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As raízes do Poder Judiciário brasileiro: uma análise acerca da burocracia do sistema judicial no período colonial

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3 A UNIÃO IBÉRICA: REFORMAS FILIPINAS E O FRACASSO DO TRIBUNAL DE RELAÇÃO DA BAHIA

A crise política portuguesa teve início com o fracasso do Rei Sebastião em uma imprudente ofensiva armada no Marrocos, quando foi morto na batalha de Alcácer-Quibir, em uma desastrosa missão que vitimou não só a realeza de Portugal, mas também boa parte da nobreza. Logo em seguida, a crise dinástica tomou proporções maiores com a morte de D. Henrique, caracterizando o colapso real da família Avis, que tinha sido notabilizada pela unificação tão precoce. Aproveitando-se da situação gerada pela vacância do trono luso, o rei espanhol Filipe II formalizou com as Cortes de Tomar, em 1581, a união das coroas ibéricas, período que foi compreendido entre 1580 e 1640.

Na tentativa de proceder-se à reforma na estrutura judiciária do império português, Filipe II promove a criação de uma junta chefiada pelo jurista Rodrigo Vasquez, ferrenho defensor das ideias do monarca espanhol. Desde logo, reconheceu-se a necessidade de moralizar[9] e atribuir celeridade aos feitos, sugerindo a indicação de juízes com base estritamente no mérito e na aplicação equânime da lei (SCHWARTZ, 2011, P. 59/60).

De fato, a situação de morosidade do judiciário português à época clamava por um grande processo de transformação. Merece destaque os escritos elaborados por Schwartz:

 “A grande demora no exame dos recursos, causada pela submissão de tais casos à Casa do cível e a Casa da Suplicação em Lisboa. Rodrigo Vasquez sugeriu que fosse concedido jurisdição mais ampla aos juízes de fora, a fim de diminuir a necessidade de entrar com recursos em Lisboa. Frisou ainda que os dois tribunais superiores de Lisboa possuíam mais de setenta magistrados, e que o número de juízes nesses tribunais aumentava o volume litigioso e provocava apelações e contestações desnecessárias (SCHWARTZ, 2011, P.60). ”     

Depreende-se, da interpretação extraída do trecho do renomado autor, que boa parte dos problemas no tocante a organização estrutural do judiciário brasileiro, e, sobretudo, com relação a burocracia e questões atinentes a morosidade processual, bem como casos de favorecimento a indivíduos da mais alta sociedade, já eram denunciados no império português desde o século XVI, sendo paulatinamente incorporados no processo histórico de formação do poder judiciário brasileiro, verificando-se até os dias atuais.

Na tentativa de expandir as transformações na administração judiciária ocorrida em solo português para os distritos coloniais, foi criado no Brasil o Tribunal Superior de Relação da Bahia, cujo regimento atribuía competência para o julgamento de recursos referentes às causas intentadas por ação nova, julgados pelos governadores-gerais, ouvidores-gerais e de capitania (MATHIAS, 2009, P. 50).

 Todavia, restou evidenciado que o referido tribunal superior se mostrou um fracasso, diante de uma série de fatores que dificultaram em demasia a instalação da corte. Com efeito, diante da ausência de verificação de indivíduos letrados na colônia, constatou-se a necessidade, pelo império português, de enviar magistrados com formação jurídica e acadêmica para a colônia. Além disso, a ocupação baiana pelos holandeses se mostrou um fator obstativo (MATHIAS, 2009, P. 50). Ademais, o regimento atribuído ao tribunal fixou um elevado número de magistrados na composição da corte (SCHWARTZ, 2011, p. 64), dificultando em demasia a instalação do órgão, tendo em vista que as viagens marítimas oficiais eram notadamente escassas, e até o Século XVIII, só aconteciam uma vez por ano de Lisboa ao Brasil (COMPARATO, 2015, p. 7).

Contudo, além do aspecto intelectivo e político, um grande obstáculo a ser observado para atribuir a ineficácia do tribunal de relação foi a natureza. A embarcação oficial de 1588, composta pela maioria dos magistrados assumiriam as funções na corte recursal baiana, sofreu com fortes ventos e correntezas (SCHWARTZ, 2011, p. 64/65).

Aspecto importante a ser observado acerca da efêmera passagem do Tribunal de Relação da Bahia, lamentavelmente, foram os escândalos de corrupção envolvendo o Governador-geral e os membros do tribunal, estabelecendo-se uma rede de favorecimentos que, não raro, se verifica no contexto político e judiciário atual brasileiro. Com efeito, a presidência do tribunal cabia ao Governador-geral. Este, por sua vez, lançava mão de mecanismos para garantir o apoio dos membros da corte, como a concessão de propinas e gratificações extraordinárias (COMPARATO, 2015, p. 7).

No período que sucedeu à chamada Restauração portuguesa, em 1640, até a chegada do Marquês de Pombal, foram verificadas algumas transformações no panorama organizatório da administração judiciária colonial. Com efeito, foram criados os cargos de juízes ordinários, eleitos pela própria comunidade e com jurisdição altamente restrita, nos limites da respectiva vila (ATHAYDE, 2015, p. 10).

Como forma de projeção da autoridade real portuguesa, foram instituídos os juízes de fora, assim chamados, conforme explica Mathias (2009, p. 69), justamente em razão de virem de fora da colônia. Com atribuições além de cada município, foram designados com a premissa de que seria uma administração judiciária mais qualificada que os juízes locais.

Ademais, os juízes de vintena exerciam jurisdição bastante restrita, de menor importância, decidindo questões simples na esfera municipal, além de efetuarem prisões de praticantes de delitos, entregando-os a jurisdição municipal dos juízes ordinários[10]. Suas decisões eram tomadas verbalmente e não ensejavam qualquer recurso.

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O período pombalino implicou em novas transformações na estrutura judiciária brasileira. Com efeito, houve novamente a criação de um tribunal de relação, dessa vez no Rio de Janeiro. Menciona Mathias (2009, p. 74), que o referido tribunal era composto por 8 desembargadores, semelhante à disposição prevista no regimento da relação baiana: Um juiz de chancelaria, dois desembargadores com funções julgadoras de agravos e apelações, um ouvidor-geral para os crimes e outro para o cível, um juiz fazendário, um procurador e um provedor da fazenda.


CONCLUSÃO           

A exploração do recurso histórico apresenta-se, indubitavelmente, de notável importância para o estudo acerca das raízes do poder judiciário brasileiro. Na busca da interpretação do panorama atual do judiciário brasileiro, o retorno ao passado proporciona estudar as raízes que remontam a estruturação e organização deste importante poder, bem como os gravames incorporados pela administração da justiça portuguesa, desembocando, paulatinamente, na formação moderna do nosso poder judiciário, com características, notadamente, que remontam o período colonial ora analisado.

Notou-se, desde os primórdios do domínio colonial, que a preocupação da coroa portuguesa remontava a administração da justiça. De fato, como foi observado no decorrer do presente aporte histórico-político-judiciário, a administração da justiça, com aspectos inerentes de alta burocracia, constituía fator de importância sublime ao império português, caracterizando, como mencionado, verdadeira projeção da autoridade real portuguesa nas terras longínquas de suas fronteiras, sempre buscando enviar juízes e desembargadores nas expedições marítimas. E com a colônia brasileiras não foi diferente.

Há de se ressaltar, por oportuno, que essa administração judiciária no período compreendido entre 1500 e 1822 apresentou profundas variações de acordo com o panorama político, econômico e até mesmo externo, sucedendo-se períodos de centralização ou descentralização, o que impactava profundamente na questão judicial. Nesse sentido, importa destacar que as opções inicialmente apresentadas de delegação da atividade jurisdicional aos donatários se mostraram notadamente fracassadas, com a substituição gradual da competência judiciária com a introdução pela coroa de magistrados mais letrados (ATHAYDE, 2015).

Convém mencionar, ainda, que a própria administração judiciária portuguesa, por vezes ineficaz, burocrática e demasiadamente morosa, foi projetada na colônia brasileira. Além disso, lamentavelmente, restou demonstrado que as raízes de um sistema judiciário-político corrupto remontam ao período. De fato, foi verificado inúmeros casos de prevaricação entre agentes públicos reais, notadamente à época do funcionamento, ainda que breve do Tribunal de Relação da Bahia, impulsionada pela circulação abundante de propinas em troca de favorecimentos.

Nessa conjuntura, as marcas deixadas pela administração judiciária portuguesa no período colonial, contribuindo para a formação, paulatinamente, de um poder judiciário altamente burocrático, de morosidade excessiva e força executiva mínima, se mostram induvidosas. Como se nota, o atual panorama organizacional do poder judiciário brasileiro, constituído por um elevado número de tribunais e um sistema recursal totalmente contraproducente à marcha processual, a razoável duração do processo e a efetividade das demandas, foi influenciado, sobremaneira, pela administração da justiça lançada pelos portugueses na época colonial. 


REFERÊNCIAS           

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília. Senado Federal. Subsecretaria de Edições Técnicas, 2007.

CARDOSO, Maurício. Brasil atinge a marca de 100 milhões de processos em tramitação na Justiça. Disponível em: (Http://www.conjur.com.br/2015-set-15/brasil-atinge-marca-100-milhoes-processos-tramitacao). Acesso em: 18/04/2016

 VAZ, Paulo Afonso Brum. O papel do juiz na construção do direito: uma perspectiva humanista. Disponível em: http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/index.htm?http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao044/paulo_vaz.html. Acesso em: 19/04/2016.

ATHAYDE, Luciano. Organização do Poder Judiciário no Brasil (da colônia ao império): (des) centralização, independência e autonomia. 2015.

SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. O tribunal superior da Bahia e seus Desembargadores. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

MATHIAS, Carlos Fernando. Notas para uma história do judiciário no Brasil. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009.

Bicentenário do Judiciário Independente no Brasil. Disponível em: http://www.stf.jus.br/bicentenario/apresentacao/apresentacao.asp. Acesso em: 10/05/2016.

CARDOSO, Antônio Pessoa. O Desembargo do Paço era o tribunal supremo do Reino Português. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2008-abr-29/desembargo_paco_tribunal_supremo_portugues. Acesso em: 12/05/2016.

COMPARATO, Fábio Konder. O poder judiciário no Brasil. Caderno IHUideias, ano 13, n. 222, v. 13, São Leopoldo, 2015.

SCHUBSKY, Cássio. Origem fidalga das profissões jurídicas (3). Disponível em:http://www.conjur.com.br/2009-out-20/justica-historia-origem-fidalga-profissoes-juridicas. Acesso em: 20/05/2016.

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Sobre o autor
Francisco Ney Carvalho de Araújo Júnior

Bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Rio Grande do Norte (Uni-RN). Residente Judicial do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, mediante convênio entre a ESMARN e a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO JÚNIOR, Francisco Ney Carvalho. As raízes do Poder Judiciário brasileiro: uma análise acerca da burocracia do sistema judicial no período colonial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4790, 12 ago. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51180. Acesso em: 2 mai. 2024.

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