"Siamo stati troppo abituati alle virtù taumaturgiche del legislatori; siamo stati troppo affidargli il monopolio della produzione giuridica; siamo stati tropp abituati all`ossequio della legge in quanto legge, cioè in quanto autorità e forma."
Paolo Grossi - Prefazione ao vol. 50 dos Quaderni Fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno (Florença, 1996, p. VI)
Introdução
Ao encerrar, no Senado Federal, a votação do Projeto do Código Civil, apresentou o seu relator, Senador Josaphat Marinho, substancioso estudo no qual ressaltou a circunstância de mover-se, o legislador, no espaço que entremeia a "prudência e a flexibilidade" (1), espaço e caminho adequados para solver a questão: é hora de (re) codificar-se o Direito Civil?
A esta indagação subjaz outra, mais fértil e inquietante, qual seja a de saber se é possível afirmar-se a existência de um sistema de direito privado, vale dizer, de um conjunto normativo sistematicamente compreensível e passível de apreensão em um corpus codificado. Respondendo afirmativamente à questão --- àquela expressa, e à que nela vem implícita ---, assinalou o Relator que a mesma prudência recomendatória do prosseguimento do trabalho legislativo indicava dever proceder-se "com espírito isento de dogmatismo, antes aberto a imprimir clareza, segurança e flexibilidade ao sistema em construção, e portanto adequado a recolher e regular mudanças e criações supervenientes" (2).
Já aí fixou Josaphat Marinho determinadas concepções --- "segurança e flexibilidade", ou "sistema em construção", ou ainda, a idéia da possibilidade de o sistema recolher e regular "mudanças e criações supervenientes" --- que parecem não estar sendo bem enfocadas por parte da comunidade jurídica na crítica promovida ao projeto do novo Código Civil. É talvez , por isto, oportuno retornar aqui ao tema das cláusulas gerais (3), sob a perspectiva da construção e reconstrução do Direito Privado na contemporaneidade, tendo em vista, notadamente, as necessárias interrelações entre o Código Civil, a Constituição Federal e as leis que, regulando matéria especial, compõem o que se convencionou chamar de microssistemas legislativos.
Desde logo, assento uma premissa que vale, paradoxalmente, como conclusão: a razão de visualizar o novo texto legislativo à luz das suas cláusulas gerais responde à questão de saber se o sistema de direito privado tem aptidão para recolher os casos que a experiência social contínua e inovadoramente propõe a uma adequada regulação, de modo a ensejar a formação de modelos jurídicos (4) inovadores, abertos e flexíveis. Em outras palavras, é preciso saber se no campo da regulação jurídica privada é necessário, para ocorrer o progresso do Direito, recorrer-se, sempre, à punctual intervenção legislativa ou se o próprio sistema legislado poderia, por si, proporcionar os meios de se alcançar a inovação, conferindo aos novos problemas soluções a priori assistemáticas, mas promovendo, paulatinamente, a sua sistematização.
A questão ora posta como premissa vale como conclusão porque, desde logo, afirmo que o Projeto do Código Civil possui uma tal aptidão, como procurarei demonstrar, já que a sua técnica legislativa privilegia as cláusulas gerais (5). Mas é este o ponto que, justamente, vem suscitando as maiores críticas ao Código, ora tido como perigosamente "falho" e "indefinido" ao aludir, por exemplo, à função social do contrato (6), ora como "omisso", por não ter detalhado temas polêmicos como a filiação advinda das técnicas de fertilização humana assistida ou por nada ter regrado em matéria de direito do consumidor (7), outras vezes como "ultrapassado" e, inclusive, "ignorante" da técnica de legislar mediante cláusulas gerais (8) como se a codificação, hoje, ou já não tivesse sentido, ou devesse ser feita ao molde daquela oitocentista, dominada pela pretensão de plenitude lógica e completude legislativa. Uma tal alternativa, contudo, enseja somente falsas questões, e falsas questões costumam suscitar falsas respostas.
No universo craquelé da Pós-Modernidade não tem sentido, nem função, o código total, totalizador e totalitário, aquele que, pela interligação sistemática de regras casuísticas, teve a pretensão de cobrir a plenitude dos atos possíveis e dos comportamentos devidos na esfera privada, prevendo soluções às variadas questões da vida civil em um mesmo e único corpus legislativo, harmônico e perfeito em sua abstrata arquitetura. Mas se falta sentido hoje a esse modelo de Código, isto não significa que nenhum modelo de código possa regular as relações jurídicas da vida privada. A questão adequada, portanto, é: porque delineiam as cláusulas gerais o modelo de Código apto aos nossos dias (v. I)? Tão logo respondida, devo comprovar a asserção de que o Projeto realiza este modelo, identificando as cláusulas gerais contidas em seu texto (v. II).
I. O modelo de Código na contemporaneidade (9)
O Código Civil, na contemporaneidade, não tem mais por paradigma a estrutura que, geometricamente desenhada como um modelo fechado pelos sábios iluministas, encontrou a mais completa tradução na codificação oitocentista. Hoje a sua inspiração, mesmo do ponto de vista da técnica legislativa, vem da Constituição, farta em modelos jurídicos abertos (10). Sua linguagem, à diferença do que ocorre com os códigos penais, não está cingida à rígida descrição de fattispecies cerradas, à técnica da casuística. Um Código não-totalitário tem janelas abertas para a mobilidade da vida, pontes que o ligam a outros corpos normativos --- mesmo os extra-jurídicos --- e avenidas, bem trilhadas, que o vinculam, dialeticamente, aos princípios e regras constitucionais.
As cláusulas gerais, mais do que um "caso" da teoria do direito --- pois revolucionam a tradicional teoria das fontes (11) --- constituem as janelas, pontes e avenidas dos modernos códigos civis. Isto porque conformam o meio legislativamente hábil para permitir o ingresso, no ordenamento jurídico codificado, de princípios valorativos, ainda inexpressos legislativamente, de standards, máximas de conduta, arquétipos exemplares de comportamento, de deveres de conduta não previstos legislativamente (e, por vezes, nos casos concretos, também não advindos da autonomia privada), de direitos e deveres configurados segundo os usos do tráfego jurídico, de diretivas econômicas, sociais e políticas, de normas, enfim, constantes de universos meta-jurídicos, viabilizando a sua sistematização e permanente ressistematização no ordenamento positivo.
A viabilidade das cláusulas gerais para permitir essa sistematização/ressistematização nasce dos seus traços característicos, base de seu conceito (a), da sua estrutura (b) e funções (c).
a) Características das cláusulas gerais
As cláusulas gerais constituem uma técnica legislativa (12) característica da segunda metade deste século (13), época na qual o modo de legislar casuisticamente, tão caro ao movimento codificatório do século passado --- que queria a lei "clara, uniforme e precisa", como na célebre dicção voltaireana --- foi radicalmente transformado, por forma a assumir a lei características de concreção e individualidade que, até então, eram peculiares aos negócios privados. Tem-se hoje não mais a lei como kanon abstrato e geral de certas ações, mas como resposta a específicos e determinados problemas da vida cotidiana (14).
Por esta razão, nossa época viu irromper na linguagem legislativa indicações de programas e de resultados desejáveis para o bem comum e a utilidade social (o que tem sido chamado de diretivas ou "normas-objetivo" (15)), permeando-a também terminologias científicas, econômicas e sociais que, estranhas ao modo tradicional de legislar, são, contudo, adequadas ao tratamento dos problemas da idade contemporânea (16). Mais ainda, os códigos civis mais recentes e certas leis especiais (17), têm privilegiado a inserção de certos tipos de normas que fogem ao padrão tradicional, não mais enucleando-se na definição, o mais perfeita possível, de certos pressupostos e na correlata indicação punctual e pormenorizada de suas conseqüências.
Pelo contrário, estes novos tipos de normas buscam a formulação da hipótese legal mediante o emprego de conceitos cujos termos têm significados intencionalmente vagos e abertos, os chamados "conceitos jurídicos indeterminados". Por vezes --- e aí encontraremos as cláusulas gerais propriamente ditas --- o seu enunciado, ao invés de traçar punctualmente a hipótese e as suas conseqüências, é desenhado como uma vaga moldura, permitindo, pela vagueza semântica que caracteriza os seus termos, a incorporação de princípios, diretrizes e máximas de conduta originalmente estrangeiros ao corpus codificado, do que resulta, mediante a atividade de concreção destes princípios, diretrizes e máximas de conduta, a constante formulação de novas normas.
Já por estas indicações percebe-se o quão multifacetário é o perfil das cláusulas gerais, razão pela qual, na busca do seu conceito, a doutrina nada mais obtém do que arrolar a diversidade de suas características. Por isto, desde logo rejeitada a pretensão de indicar um conceito perfeito e acabado, entendo pertinente, ao revés, assinalar os traços que lhe vêm sido relacionados no que diz com o seu papel enquanto técnica legislativa, pois é aí, na contraposição à técnica da casuística, que o seu perfil poderá ser traçado.
A contraposição entre ambas as técnicas legislativas foi divulgada na muito conhecida obra de Karl Engish, traduzida em português como Introdução ao Pensamento Jurídico (18). Este afirma (19) que a casuística constitui "a configuração da hipótese legal (enquanto somatório dos pressupostos que condicionam a estatuição) que circunscreve particulares grupos de casos na sua especificidade própria" (20). Esta noção é completada em outra obra na qual assenta: "A casuística não significa outra coisa senão a determinação por meio de uma concreção especificativa, isto é, regulação de uma matéria mediante a delimitação e determinação jurídica em seu caráter específico de um número amplo de casos bem descritos, evitando generalizações amplas como as que significam as cláusulas gerais" (21).
A casuística, também dita "técnica da regulamentação por fattispecie" é, portanto, a técnica utilizada nos textos normativos marcados pela especificação ou determinação dos elementos que compõem a fattispecie. Em outras palavras, nas normas formuladas casuisticamente percebe-se que o legislador fixou, do modo o mais possível completo, os critérios para aplicar uma certa qualificação aos fatos normados.
Ora, esta técnica legislativa provoca um efeito imediato no momento da aplicação/interpretação do texto legislativo. É que em face da tipificação de condutas que promove, pouca hesitação haverá do intérprete para determinar o seu sentido e alcance, podendo aplicar a norma mediante o processo mental conhecido como "subsunção". Há uma espécie de pré-figuração, pelo legislador, do comportamento marcante ou típico, pré-figuração a ser levada em conta pelo intérprete, uma vez que o elaborador da lei optou por descrever a factualidade (22).
Este caráter de determinação ou tipicidade que caracteriza a casuística vem sendo apontado como um dos principais, senão o principal fator de rigidez --- e por conseqüência, de envelhecimento --- dos Códigos civis. A razão está, conforme Natalino Irti, em que "o legislador cria um repertório de figuras e disciplinas típicas (...) a qual o juiz pouco ou nada pode aduzir para o disciplinamento do fato concreto" (23). Por conduzirem o intérprete a uma subsunção quase automática do fato sob o paradigma abstrato (24) as disposições definitórias, tais como as da casuística, têm um caráter de rigidez ou imutabilidade, o qual acompanha a pretensão de completude, isto é, a ambição de dar resposta legislativa a todos os problemas da realidade (25).
Em contrapartida, às cláusulas gerais é assinalada a vantagem da mobilidade, proporcionada pela intencional imprecisão (26) dos termos da fattispecie que contém, pelo que é afastado o risco do imobilismo porquanto é utilizado em grau mínimo o princípio da tipicidade (27).
Dotadas que são de grande abertura semântica, não pretendem as cláusulas gerais dar, previamente, resposta a todos os problemas da realidade, uma vez que essas respostas são progressivamente construídas pela jurisprudência. Na verdade, por nada regulamentarem de modo completo e exaustivo, atuam tecnicamente como metanormas, cujo objetivo é enviar o juiz para critérios aplicativos determináveis ou em outros espaços do sistema ou através de variáveis tipologias sociais, dos usos e costumes objetivamente vigorantes em determinada ambiência social. Em razão destas características esta técnica permite capturar, em uma mesma hipótese, uma ampla variedade de casos cujas características específicas serão formadas por via jurisprudencial, e não legal.
Considerada, pois, do ponto de vista da técnica legislativa, a cláusula geral constitui uma disposição normativa que utiliza, no seu enunciado, uma linguagem de tessitura intencionalmente "aberta", "fluida" ou "vaga", caracterizando-se pela ampla extensão do seu campo semântico. Esta disposição é dirigida ao juiz de modo a conferir-lhe um mandato (ou competência) para que, à vista dos casos concretos, crie, complemente ou desenvolva normas jurídicas, mediante o reenvio para elementos cuja concretização pode estar fora do sistema; estes elementos, contudo, fundamentarão a decisão, motivo pelo qual não só resta assegurado o controle racional da sentença como, reiterados no tempo fundamentos idênticos, será viabilizada, através do recorte da ratio decidendi, a ressistematização destes elementos, originariamente extra-sistemáticos, no interior do ordenamento jurídico (28).
Conquanto tenha a cláusula geral a vantagem de criar aberturas do direito legislado à dinamicidade da vida social tem, em contrapartida, a desvantagem de provocar --- até que consolidada a jurisprudência --- certa incerteza acerca da efetiva dimensão dos seus contornos. O problema da cláusula geral situa-se sempre no estabelecimento dos seus limites (29). É por isto evidente que nenhum código pode ser formulado apenas e tão somente com base em cláusulas gerais, por que, assim, o grau de certeza jurídica seria mínimo. Verifica-se, pois, com freqüência, a combinação entre os métodos de regulamentação casuística e por cláusulas gerais, técnicas cuja distinção por vezes inclusive resta extremamente relativizada, podendo ocorrer, numa mesma disposição, "graus" de casuísmo e de vagueza (30).
Assim acontece, por exemplo, no vigente Código Civil Português: como bem lembra José Carlos Moreira Alves, este encontra-se fixado numa posição "em que predomina o caráter científico, com o seu conceitualismo e o emprego de cláusulas gerais, sem abdicar, contudo, do casuísmo nas matérias que constituem o núcleo básico do direito civil, pela vantagem da certeza do direito" (31). Com efeito, em matéria de direito das obrigações --- considerando que aí reside o núcleo não só do direito civil, mas da inteira disciplina jurídica --- não se poderia colocar a alternativa "cláusulas gerais ou não", devendo-se pensar na concomitância entre estas e a casuística pela mesma razão apontada.
A flexibilidade proporcionada pelas cláusulas gerais decorre de sua peculiar estrutura. A esta devem-se as funções que podem desenvolver no ordenamento codificado. Cabe, pois, examiná-las.
b) A estrutura da cláusula geral
Multifacetárias e multifuncionais, as cláusulas gerais podem ser basicamente de três tipos, a saber: a) disposições de tipo restritivo, configurando cláusulas gerais que delimitam ou restringem, em certas situações, o âmbito de um conjunto de permissões singulares advindas de regra ou princípio jurídico. É o caso, paradigmático, da restrição operada pela cláusula geral da função social do contrato às regras, contratuais ou legais, que têm sua fonte no princípio da liberdade contratual; b) de tipo regulativo, configurando cláusulas que servem para regular, com base em um princípio, hipóteses de fato não casuisticamente previstas na lei, como ocorre com a regulação da responsabilidade civil por culpa; e, por fim, de tipo extensivo, caso em que servem para ampliar uma determinada regulação jurídica mediante a expressa possibilidade de serem introduzidos, na regulação em causa, princípios e regras próprios de outros textos normativos. É exemplo o art. 7º do Código do Consumidor e o parágrafo 2º do art. 5º da Constituição Federal, que reenviam o aplicador da lei a outros conjuntos normativos, tais como acordos e tratados internacionais e diversa legislação ordinária (32).
Seja qual for o tipo da cláusula geral, o que fundamentalmente a caracteriza é a sua peculiar estrutura normativa, isto é, o modo que conjuga a previsão ou hipótese normativa com as conseqüências jurídicas (efeitos, estatuição) que lhe são correlatas.
É bem verdade que o exame da estrutura das cláusulas gerais importa numa tomada de posição. Há os que, como Engish, entendem que as cláusulas gerais não possuem "qualquer estrutura própria" do ponto de vista metodológico (33), de maneira tal que estas não "existem" em sentido próprio, nada mais constituindo do que normas ou preceitos jurídicos cujos termos são dotados de elevado grau de "generalidade". E há os que, como Cláudio Luzzati, afirmam que as cláusulas gerais constituem normas (parcialmente) em branco, as quais são completadas através da referência às regras extrajurídicas.
Consoante a primeira perspectiva de análise, as normas contidas em cláusulas gerais não exigiriam processos de pensamento diferentes daqueles que são pedidos pelos conceitos indeterminados, os normativos e os discricionários (34). Podem, nessa medida, ser tidas como normas jurídicas completas, constituídas por uma previsão normativa e uma estatuição, com a particularidade de a previsão normativa, Tatbestand ou fattispecie, não descrever apenas um único caso, ou um único grupo de casos, mas possibilitar a tutela de uma vasta gama ("generalidade") de casos definidos mediante determinada categoria ,indicada através da referência a um padrão de conduta (v.g, "conforme aos usos do tráfego jurídico"), ou a um valor juridicamente aceito (v.g, boa-fé, bons costumes, função social do contrato).
Já o segundo vetor indica que as cláusulas gerais, do ponto de vista estrutural, constituem normas (parcialmente) em branco, as quais são completadas mediante a referência a regras extrajurídicas (35), de modo que a sua concretização exige que o juiz seja reenviado a modelos de comportamento e a pautas de valoração (36). É, portanto, o aplicador da lei, direcionado pela cláusula geral a formar normas de decisão, vinculadas à concretização de um valor, de uma diretiva ou de um padrão social, assim reconhecido como arquétipo exemplar da experiência social concreta.
Este direcionamento ocorre porque, diferentemente das normas formadas através da técnica da casuística --- cujo critério de valoração já vem indicado com relativa nitidez, sendo desenvolvido por via dos vários métodos de interpretação --- a cláusula geral introduz no âmbito normativo no qual se insere um critério ulterior de relevância jurídica, à vista do qual o juiz seleciona certos fatos ou comportamentos para confrontá-los com um determinado parâmetro e buscar, neste confronto, certas conseqüências jurídicas (37) que não estão predeterminadas. Daí uma distinção fundamental: as normas cujo grau de vagueza é mínimo, implicam que ao juiz seja dado tão somente o poder de estabelecer o significado do enunciado normativo; já no que respeita às normas formuladas através de cláusula geral, compete ao juiz um poder extraordinariamente mais amplo, pois não estará tão somente estabelecendo o significado do enunciado normativo, mas por igual criando direito, ao completar a fattispecie e ao determinar ou graduar as conseqüências (estatuição) que entenda correlatas à hipótese normativa indicada na cláusula geral (38).
Desta constatação deriva uma importante conclusão, a saber: a incompletude das normas insertas em cláusulas gerais significa que, não possuindo uma fattispecie autônoma, carecem ser progressivamente formadas pela jurisprudência, sob pena de restarem emudecidas e inúteis. Significa, também que o juiz tem o dever, e a responsabilidade, de formular, a cada caso, a estatuição, para o que deve percorrer o ciclo do reenvio, buscando em outras normas do sistema ou em valores e padrões extra-sistemáticos os elementos que possam preencher e especificar a moldura vagamente desenhada na cláusula geral (39).
Os elementos que preenchem o significado da cláusula geral não são, necessariamente, elementos jurídicos, pois advirão diretamente da esfera social, econômica ou moral. O seu recebimento pela cláusula geral torna-se compreensível se tivermos presente que esta constitui um modelo jurídico complexo (40) e de significação variável. É complexo porque, emoldurado em determinada fonte legislativa, tem a sua fattispecie completada por meio da concreção de elementos cuja origem imediata estará situada na fonte jurisprudencial , possuindo significação variável posto alterar-se, esta, "em virtude de alterações factuais ou axiológicas conaturais às relações regradas " (41).
Um valor moral ou um determinado padrão de comportamento assim reconhecido como vinculante no mundo extra-jurídico e retirado da prática da sociedade civil, se considerado por si só, não é, por evidente, norma juridicamente aplicável. Contudo, mediado pela fonte jurisprudencial, constituirá o conteúdo --- e, portanto, o critério de aplicabilidade --- dos modelos previstos nas cláusulas gerais (fonte legislativa). É que a experiência jurídica, entendida em sua globalidade, da prática cotidiana à legislação, à sentença e às elaborações científicas, traduz estes temas para a específica instância do jurídico, de modo a torná-los efetivos na ordem prática. E são justamente as cláusulas gerais, em razão de sua peculiar estrutura, a categoria formal que permite a sua constante e flexível tradução.
c) As funções das cláusulas gerais
A função que é, em primeiro lugar, atribuída às cláusulas gerais, é a de permitir, num sistema jurídico de direito escrito e fundado na separação das funções estatais, a criação de normas jurídicas com alcance geral pelo juiz. O alcance para além do caso concreto ocorre porque, pela reiteração dos casos e pela reafirmação, no tempo, da ratio decidendi dos julgados, se especificará não só o sentido da cláusula geral mas a exata dimensão da sua normatividade. Nesta perspectiva o juiz é, efetivamente, a boca da lei --- não porque reproduza, como um ventríloquo, a fala do legislador, como gostaria a Escola da Exegese --- mas porque atribui a sua voz à dicção legislativa tornando-a, enfim e então, audível em todo o seu múltiplo e variável alcance.
A voz do juiz não é, todavia, arbitrária, mas vinculada. Como já se viu, as cláusulas gerais promovem o reenvio do intérprete/aplicador do direito a certas pautas de valoração do caso concreto. Estas estão, ou já indicadas em outras disposições normativas integrantes do sistema (caso tradicional de reenvio (42)), ou são objetivamente vigentes no ambiente social em que o juiz opera (caso de direcionamento). A distinção deriva da circunstância de, em paralelo ao primeiro e tradicional papel, estar sendo hoje em dia sublinhado o fato de as cláusulas gerais também configurarem normas de diretiva, assim concebidas aquelas que não se exaurem na indicação de um fim a perseguir, indicando certa medida de comportamento que o juiz deve concretizar em forma generalizante, isto é, com a função de uma tipologia social (43). Aí está posta, pois, a segunda grande função das cláusulas gerais, que é a de permitir a mobilidade externa do sistema.
Conquanto tenham estas cláusulas função primeiramente individualizadora --- conduzindo ao direito do caso --- têm , secundariamente, função generalizadora, permitindo a formação de instituições "para responder aos novos fatos, exercendo um controle corretivo do Direito estrito" (44). Assim, exemplificativamente, da cláusula geral da boa-fé são gerados os institutos da supressio, da surrectio, e a própria doutrina da responsabilidade pré-negocial, em seu perfil atual (45).
Atuam, ainda --- e esta é relevantíssima função, nem sempre bem percebida --- como elemento de conexão ou "lei de referência" para oportunizar, ao juiz, a fundamentação da sua decisão de forma relacionada com os casos precedentes. Figure-se por exemplo, num sistema no qual inexista cláusula geral em matéria de direito dos contratos, o julgamento de uma variedade de casos em que os magistrados decidam ter havido inadimplemento contratual por parte de um ou de ambos contratantes, partes no litígio, pela infringência de certos deveres de conduta, positivos ou negativos, não previstos nem na lei nem no contrato. Uma tal decisão pode vir fundada, pelo juiz "A" numa referência à equidade; pelo juiz "B" , ao princípio que veda o abuso do direito; pode outro juiz aludir, genericamente, aos princípios gerais do direito, e ainda outro pode buscar, para fundar o decisum, mesmo um princípio pré-positivo, ainda inexpresso legislativamente. Um último, por fim, imporá os mesmos deveres com base numa interpretação integradora da vontade contratual.
Em todas estas situações a sentença poderá estar adequadamente fundamentada. Contudo, ninguém discutirá que a dispersão dos fundamentos utilizados dificultará sobremaneira a pesquisa dos precedentes, pois será quase impossível visualizar a identidade da ratio decidendi existente em todos os exemplos acima figurados, "a menos que seja facultado (ao juiz do caso atual) consultar toda a matéria de que se serviu o juiz (dos casos precedentes) na sua integralidade" (46), o que se afigura, na prática, fantasioso. Mas é preciso convir que a diversidade dos fundamentos elencados não só problematiza a pesquisa jurisprudencial, como, por igual, o progresso do Direito --- pela dificuldade na reiteração da hipótese nova ---, impedindo a sistematização da solução inovadora. Por isto à cláusula geral cabe o importantíssimo papel de atuar como o ponto de referência entre os diversos casos levados à apreciação judicial, permitindo a formação de catálogo de precedentes.
Têm ainda as cláusulas gerais a função de permitir à doutrina operar a integração intra-sistemática entre as disposições contidas nas várias partes do Código Civil --- a "mobilidade interna", a qual consiste, nas palavras de Couto e Silva, "na aplicação de outras disposições legais para a solução de certos casos, percorrendo às vezes a jurisprudência um caminho que vai da aplicação de um dispositivo legal para outro tendo em vista um mesmo fato" (47). Por fim, viabilizam a integração inter-sistemática, facilitando a migração de conceitos e valores entre o Código, a Constituição (48) e as leis especiais. É que, em razão da potencial variabilidade do seu significado, estas permitem o permanente e dialético fluir de princípios e conceitos entre esses corpos normativos, evitando não só a danosa construção de paredes internas no sistema, considerado em sua globalidade, quanto a necessidade de a eficácia da Constituição no Direito Privado depender da decisão do legislador do dia (49). Com efeito, em alargado campo de matérias --- notadamente os ligados à tutela dos direitos da personalidade e à funcionalização de certos direitos subjetivos ---, a concreção das cláusulas gerais insertas no Código Civil com base na jurisprudência constitucional acerca dos direitos fundamentais evita os malefícios da inflação legislativa, de modo que, ao surgimento de cada problema novo, não deva, necessariamente, corresponder nova emissão legislativa.
Tenho ser esta, hoje, a mais relevante função das cláusulas gerais, pois viabilizará a compreensão do conceito contemporâneo de sistema, o que se apresenta relativamente aberto (viabilizando a introdução de novas hipóteses, sem contudo, dispersar-se na cacofonia assistemática), móvel (marcado pelo dinamismo entre as hipóteses que contempla nas suas várias partes) e estruturado em graus escalonados de privatismo e publicismo (50). Como assegura Clóvis do Couto e Silva, o Direito exige o assentamento de um núcleo valorativo e de uma técnica relativamente unitária ou comum (51) entre os vários conjuntos normativos que o compõem, pena de incompreensibilidade absoluta e, inclusive, inaplicabilidade, no Direito Privado, dos valores e diretivas constitucionais. As cláusulas gerais permitem facilitar esta migração, viabilizando a inflexão ponderada, no ordenamento privado, dos princípios da Constituição, sabendo-se hoje que as esferas do Direito público e do Direito privado não estão seccionadas por intransponível muro divisório, antes consistindo, como percebeu Miguel Reale, "duas perspectivas ordenadoras da experiência jurídica (...) distintos, mas substancialmente complementares e até mesmo dinamicamente reversíveis" (52), por forma a ensejar a dialética da complementaridade (53), e não mais a dialética da polaridade (54).
Nesta perspectiva, se a crítica hoje operada à codificação reside na inadequação dos códigos, por sua rigidez, para apreender as velocíssimas e surpreendentes mudanças da tipologia social, nada mais adequado que o Código Civil, na contemporaneidade, contemple este modo de legislar. Assim o faz o Projeto do Código Civil ora em tramitação na Câmara dos Deputados.