Artigo Destaque dos editores

O inquérito policial agora é legalmente contraditório

08/04/2004 às 00:00
Leia nesta página:

A atividade de polícia judiciária, prestada pela Polícia Civil nos termos do art. 144, § 4º da Constituição Federal, incumbe a apuração de infrações penais, observada a ressalva (os crimes militares).

O momento determinante da atuação da Policial Civil é a ocorrência da infração penal, ou seja, após os atos de polícia administrativa serem ineficazes para evitar o fato crime. A atividade de repressão penal do Estado inicia-se através da ação da polícia judiciária.

O meio para tal mister é um procedimento administrativo de persecução criminal, presidido pelo Delegado de Polícia, denominado Inquérito Policial.

Na apropriada definição do Prof. Tourinho Filho, inquérito policial é o "conjunto de diligências realizadas pela polícia judiciária para a apuração de uma infração penal e de sua autoria, a fim de que o titular da ação penal possa ingressar em juízo".

Não menos percuciente o saudoso Mestre Mirabete, "Inquérito policial é todo procedimento policial destinado a reunir os elementos necessários à apuração da prática de uma infração penal e de sua autoria".

Neste sentido é procedimento para um destinatário imediato, o Ministério Público (titular da ação penal pública) ou o ofendido (titular da ação penal privada), e um destinatário mediato, o juiz.

No inquérito policial destacam-se as seguintes características:

1.um procedimento escrito, porque apresenta atos formais;

2. oficial, porque feito por órgãos oficiais;

3. oficioso, porque a atuação é de ofício, salvo nas ações penais privadas;

4. com autoritariedade, porque é presidido por delegado de polícia;

5. indisponível, porque não pode ser arquivado pelo delegado de polícia;

6. sigiloso e inquisitivo.

A natureza sigilosa do inquérito policial é presunção do art. 20 do Código de Processo Penal, pelo qual a autoridade assegurará no procedimento sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da coletividade. Embora na Constituição Federal o art. 5º, XXXIII garante à todo indivíduo a possibilidade de obtenção de informações dos órgãos públicos, o aparente antagonismo com o caráter sigiloso do inquérito policial se justifica por não ser ilimitado o exercício da liberdade pública, mas limitado na exata proporção do interesse coletivo, no caso a preservação das investigações para a identificação da autoria da infração penal.

Este sigilo, obviamente, não se estende ao Ministério Público, ao Juiz e ao Advogado, assegurados que estão no acesso aos autos em razão da natureza de suas funções.

Em que pese críticas ao segredo, uma de suas importantes finalidades alcança a preservação do estado de inocência do investigado.

A natureza inquisitorial decorre das atividades persecutórias concentrarem-se nas mãos de uma única autoridade, agindo independentemente de provocação de quem quer que seja, motivada apenas pela busca da verdade real.

O delegado de polícia atua com discricionariedade no direcionamento das diligências para o esclarecimento do crime e sua autoria. Mas, não está desvinculado as normas procedimentais do art. 6 do Código de Processo Penal, especialmente quando ouvir o indiciado, observando o disposto no Capítulo III (Do interrogatório do acusado), do Título VII (Da prova), deste Livro (Do Processo em Geral).

Este ato, o indiciamento, é a imputação à alguém, no inquérito policial, da prática do ilícito penal. A pessoa objeto de investigação é declarada como sendo a provável autora do crime. O indiciamento resulta da convergência dos sinais obtidos na persecução de que aquela pessoa é a provável autora do crime. À partir deste momento as investigações passam a se concentrar na pessoa do indiciado.

Formalizado o ato de indiciamento, torna-se óbvio seu conhecimento quanto a investigação. O sigilo não mais se justifica, mesmo porque mantido, afrontaria o dever legal do delegado de polícia, quando do indiciamento, assegurar ao indiciado, especialmente na situação de prisão em flagrante delito, o conhecimento de seus direitos constitucionais, entre os quais a ciência da acusação, o de permanecer calado, da assistência de advogado e familiar e da identificação da autoridade responsável pela segregação.

Com a entrada em vigor da Lei 10.792, em 2 de dezembro de 2003, significantes alterações foram introduzidas na Lei de Execução Penal (Lei n. 7.210, de 11 de junho de 1984) e no Código de Processo Penal (Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941), interessando dentre elas, justamente no Tit. VII, Cap. III, ao dispor sobre o interrogatório (art. 185 e seguintes).

Dentre as inovações, a nova lei exige a presença de advogado, constituído ou nomeado, no interrogatório do réu (que poderá ser realizado até em estabelecimento prisional), como forma de assegurar maior amplitude de defesa (art. 185). Portanto, o ato não subsiste como inquisitivo do juiz, é contraditório. Não bastasse, ampliando e assegurando os meios de defesa, garante o direito de entrevista reservada do acusado com o advogado, ocasião em que poderá receber orientação técnica (art. 185, § 2º). Há a possibilidade de admitir perguntas do defensor e do promotor (art. 188). E, em adequação ao novo Código Civil, já não há necessidade de nomeação de curador ao réu menor de 21 anos (art. 194 foi revogado).

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Se com a nova lei, profundas mudanças foram introduzidas no interrogatório, tais também deverão ser observadas pelo delegado de polícia no inquérito policial, por imposição do art. 6, V do Código de Processo Penal.

Exige-se, agora (melhor dizer, desde 2 de dezembro de 2003), a presença de advogado, constituído ou nomeado, para o indiciamento do investigado, especialmente quando preso em flagrante delito. Possibilita-lhe a entrevista reservada com o defensor e deste a promoção de perguntas. Não há necessidade de nomeação de curador para indiciados menores de 21 anos, mesmo porque, presente o advogado, inútil a fiscalização dos atos por outra pessoa.

O advogado, atuando no inquérito policial, é o reconhecimento do contraditório neste procedimento, porque assegura ao indicado conhecimento das provas produzidas na investigação, o direito de contrariá-las, arrolar testemunhas e promover perguntas, direito a não ser indiciado com base em provas ilícitas e o privilégio contra a auto-incriminação.

Obviamente, sob pena de total insensatez e inocuidade do procedimento investigatório, não se fala em contraditório no início das investigações, mas após o reconhecimento dos indícios da conduta delituosa motivadoras do indiciamento.

O contraditório, após o indiciamento, não conspira contra o êxito das investigações, ao contrário, assegura maior legitimidade as conclusões da investigação.

A adoção do princípio dá ao inquérito policial outra natureza, não de peça meramente informativa, mas com valor de prova na instrução. Consequentemente, mais célere e mais rápida a prestação jurisdicional.

Não se poderia argumentar contra a inovação, pois de certa forma já é reconhecida a sistemática no inquérito judicial para apurar crime falimentar e no inquérito policial elaborado pela Polícia Federal com fim de expulsão de estrangeiro.

Corolário do contraditório, a ampla defesa não encontra lugar no inquérito policial, já que não existe acusação.

O inquérito é legalmente contraditório, à partir do indiciamento.


Bibliografia:

. Fernando da Costa Tourinho Filho em Processo Penal, 18ª ed., p. 188;

. Júlio Fabrini Mirabete em Processo Penal, 7ª ed., p. 78;

. Fernando Capez em Curso de Processo Penal, 3ª ed.;

. Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior, em Curso de Direito Constitucional, 5ª ed.;

. Renato Flávio Marcão em Interrogatório: primeiras impressões sobre as novas regras ditadas pela Lei n. 10.792, de 1º de dezembro de 2003, doutrina em www.jaraivajur.com.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Marcus Camargo de Lacerda

Delegado de Polícia em Araraquara,Professor de Direito Penal da UNIP, Campus de Araraquara.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LACERDA, Marcus Camargo. O inquérito policial agora é legalmente contraditório. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 275, 8 abr. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5063. Acesso em: 22 nov. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos