentes da audiência com o magistrado (fase "in iure") ou as pessoas que eventualmente lhes acompanharam até ali, firmando o ato solene denominado de "litis contestatio".

A "litis contestatio" fixava a lide que seria objeto de decisão pelo juiz popular ("iudex") na segunda fase do procedimento.

É certo que os romanos também se preocupavam com a estabilização e pacificação dos litígios, não podendo admitir a repetição de determinada "legis actio" já proposta pelas mesmas partes. Daí a relevância do estudo da coisa julgada no processo romano.

Com efeito, no processo das legis actiones, os juristas romanos fixaram na "litis contestatio" o momento processual de exaurimento do exercício de determinada "legis actio", asseverando que um direito não mais podia ser submetido a novo juízo desde que já deduzido em processo anterior, mesmo que ainda não julgado pelo juiz privado escolhido pelas partes [7].

A "litis contestatio" de um processo anterior se apresentava, assim, com efeito consumptivo, possibilitando que o Estado, por meio do magistrado (órgão estatal), indeferisse a nova "legis actio" cujo direito fosse idêntico a outro já fixado por aquela. É neste ponto que se vislumbra a presença histórica dos traços característicos da coisa julgada, sendo certo que já desde os romanos a res iudicata está relacionada com a autoridade estatal. Ou seja, se não há atividade do Estado, não há coisa julgada para os romanos.

Ressalta-se, por derradeiro, que a coisa julgada não é representada pela sentença final do procedimento de determinada "legis actio", uma vez que tal decisão, conforme dito acima, é emanada de um particular (iudex), tendo apenas caráter de mera opinião, desprovida de motivação, comando e força mandamental. A coisa julgada antecede, pois, a sentença final no processo das "legis actiones".

Neste sentido, oportuno destacar a lição de Celso Neves:

"O princípio bis de eadem re ne sit actio que remonta ao período das legis actiones e está à base da teoria romana da coisa julgada, atuava, no período clássico, de ofício, nos chamados iudicia legitima in personam, dependendo, nas ações in rem e nos iudicia quae imperio continentur, de provacação do interessado, através da exceptio rei iudicate vel in indicium deductae. Não se ligava, entretanto, à sentencia ou ao iudicatum, porque independia do julgamento da causa, constituindo efeito da litis contestatio. A esse negócio jurídico bilateral que vincula o réu ao autor (...) é que se liga o princípio da unicidade da ação, de que decorre a exceptio, destinada a ressalvá-lo. Não importava ter sido, ou não julgada a ação. Menos ainda, a fortiori, o conteúdo da decisão. O conceito não era, ainda, o de coisa julgada em seu sentido atual." [8]

Este primitivo formalismo das legis actiones, incompatível com o subsequente desenvolvimento do direito romano, levou pouco a pouco ao desprestígio do sistema processual em comento, que acabou sendo substituído pelo processo formular que será abordado a seguir.

1.2.2 O processo formular

Conforme já relatado acima, o formalismo exarcebado do processo das ações da lei foi conduzindo a sua extinção e a sua superação por outro sistema processual. Mesmo porque aquele antigo processo era voltado exclusivamente para tutela dos direitos dos cidadãos romanos, não atendendo aos interesses das partes que fossem peregrinas.

Além disso, ressalta-se que o momento histórico exigia novo sistema processual, uma vez que a expansão mediterrânea de Roma e os problemas gerados pelo comércio internacional intensificaram os litígios entre romanos e estrangeiros, agora fundados também no ius gentium e não mais nas normas do ius civile.

Dentro deste contexto, surgiu o processo formular que nasce como alternativa mais moderna, menos formalista, mais ágil e mais abrangente do que as legis actiones.

Nas palavras de Cretella Júnior, "o processo formular assinala um momento culminante na história da vida judiciária romana, porque só agora a figura do pretor se impõe, para resolver com auxílio da equidade os casos concretos, antes submetidos ao frio e desumano rigorismo das formalidades" [9].

Acerca da origem do processo formulário, eis a lição do jurista Moreira Alves [10], citando a doutrina de Huscke:

"Segundo Huscke, a origem do sistema formulário se encontra no processo que desenrolava diante do pretor peregrino; não podendo, nesse caso, ser aplicado o sistema das ações da lei (que só se empregava para dirimir conflitos de interesse entre cidadãos romanos), o pretor peregrino – diante das pretensões expostas livremente pelos litigantes, nem sempre em latim – redigiria instruções aos recuperatores (e nisso estaria o ponto de contato com a fórmula do processo formulário), que se baseariam nelas para julgar a causa."

O processo formulário desenvolve-se segundo um rito padrão, passando a ser parcialmente escrito, com a presença da fórmula, como sua principal característica. Segundo o jurista Moreira Alves, a fórmula trata-se "de um documento escrito onde se fixa o ponto litigioso e se outorga ao juiz popular o poder para condenar ou absolver o réu, conforme fique, ou não, provada a pretensão do autor" [11].

Na lição de Alexandre Corrêa, "a fórmula constitui a delimitação da forma segundo a qual a controvérsia será examinada pelo juiz; para este é uma indicação de seu poder" [12].

Apesar das diferenças com o sistema das ações da lei, visto no item anterior, principalmente no que se refere à atuação mais intensa do magistrado (órgão estatal- pretor), que deixa de ser mero fiscal do procedimento, o processo formulário continua inserido na órbita do ordo iudiciorum privatorum (caráter privado da justiça, com atuação apenas parcial do Estado).

O procedimento também se divide, como no sistema das ações da lei, em dois momentos: o primeiro perante o magistrado (pretor – órgão estatal, agora com mais poderes de atuação) e o segundo perante o juiz popular (cidadão comum indicado pelas partes).

Na primeira fase (in iure), o demandante comparece perante o pretor (magistrado) levando o demandado, agora sem haver a necessidade do emprego da violência, já que o pretor tem o poder de dar ordem ao réu para que compareça, sob pena de multa e ainda de cometimento de delito.

Presentes as partes, podendo inclusive ser representadas por terceiros (o que não se admitia no sistema anterior), o demandante expõe suas pretensões do modo que achar necessário, requerendo a fórmula para o seu direito. É a chamada postulatio. Após, o demandado se manifesta, podendo confessar ou recusar as alegações do demandante.

Em caso de recusa, haverá a nomeação do juiz popular e a redação da fórmula para a espécie. Por fim, celebra-se a litis contestatio, que, segundo a doutrina dominante, "é um contrato judicial, pelo qual o autor e o réu concordavam em submeter o litígio, nos termos da fórmula, ao julgamento de um juiz popular, e acordo esse que se manifestava com a leitura da fórmula pelo autor ao réu, que a aceitava" [13].

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A partir daí, inicia-se a segunda fase, perante o juiz privado (apud iudicem), que agora, diante das provas apresentadas, tem o poder de condenar ou absolver o réu, segundo os limites traçados pela fórmula, o que não ocorria no sistema anterior.

Com efeito, a sentença no processo formular se apresenta mais do que uma mera opinião do juiz particular, sendo dotada de força de comando com respaldo na fórmula. É neste ponto que tem relevo o estudo da coisa julgada no referido sistema processual.

No sistema das ações da lei, conforme exposto acima, a sentença final era mera opinião do juiz privado, sendo a coisa julgada representada pela litis contestatio, ocorrida na primeira fase (in iure). No processo formular, já mais evoluído, a sentença final pode consagrar a res iudicata, justamente porque neste sistema o juiz popular adquire o poder de comando lhe outorgado pela fórmula definida pelo pretor (órgão estatal).

Neste sentido, impende citar a lição Cretella Júnior:

"Proferida a sentença, encerra o juiz sua missão, deixa mesmo de ser juiz, mas a decisão vai produzir os respectivos efeitos jurídicos. Se o juiz pronunciou uma condenação contra o réu, a sentença substitui a obrigação condicional, nascida da litis contestatio, obrigação de pagar o quantum da condenação. Na ausência de execução voluntária do julgamento, o autor pode empregar as vias de execução. A sentença, quer condenatória, quer absolutória, é dotada de força jurídica, cujo objetivo é estabelecer uma situação e consagrar a res iudicata." [14]

A evolução da coisa julgada no processo formular também é relatada por Celso Neves, que assim se pronunciou:

"Na antiga legis actio sacramento, a sententia do iudex não é mais do que uma opinião... Não há, nela, nenhum comando, porque nenhum poder, seja decorrente do imperium do magistrado, seja da vontade das partes, se atribui ao iudex privatus. No sistema formular, um novo elemento se acrescenta à sententia: o iudicatum, por força do qual se impõe às partes um certo comportamento. Esse poder se funda no iussus iudicandi que, provindo do magistrado (pretor), interfere na essência mesma do juízo, ao introduzir elementos publicísticos no caráter privado do antigo processo." [15]

José Rogério Cruz e Tucci também se pronunciou no sentido acima:

"O resultado da atividade lógica, pela qual o iudex chega a uma determinada convicção, nada mais é do que uma sententia na acepção normal e comum da palavra, que significa opinião. Mas o iussus do magistrado não determina ao juiz de simplesmente formar uma opinião, todavia, impõe-lhe um comportamento (condenação ou absolvição) subordinado à formação da sententia num ou noutro sentido." [16]

Logo a seguir, concluiu:

"Assim, a sentença do iudex supunha, via de regra, uma simples declaração que tinha o condão de por fim à controvérsia e de fazer nascer uma nova relação jurídica entre os litigantes. Essa nova relação, denominada res iudicata, é que iria servir de fundamento da actio iudicati, pela qual o vencedor podia exigir o cumprimento da sentença que lhe fora favorável. A auctoritas rei iudicata como produto imediato da sentença condenatória, na célebre definição de Modestino.. ., gerava então, dentre outros relevantes efeitos, a obligatio iudicati. Da sentença, outrossim, emergia o efeito de permitir a inserção da exceptio rei iudicatae na fórmula de idêntica actio posteriormente ajuizada." [17]

Enfim, a fórmula neste sistema processual romano delimita o objeto da controvérsia e os limites da coisa julgada, possibilitando que a sentença final tenha poder de comando, o que lhe confere caráter publicístico, criando uma nova obrigação entre os litigantes, a obligatio iudicati. É a fase de transição da justiça privada para a pública, na qual o Estado vai monopolizar a prestação da tutela jurisdicional.

1.2.3 O processo da "cognitio extra ordinem"

Este sistema processual denomina-se cognitio extra ordinem, porque os magistrados se afastam das regras impostas pela antiga ordo (a ordo judiciorum privatorum). Ou seja, não há mais a divisão de fases como nos sistemas anteriores de caráter privado, tendo apenas um julgador, órgão público.

Eis o que o jurista Cretella Júnior leciona acerca deste sistema processual:

"O processo romano perde aos poucos seus traços privatísticos, caminhando num sentido publicístico. É a estatização do processo. Desaparece a antiga divisão da instância romana em duas fases, não se fala mais na ordo judiciorum privatorum, esquecem-se as regras de competência, de lugar e de dia, ligadas à noção de dias fastos e nefastos. Agora, o mesmo titular reúne os atributos de magistrado e juiz, antes repartidos entre duas pessoas que atuavam, respectivamente, na primeira e na segunda fases processuais." [18]

Logo a seguir o mestre arremata:

"A oralidade do processo é substituída por outro sistema em que prevalecem os atos escritos, redigidos pelos auxiliares da justiça e pelos advogados. Neste período, os advogados constituem uma classe prestigiada, numerosa, reunida em corporações e com prerrogativas especiais. Enfim, a gratuidade desaparece, havendo, então, as custas processuais, pagas ao serventuários da justiça e aos advogados." [19]

Ao situar o período da cognitio extra ordinem no direito romano pós-clássico, o professor Rosemiro Pereira Leal assim leciona:

"Ampliou-se, nessa época, ainda mais, o poder dos pretores que, nesse período pós-clássico, também chamado período do Principado e da monarquia absoluta (284 d.C – 565 d.C), agiam por um sistema jurídico paralelo à ordem vigente, conhecendo e julgando diretamente os litígios sem interferência de árbitros, não mais podendo os particulares, nessa época PÓS-CLÁSSICA, utilizar-se da arbitragem, por qualquer de suas formas. Essa fase, conhecida como a da COGNITIO EXTRA ORDINEM, assinala a passagem do modelo romano da Justiça Privada para a Justiça Pública." [20]

O magistrado – funcionário público, agora também juiz, passa a ser o titular do poder-dever de examinar as provas produzidas pelas partes litigantes e proferir a sentença, a qual, pela primeira vez na história do processo civil romano, não mais consistia em um ato exclusivo do cidadão romano, não tendo mais caráter arbitral (privado), mas, sim, expressão de vontade estatal soberana: ex autoritate principis.

No procedimento da extraordinaria cognicio, a citação de caráter privado vai cedendo passo àquela onde já se vislumbrava a participação da autoridade pública. "A evocatio, como agora vem denominada a citação, realizava-se então por meio de um convite verbal, autorizado pelo magistrado.. ., dirigido ao demandado" [21]

Após a realização da citação, iniciava-se o processo perante o magistrado, cabendo ao demandante expor sua pretensão (petitio ou persecutio [22]). Estas alegações serão, agora, livremente apreciadas pelo magistrado – funcionário público julgador, já que não mais existe a figura da fórmula. Ao réu, caberia apresentar sua defesa.

O principal efeito desta estatização do processo romano ocorre em relação à sentença. Esta não mais se identificava com um simples parecer jurídico de um cidadão investido no poder de julgar, vinculada ainda a alguma fórmula, mas, na verdade, encerrava um comando soberano, imperativo e vinculante emanado de um órgão estatal, manifestação esta sujeita a recurso para órgão julgador superior.

Isto se reflete, evidentemente, na caracterização da coisa julgada, que agora nitidamente se separa da sentença.

Conforme ensina Celso Neves:

"No processo da extraordinaria cognicio a sententia iudicis corresponde ao exercício da iurisdicio entregue às magistraturas que detêm a função jurisdicional do Estado. Esse modo de ser, inteiramente novo, assinala a eliminação dos resíduos da concepção arbitral e privada do antigo processo das ações da lei que permaneceram no processo formular, marcando a última etapa da transição da arbitragem privada ao processo público... O novo conceito de sentença – que passa para a codificação de Justiniano – nascido com as cognitiones do período clássico (processo formular) e consolidado no processo da extraordinaria cognitio, imprime nova orientação ao sistema processual romano, interferindo no conceito de coisa julgada..." [23]

E conclui que:

"Quando a regra se deslocou, da litis contestatio para a sententia, esta já perdera o caráter de opinião arbitral privada, fundando-se no iussus iudicandi que transmitia ao ato caráter estatal, como fase de uma evolução que se vai completar na extraordinaria cognitio, em que a sententia iudiciis é expressão da atividade jurisdicional do Estado Romano, propiciando distinguir-se entre sentença e coisa julgada, através das vias de reexame que a tutela jurisdicional estatizada propiciou. A res iudicata liga-se, assim, na concepção romana, à autoridade estatal, de início vinculada à litis contestatio enquanto fecho do procedimento in iure; depois à sententia, primeiro como ato pelo qual se soluciona a controvérsia, subjetiva e objetivamente fixada na fórmula e, por último, como via de entrega da prestação jurisdicional, quando subordinada ao monopólio do Estado, num caminhamento que vai das legis actiones à extraordinaria cognitio, até dar na condificação de Justiniano." [24]

Percebe-se que, neste momento histórico de evolução do direito processual, a coisa julgada passa a se identificar com os efeitos da sentença. Efeito negativo, qual seja de impossibilitar a instauração de um novo processo acerca do mesmo objeto, sendo oponível a exceptio rei iudicatae. Efeito positivo, no sentido de que a sentença, nos limites do seu conteúdo, somente operava seu comando entre as partes envolvidas, não podendo, em regra, prejudicar terceiros.

Despiciendo afirmar que toda essa construção erigida ao tempo do direito romano pós-clássico irá inspirar a ciência processual moderna a traçar e desenvolver a teoria dos limites objetivos e subjetivos da coisa julgada, o que demonstra a suma importância do estudo da evolução histórica do referido instituto.

Este sistema processual perdurou até os últimos dias de Roma, servindo de modelo para as instituições processuais dos períodos que se seguiram, sobretudo ao direito processual contemporâneo, que, não tenho dúvida, baseou-se profundamente no legado romano.


1.3 Conclusão

Diante do exposto neste artigo, percebe-se que, desde os tempos remotos do processo romano, a coisa julgada é instituto jurídico intimamente relacionado à autoridade estatal.

No período das legis actiones e no início do período do processo formular, pertinentes à ordo iudiciorum privatorum (processo privado), a res iudicata se apresentava na fase processual in iure, da qual participava o magistrado romano no exercício do seu poder de conceder ou negar a ação. Conforme sustentamos, a coisa julgada não resultava da sentença final, de caráter puramente privado, mas da litis contestatio.

Posteriormente, quando a sentença se faz ato estatal, dotada de comando absolutório ou condenatório, passa-se à categoria da exceptio rei iudicate. Ou seja, a tutela jurisdicional prestada é insuscetível de repetir-se entre as mesmas partes. É o início da estatização do processo romano, que já teve seu embrião no período formular. A coisa julgada é transferida para a sentença final, que dotada de comando estatal.

Esta estatização vai ser plena no processo da extraordinaria cognitio. Importante ressaltar que a coisa julgada era vista ainda como efeito da sentença, mas demonstra o embrião de toda a teoria moderna acerca do instituto.

Percebe-se, finalmente, que a teoria dos limites objetivos e subjetivos da coisa julgada também resistiu ao tempo e chegou até nossos dias, com grande respaldo nos ensinamentos romanos.


Notas

1 NEVES, Celso. Coisa Julgada Civil. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1971, p. 5;

2 CRETELLA JUNIOR, José. Direito Romano. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1966, p. 299;

3 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo. Primeiros Estudos. Porto Alegre: Síntese, 2001, p. 39;

4 ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 234;

5 CORRÊA, Alexandre. Manual de Direito Romano. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1988, p. 76;

6 ALVES, ob. cit., p. 236;

7 NEVES, ob. cit., p. 11;

8 NEVES, ob. cit., p. 39,40;

9 CRETELLA JUNIOR, ob. cit. p. 314;

10 ALVES, ob. cit., p. 251;

11 Idem, p. 253;

12 CORREA, ob. cit., p. 80;

13 ALVES, ob. cit., p. 268, 269;

14 CRETELLA JUNIOR, ob. cit., p. 318;

15 NEVES, ob. cit., p. 25, 26;

16 TUCCI, José Rogério Cruz e; Azevedo, Luiz Carlos de. Lições de história do processo civil romano. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1996, p. 127,128;

17 Idem, p. 128;

18 CRETELLA JUNIOR, ob. cit., p. 324, 325;

19 Idem, p. 325;

20 LEAL, ob. cit., p. 40;

21 TUCCI, ob. cit., p. 143;

22 Idem, p. 145;

23 NEVES, ob. cit., 27;

24 Idem, p. 45;

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Sobre o autor
Daniel Carneiro Machado

Juiz Federal da 21ª Vara da Seção Judiciária de Minas Gerais. Doutor em Direito Processual pela UFMG (2016) e Mestre em Direito Processual pela PUC Minas (2004). Professor titular do curso de graduação em direito do Centro Universitário Newton Paiva, em Belo Horizonte, além de professor de cursos de pós-graduação e preparação para concursos públicos na área jurídica. Ex-Advogado da União e ex-Procurador da Fazenda Nacional em Minas Gerais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, Daniel Carneiro. A coisa julgada no processo civil romano. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 256, 20 mar. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4967. Acesso em: 24 nov. 2024.

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