Artigo Destaque dos editores

A teoria da imprevisão e a revisão contratual no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor

Exibindo página 1 de 5
30/05/2004 às 00:00
Leia nesta página:

O tema é de grande relevância, principalmente face ao advento do novo Código Civil, que inseriu na legislação civil brasileira o instituto da imprevisão. Apesar de não ser nenhuma novidade jurídica, a imprevisão ainda é alvo de críticas.

Sumário: Introdução; 1. Noções básicas de contrato, 1.1. Conceito, 1.2. História do contrato, 1.2.1. A evolução do contrato, 1.3. Formação do contrato, 1.4. A teoria da vontade, 1.4.1. A teoria do contrato (stricto sensu), 1.4.2. A teoria da declaração, 1.5. Princípios do direito contratual, 1.5.1. A autonomia da verdade, 1.5.2. O dirigismo contratual, 1.5.3. A obrigatoriedade, 1.5.4. A boa-fé; 2. A teoria da imprevisão, 2.1. Conceito da teoria da imprevisão, 2.2. Origem e evolução da teoria da imprevisão, 2.3. Harmonia entre os princípios "Pacta sunt servanda" e "Rebus sic stantibus", 2.4. O caso fortuito/ força maior e a imprevisão, 2.5. Natureza jurídica da teoria da imprevisão, 2.6. Campo de aplicação da teoria da imprevisão, 2.6.1. Os contratos unilaterais, 2.6.2. Os contratos bilaterais, 2.6.3. Os contratos aleatórios; 3. A teoria da imprevisão no Direito Brasileiro, 3.1. A inserção da teoria da imprevisão no Direito brasileiro, 3.2. A teoria da imprevisão e a revisão contratual no Código Civil brasileiro, 3.2.1. Análise do artigo 478, 3.2.2. Análise do artigo 479, 3.2.3. Análise do artigo 480; 4. A revisão contratual no Código de Defesa do Consumidor, 4.1. A teoria da excessiva onerosidade e a revisão contratual no Código de Defesa do Consumidor; 5. Conclusão; Referências Bibliográficas; Notas.


INTRODUÇÃO

O contrato, desde seu surgimento, tem sido utilizado como meio eficaz de circulação de riquezas. Porém, não raro, está sujeito às situações e aos acontecimentos que o envolvem desde sua formação até a execução da obrigação a que se propôs. Assim, objetivando um estudo aprofundado desses incidentes contratuais, este trabalho procura analisar de forma crítica a importância e as peculiaridades da Teoria da Imprevisão.

O tema é de grande relevância, principalmente face ao advento da lei nº 10.406 de 10 janeiro de 2002, que inseriu na legislação civil brasileira o instituto da imprevisão. Apesar de não ser nenhuma novidade jurídica na história do Direito, a imprevisão ainda é alvo de críticas e incompreensões, sendo até repudiada pelo absolutismo do pacta sunt servanda.

Contudo, busca-se, de forma clara e precisa, desenvolver o tema, recorrendo, nas diversas construções doutrinárias, nas legislações vigentes e principalmente na história do Direito, o surgimento da Teoria da Imprevisão e suas implicações jurídicas. Procura-se também, demonstrar as conseqüências jurídicas dessa teoria na esfera contratual.

Para um melhor estudo dessa temática foram construídos vários paralelos entre a Teoria da Imprevisão e a revisão contratual, o rebus sic stantibus e o princípio do pact sunt servanda, e também entre a revisão contratual do Código Civil e a prevista pelo Código de Defesa do Consumidor.

Julga-se ser oportuno o desenvolvimento deste trabalho, haja vista, as atuais discussões em torno da teoria da imprevisão. A teoria da imprevisão e a revisão contratual no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor vêm sanar as concepções errôneas que ainda perduram, trazendo ao leitor mais uma fonte de conhecimento sobre a imprevisibilidade e suas implicações na esfera contratual.


1. NOÇÕES BÁSICAS DE CONTRATO

1.1. CONCEITO

Etimologicamente o contrato vem do latim "contractu", significando "trato com". Representa a combinação de interesses de pessoas sobre determinada coisa.

Juridicamente, tem-se o contrato como uma espécie de negócio jurídico, pois o mesmo se forma pelo concurso de vontades em torno de um "objeto".1 Para se entender melhor essa classificação, deve-se buscar na Teoria do Negócio Jurídico a sua fundamentação.

A teoria do negócio jurídico é de origem alemã, presente no BGB, código alemão de 1896. Tendo como pilares ideológicos liberdade e igualdade jurídica presentes no Estado Liberal francês, essa teoria foi desenvolvida pelos estudiosos da escola pandectista alemã, embasada na rigidez de um sistema fechado, constituído de normas jurídicas e na crença da razão do legislador. O Direito naquela época era equiparado à lei.

Assim, face à influência de um Estado Liberal, a Escola das Pandectas foi responsável pela criação de uma categoria jurídica mais abstrata que o contrato, denominada negócio jurídico. O conceito de negócio jurídico partia de um sistema lógico, representado por uma pirâmide conceitual onde o negocio jurídico está acima do contrato e abaixo do ato jurídico lato sensu. Durante o século XIX, o negocio jurídico foi tido como uma declaração de vontade destinada a produzir efeitos jurídicos e mais tarde veio a gerar o dogma da autonomia da vontade segundo a concepção clássica.2

Foi nessa época que se encontrou o primeiro ensaio da concepção tradicional de contrato, através de Savigny. Segundo ele, o contrato é a união de mais de um individuo para uma declaração de vontade em consenso, através da qual se define a relação jurídica entre estes. É por meio dessa simples definição que vamos encontrar os princípios básicos formadores do contrato, que vigoram até nossos dias.

Dessa forma, partindo da classificação do contrato como uma espécie de negócio jurídico e ainda baseando-se na definição do grande sistematizador do século XIX, faz-se necessário à formação do contrato uma bilateralidade ou plurilateralidade de partes, onde se convergem as declarações livres de vontade, aflorando deveres, obrigações e ações para ambas as partes. Havendo, portanto, dever e contra-dever, obrigação e contra-obrigação, a que correspondem direito e contra-direito, pretensão e contrapretensão na relação entre as partes.3

Disso pode-se concluir que o contrato é todo acordo de vontades destinado a constituir uma relação jurídica de natureza patrimonial e eficácia obrigacional. Constitui-se de acordo de vontades, pois há necessidade de convergência das pretensões sobre um mesmo objeto; é uma relação jurídica porque envolve partes distintas e suas manifestações têm repercussão no Direito. É de natureza patrimonial, pois o objeto para onde convergem as pretensões possui um valor pecuniário, ou seja, mensurável economicamente e, por fim, de eficácia obrigacional porque envolve direitos e deveres de ambos os pólos da relação, podendo o Estado obrigar a parte inadimplente ao cumprimento do acordo de vontade pactuado.

Orlando Gomes4 acrescenta que:

[...] o contrato é uma categoria jurídica que está a se alargar no próprio campo do Direito Civil; além de ser fonte de obrigações, na sua função tradicional atribuída no Direito Romano, opera, em alguns sistemas jurídicos, na esfera das relações reais, constituindo e transferindo direitos reais. Admite-se, demais disso, que o contrato não é apenas constitutivo de obrigações, mas também modificativo e extintivo.

Corroborando as palavras de Gomes, segue Caio Mário5, afirmando que:

[...] o fundamento ético do contrato é a vontade humana, desde que em conformidade com a ordem jurídica. Seu habitat é a ordem legal. Seu efeito é a criação de direitos e obrigações.

Diante do exposto, chega-se a definição de contrato como um "ato bilateral, pois depende de no mínimo duas declarações de vontade, visando criar, modificar ou extinguir obrigações".7

1.2. HISTÓRIA DO CONTRATO

Buscando na história a formação e a definição de Contrato, vamos encontrar no mundo românico sua consolidação em meio a um clima de forte religiosidade e formalismo. Inicialmente o contrato objetivava a regulamentação da vontade humana apenas como formação de obrigações. Mais tarde foi-se firmando no Direito Canônico a necessidade de orientar essa manifestação de vontade como instrumento de aproximação de pessoas, de circulação de bens e riquezas, passando a exercer uma função na sociedade.

A teoria da vontade, ato propulsor da formação do contrato, teve como defensoras duas correntes: a canonista e a jusnaturalista. Os Canonistas davam mais ênfase ao consenso e à fé jurada. Segundo eles, preconizando o consentimento, a declaração de vontade era fonte geradora da obrigação, possibilitando a formulação dos princípios da autonomia da vontade e do consensualismo. Assim, para a concretização de uma obrigação, bastava a exteriorização do ato de vontade, no entanto a declaração de vontade e o dever de veracidade (fé jurada), obrigaram à criação de normas jurídicas que garantissem o cumprimento de tais obrigações pactuadas. Esta corrente encontrou grande aceitação entre os enciclopedistas, filósofos e juristas do século XVIII, sendo responsável pela ênfase dada à obrigatoriedade ao cumprimento das convenções livremente pactuadas.

Com os jusnaturalistas o contratualismo atingiu seu apogeu. Partindo de uma formação racionalista e individualista, essa escola contribuiu historicamente para o conceito de contrato ao defender, fundamentada no racionalismo, que a obrigação se formaria com a livre expressão da vontade entre os contratantes. Foi através dessa teoria do direito natural que se encontrou a base teórica formadora dos dogmas da concepção clássica de contrato, como a autonomia da vontade e da liberdade contratual. De conformidade com os Canonistas, esta corrente também preconizava a declaração de vontade e, conseqüentemente, o consentimento como princípio para se obrigarem as partes nas relações pactuadas. O contrato, a partir desse momento, deixou de ser visto apenas como um instrumento de criação de obrigações, passando a modificá-las e também extingui-las, transpondo o campo dos direitos pessoais para atingir o dos direitos reais.

Segundo historiadores, o Direito Romano pregava apenas que o contrato se tratava de um acordo de vontades a respeito de um mesmo ponto, não chegando a desenvolver uma declaração doutrinária específica dos contratos. Isso tem justificativa na própria origem desse Direito — sendo de natureza consuetudinária e jurisprudencial, os costumes e as decisões dos pontífices é que ditavam as normas jurídicas daquela sociedade. Desse modo, na época feudal, período compreendido entre os séculos X e XIII, o simbolismo e o formalismo desempenharam papel importante, uma vez que os contratantes firmavam o contrato bebendo nas tavernas e quando as partes davam as mãos o contrato estava selado.

Prosseguindo nessa linha histórica, descobre-se que foi a partir do Código Napoleônico que do contrato teve sua maior expressão. Em seu art.1.134, erigiu à condição de lei a manifestação da vontade contratual. O Código Civil Francês representou, como se sabe, a maior obra legislativa do governo de Napoleão Bonaparte8 , nasceu da crença jusnaturalista na lei; no entanto, sua estrutura interna e sua imagem do direito foram, sobretudo, promovidas pela revolução e pelo brilho da grandeza napoleônica.

Uma das características deste código foi o cultivo do liberalismo e da igualdade das partes contratantes, que elegeram a propriedade privada e o contrato como os principais institutos desse ordenamento jurídico. Assim:

[...] o iluminismo, apesar da sua função filosófica, foi uma ruptura moral, ou, em última análise, religiosa, no sentido de uma nova atitude perante a vida, da qual surgiu uma modificação da opinião pública e de grandes reformas da vida política.9

O Código de Napoleão de 1804 foi o primeiro grande código da idade moderna, procurou harmonizar o Direito Romano com o direito público costumeiro e, em essência, rendia homenagem à doutrina dos direitos do homem, colocava o indivíduo frente ao Estado em posição superior e sancionava a autonomia do direito privado em relação ao direito público. Seu espírito reflete a mentalidade individualista da época. Foi considerado o Código da Burguesia por ter atendido aos interesses e às aspirações dessa classe, porém, não se redigiu no propósito de ser lei de privilégios ao contrário, a intenção foi elaborar um código impessoal, expressão eterna das coisas, para ser aplicado sem distinção de classe e sem limite de tempo.

Fundou-se nos princípios individualistas da liberdade contratual, na propriedade como direito absoluto e na responsabilidade civil fundada na culpa provada pelo lesado. Tal foi sua importância que influenciou na codificação civil de vários países, inclusive na elaboração e, posteriormente, na interpretação do Código Civil Brasileiro de 191610 .

1.2.1. A evolução do contrato

O contrato, assim como o Direito, é um fenômeno histórico-social, sujeito a variações e a evoluções no tempo e no espaço. Desse modo, o contrato não é fruto apenas de um momento histórico, pelo contrário, ele vem sofrendo mutações ao longo dos tempos e se adequando a uma nova realidade social.

Fazendo uma análise histórica, o contrato apresentou seu ponto culminante e aglutinador com a evolução teórica do direito, após a idade média e a evolução social e política ocorrida nos séculos XVIII e XIX, com a Revolução Francesa, com o nacionalismo crescente e com o liberalismo econômico. O século XIX foi o auge do liberalismo, que surgiu como resposta ao absolutismo estatal da Idade Media e as limitações impostas pela igreja católica.

A liberdade naquela época foi posta como uma espécie de remédio para todos os males, cabendo ao direito dar forma a esse espírito individualista, criando, assim, a concepção tradicional de contrato, fundada na igualdade, na liberdade individual e no dogma da autonomia da vontade. As partes, na relação contratual, tinham posições de igualdade perante o direito, ou seja, podiam discutir individual e livremente as cláusulas do acordo de vontades. Tal preceito surgiu como espinha dorsal do sistema capitalista, já que o contrato se mostrou um instrumento jurídico eficaz e capaz de proporcionar a circulação de riquezas na sociedade.

No entanto, a suposição de que a igualdade formal dos indivíduos dada pelos tradicionalistas asseguraria o equilíbrio entre os contratantes, fosse qual fosse a sua condição, foi descartada na vida real.

Frente às grandes mudanças no mundo urbano e industrial, proporcionadas pelo sistema capitalista do século XIX, surgem as primeiras contradições entre os ideais de igualdade e de liberdade e a realidade social da época. O desenvolvimento industrial — a produção em larga escala, a concentração de renda e o crescente empobrecimento da maioria da população, a mão-de-obra barata, o desemprego, bem como os monopólios e a formação dos grandes conglomerados econômicos, principalmente a partir do mundo pós-guerra — veio praticamente anular aquelas ideais de igualdade e de liberdade. O anseio da população mais pobre, que sofria de fato com os problemas gerados por essas contradições, começou a reivindicar do Estado uma postura mais ativa, visando assegurar um equilíbrio nas relações interpessoais e à solução dos problemas sociais.

Em resposta a essa problemática social, surgem as primeiras Constituições sociais. Um exemplo é a Constituição Francesa de 1848, que passa a demonstrar novas pretensões políticas sob a forma de direitos econômicos e sociais merecedores da proteção estatal. A Constituição de 1848, assim como o código civil francês, influenciou outras constituições, por exemplo, a alemã, a mexicana, entre outras, que viram na intervenção estatal a forma de combate às desigualdades sociais e às idéias comunistas que se afloravam.

No Brasil, com as Constituições de 1934, 1946, 1967, 1969 e principalmente a de 1988 fizeram referências a essa nova ordem econômica e social. A Constituição de 1988, constituição social, criou princípios básicos da legislação trabalhista (art.7º), da função social da propriedade, dos direitos sociais, da ordem econômica. A legislação extravagante abarcou tais preceitos constitucionais, por exemplo: o Código Civil de 2002 deu mais ênfase ao princípio da boa-fé, da probidade e da função social do contrato (art.421 e 422); o Código de Defesa do Consumidor (lei nº8.078/1990), veio estabelecer normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos art.5º, inciso XXXII e art.170, inciso V, da Constituição Federal; e as legislações trabalhistas que obedecem às diretrizes do art.7º desse mesmo instituto.

Por fim, a necessidade de maiores recursos para o Estado atender às suas novas responsabilidades: a defesa da moeda, a defesa nacional no plano econômico, a proteção dos elementos mais fracos e a necessidade de impedir que os interesses privados se sobreponham aos interesses públicos, fez surgir o dirigismo estatal. Essa nova ordem, teve grande repercução no plano contratual. A interferência estatal na vida econômica implicou a limitação legal da liberdade de contratar e o encolhimento da autonomia da vontade, passando a ser descartada e censurada a liberdade de determinar o conteúdo na relação contratual. Tais mudanças repercutiram no regime legal e na interpretação do contrato.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Quanto ao regime legal, foram dadas as devidas proteções às categorias de pessoas social e economicamente mais fracas, a fim de compensar juridicamente a debilidade da posição contratual de seus componentes e eliminar o desequilíbrio. No que se refere à interpretação das cláusulas contratuais, essa também sofreu limitações, por exemplo, os arts. 112, 113 e 114 do CC (Lei nº 10.406/2002) e o art. 47 do CDC (Lei n° 8.048/1990), preceituam que os contratos serão interpretados estritamente, observando a boa-fé, a intenção da vontade declarada, os costumes e, nas relações de consumo, a forma mais favorável ao consumidor.

A intervenção do Estado tornou-se, na realidade, um meio de assegurar a manutenção do regime democrático, fazendo limitações aos contratos de adesão e aos contratos de massa, surgindo em contrapartida os contratos dirigidos e os contratos forçados sobre a tutela estatal.

1.3. FORMAÇÃO DO CONTRATO

Tratando-se de contrato, vê-se que é uma espécie de negócio jurídico e por conseqüência um ato jurídico, por isso devemos analisar os requisitos necessários à sua formação.

O primeiro requisito que se pode citar é a bilateralidade ou plurilateralidade de partes. Aqui, faz-se necessária a distinção entre a bilateralidade de partes e os efeitos produzidos quanto a essas. Segundo Orlando Gomes11:

Parte não se confunde com pessoa. Uma só pessoa pode representar as duas partes, como no autocontrato ou contrato consigo mesmo, e uma só parte, pode compor-se de várias pessoas, como na locação de um bem por seus condôminos.

Os contratos, como condição de existência, possuem sempre uma bilateralidade de partes. Já quanto aos efeitos eles podem ser unilaterais ou bilaterais (plurilaterais). Os contratos unilaterais são assim chamados, porque apenas um dos lados adquire crédito, prestação ou ação,(por exemplo o mútuo e a promessa de doação) ou porque o crédito, a prestação ou a ação de um não equivale ao crédito, a prestação ou a ação do outro (exemplo o mandato, depósito gratuito e o comodato). "A unilateralidade do contrato não significa que só possa existir uma obrigação, mas que somente uma das partes é sujeito passivo de obrigação".12

Já os contratos bilaterais são aqueles que produzem efeitos para ambas as partes. Há uma equivalência de contraprestação, criando obrigações para os figurantes dos dois pólos do negócio jurídico, por exemplo, a compra e venda (o comprador deve pagar o preço e o vendedor deve entregar a coisa). Resta mencionar que, em regra, os efeitos produzidos pelos negócios jurídicos bilaterais ou plurilaterais são apenas entre os figurantes.

Outro requisito é as declarações convergentes de vontade emitida pelas partes, mecanismo de formação do contrato. A esse respeito, acrescenta Orlando Gomes13:

[...] para a perfeição do contrato, requer-se: em primeiro lugar, a existência de duas declarações, cada uma das quais, individualmente considerada, há de ser valida e eficaz; em segundo lugar, uma coincidência de fundo entre as duas declarações.

Assim, pode-se dizer que é através do acordo de vontades entre as partes contratantes, seja ele tácito ou expresso, que se manifesta de um lado a oferta e de outro a aceitação. Esse acordo de vontade há de ser sobre relação jurídica de fundo pecuniário, pois o efeito pretendido pelas partes é a criação, extinção ou modificação de um vínculo obrigacional de conteúdo patrimonial. Quanto à proposta e à aceitação, essas são elementos indispensáveis à formação do contrato, entre elas gira toda a controvérsia sobre a força obrigatória do contrato, sobre o momento exato em que ambas se fundem para produzir a relação contratual e sobre o lugar em que se reputará celebrado o negócio jurídico.

Visto que o contrato pressupõe declarações convergentes sobre um mesmo objeto, cada parte terá sua denominação própria, não havendo contrato pela simples integração de declarações que se completam, uma há de anteceder necessariamente a outra. A declaração de quem tem iniciativa do contrato chama-se proposta ou oferta. Do outro lado da relação, ocorre a aceitação. Quem faz a proposta denomina-se proponente ou policitante e quem a aceita, oblato ou aceitante.

A convergência das declarações de vontades é essencial à formação do contrato. Chama-se doutrinariamente de consenso a essa convergência ou coincidência. Havendo dissenso não nasce o contrato ou mesmo em determinados casos será ineficaz.

Por fim, todo ato de convergência de vontade entre as partes pressupõe uma causa e uma motivação, que se caracterizam como objeto do contrato. No instituto do renomado civilista Caio Mário,14 para a caracterização da causa:

[...] é preciso expurgá-la do que sejam meros motivos, e isolar o que constitui a razão jurídica do fenômeno, para abandonar aqueles e atentar nesta. Na causa há, pois, um fim econômico ou social reconhecido e garantido pelo direito, uma finalidade objetiva e determinante do negócio que o agente busca além da realização do ato em si mesmo. Como este fim se vincula ao elemento psíquico motivador da declaração de vontade, pode ser caracterizado, sob outro aspecto, como a intenção dirigida no sentido de realizar a conseqüência jurídica do negócio. Mas sempre haverá distinguir da causa a motivação, pois que esta, mesmo ilícita, não chega a afetar o ato, desde que àquela não se possa irrogar a mesma falha.

Assim, o objeto do contrato não é a prestação e nem mesmo o objeto desta. A prestação, que se resume num dar, fazer e em não fazer, é objeto da obrigação, podendo ser a entrega de uma coisa, como o exercício ou não de uma atividade, ou mesmo a transmissão de um direito. O objeto do contrato é um conjunto dos atos, que as partes se comprometeram a praticar, singularmente considerados, não como fim do consenso ou do intercâmbio entre as prestações ou entre as partes, pois este é a causa.

Desse modo, para Washington de Barros15, o objeto do contrato:

[...] constitui a operação que as partes visaram realizar, o interesse que o ato jurídico tem por fim regular, ele é idêntico em todas as estipulações da mesma espécie e mais amplo que o objeto da obrigação.

Além desses requisitos de formação existem outros, pois o contrato é uma categoria jurídica que se alarga no próprio campo do Direito Civil e, dessa forma, por ter seu habitat na ordem legal, obedecerá a certos requisitos impostos por esta, para que tenha validade e surta efeitos no mundo jurídico. Esses requisitos ou elementos destinados a dar validade ao negócio jurídico estão previstos no Código Civil em seu art. 104, dividindo-se em três pressupostos: agente capaz; objeto lícito, possível, determinado ou determinável; forma prescrita e não defesa em lei.

Logo, as partes contratantes devem possuir capacidade genérica para praticar os atos da vida civil, uma vez que todo negócio jurídico pressupõe um agente capaz. Quanto ao objeto do contrato, esse deve ser lícito, ou seja, idôneo e possível, pois a impossibilidade frustra o negócio. Havendo impossibilidade essa pode ser física ou material, ao contrariar a lei da natureza ou ultrapassar as forças humanas, como também legal ou jurídica, sempre que a estipulação se refira a objeto proibido em lei. O objeto também deve ser determinado ou determinável, ou seja, individualizado conhecido ou mesmo possível de ser conhecido ao tempo da realização da prestação.

Ainda como relação ao objeto dos contratos, deve versar sempre sobre interesse economicamente apreciável, pois a impossibilidade de se atribuir um quantum, deixa de interessar ao mundo jurídico, faltando-lhe o necessário suporte para a propositura de uma ação judicial e conseqüentemente uma posterior condenação.

Outro elemento a ser observado na realização do contrato é a forma. Sem ela, o negocio jurídico não passará de uma ação humana estranha à vida jurídica. Em princípio, o negócio jurídico não está ligado à forma. A manifestação de vontade se exterioriza verbalmente ou por escrito, segundo o que querem as pessoas. Só excepcionalmente é que a ordem jurídica estabelece determinada forma, à qual o agente fica sujeito e reflete na sua validade. O próprio Código Civil preceitua tal fato no art. 107. ao ditar que "a validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir". Assim, o agente deverá atender à forma que a lei prescrever ou evitar aquela que é defesa, sob pena de nulidade do negocio jurídico.

1.4. A TEORIA DA VONTADE

A Teoria da Vontade de certa forma esta intimamente ligada à concepção do negócio jurídico. Assim, ao falar de Teoria da Vontade, deve-se levar em conta dois aspectos: a Teoria da Vontade (propriamente dita) e a Teoria da Declaração.

Essas duas teorias são formulações doutrinárias, não sendo adotadas de maneira estrita por nenhuma codificação. A teoria da vontade caracteriza-se por ser mais subjetiva, enfatizando a vontade psíquica do declarante, enquanto a teoria da declaração possui cunho objetivo, voltado para o conteúdo declarado em si, independentemente do foro íntimo do emitente da declaração.16

As formações da teoria da vontade (Willenstheorie) e da teoria da declaração (Erklärungstheorie) são anteriores à formulação do BGB, surgindo quando a teoria da declaração já se havia afirmado na Alemanha em posição de quase igualdade com a teoria da vontade e posteriores ao Código de Napoleão (Fabiana Rodrigues, 2002, p. 41).

1.4.1. A teoria da vontade (stricto sensu)

Nas palavras do civilista Orlando Gomes17 :

[...] constituem-se, pois os negócios jurídicos pela conjunção de dois elementos: a vontade interna e a declaração de vontade, que devem ser, portanto, coincidentes. A vontade interna não é apenas o suporte da declaração, mas a força criadora dos efeitos do negócio jurídico, não passando esta de meio pelo qual chega aquela ao conhecimento de outros. Inexistente juridicamente é, por conseguinte, o ato a que falta a vontade interna, e anulável aquele em que está viciada. Havendo divergência entre a vontade e a declaração, decide-se, como diz Brinz, em favor da vontade contra a declaração. Na interpretação dos negócios jurídicos deve-se atender à intenção do declarante, à sua vontade real, visto que a declaração não passa de simples processo de sua revelação."

O motivo dessa concepção está na vontade interior, convergente e harmônica com os fins psíquicos do declarante. Diz respeito à intenção ou faculdade livre do declarante de praticar ou deixar de praticar algum ato. A vontade aqui é um ato mental (consciência). E, enquanto reserva mental, não pode ser disciplinada pelo Direito. Tem-se a vontade (reserva mental) baseada na liberdade de pensamento e de consciência,18só vindo a ser tutelada pelo Direito quando se projetar para o mundo exterior, através da declaração de vontade.

Segundo Pontes de Miranda19, a consciência (vontade) é essencial à declaração da vontade e à manifestação de vontade20, faltando aquela, exclui-se a existência destas para compor o suporte fático do negócio jurídico, não, então, havendo contrato. "Quando não há vontade, ou quando não há consciência da exteriorização da vontade, não há declaração de vontade, ou ato volitivo adeclarativo (tácito) que possa ser suporte fático de negócio jurídico".

Assim, o elemento impulsionador da criação do negócio jurídico é a vontade. Exteriorizada, essa vontade passa a fazer parte do mundo jurídico e fica sujeita às conseqüências ditadas pela ordem legal, se isso não ocorrer, não há formação do negócio jurídico. Entretanto, havendo falta de harmonia entre a vontade e a declaração, seja por espontaneidade seja sob influência de outrem, o negócio nasce viciado (vício de consentimento), defeituoso e não encontra respaldo legal.

Nos vícios de consentimento tem-se a vontade exteriorizada em divergência com a consciência do declarante, que nasce sob grande influência de elementos externos. O próprio Código Civil prioriza uma harmonia entre a vontade e sua exteriorização ao determinar no art.112 que "nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem". Outro exemplo é o art.13821do C.C., nesse caso há uma discordância entre a vontade que de fato se pretendia e a vontade diversa que teria se exteriorizado por influência de motivos estranhos. A declaração de vontade teria sido outra se o declarante conhecesse os vícios.

Por fim, no dizer de Emilio Bett22, a vontade é consagrada como:

[...] fato psicológico meramente interno, é qualquer coisa em si mesmo incompreensível e incontrolável, que pertence, unicamente, ao foro íntimo da consciência individual. Só na medida em que se torne reconhecível no ambiente social, quer por declaração, quer por comportamento, ela passa a ser um fato social, suscetível de interpretação e de valoração, por parte dos consorciados.

1.4.2. A teoria da declaração

A Teoria da Declaração de Vontade teve sua concepção ao longo dos séculos, com raízes na Lei das XII Tábuas quando foram registradas as primeiras manifestações da vontade. Depois da Lei 48 do Código de Hamurabi (1690 a.C.), surgiu a necessidade de revestir a vontade declarada de uma obrigatoriedade, considerando-a como "lei entre as partes." Mas foi no século XVIII que essa teoria, aplicada pelos canonistas, teve grande aceitação entre os estudiosos da época. Tanto os canonistas como os jusnaturalistas foram os responsáveis, através dessa teoria da manifestação da vontade, pela ênfase à obrigatoriedade do cumprimento das convenções livremente estabelecidas na maneira de Ulpiano, como lei entre as partes.

Para se constituir o negócio jurídico, faz-se necessária à existência de dois elementos: a vontade interna e a declaração ou manifestação dessa vontade. Faltando a vontade do negócio, não há negócio, ou seja, não há negócio sem vontade do negócio. Exemplo, o testamento é negocio jurídico, não havendo uma consciência ou vontade de testar, não haverá intuito de divulgá-lo e, dessa forma, não existe suporte fático e não gera efeitos ao destinatário.

Assim, para dar suporte fático, isto é, para que o negócio exista de fato e produza efeitos no mundo jurídico, há necessidade de que a intenção (vontade) do agente se projete para o exterior, através da declaração daquela vontade. O negócio jurídico só passa a ser tutelado pelo Direito quando declarado. Se faltar declaração ou manifestação, que é suporte fático do negócio jurídico, este será nenhum. Já a falta de consciência do conteúdo do ato declarado pode gerar a nulidade ou anulabilidade deste contrato, conforme as disposições dos arts. 138. a 184 do Código Civil.

É na declaração suficiente de vontade que o negócio jurídico passa a existir e a ser disciplinado pelo ordenamento jurídico, bem como a gerar efeitos para seus consórcios.

1.5. PRINCÍPIOS DO DIREITO CONTRATUAL

A palavra "princípio" pode aparecer com sentidos diversos. Porém, para fins desta pesquisa a palavra "princípios" será empregada no sentido de direcionamento e fundamento do Direito Contratual. Assim, buscando na melhor doutrina, Celso Antônio Bandeira de Mello23, define princípio como:

[...] mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério de sua compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.

Prosseguindo a análise, os princípios onde descansam o Direito Contratual são quatro: a autonomia da vontade; a supremacia da ordem pública ou dirigismo contratual; a obrigatoriedade e a boa-fé.

1.5.1. Autonomia da vontade

A autonomia da vontade nasceu em razão do liberalismo individualista do século XIX, como reação ao Estado controlador e limitador da Idade Media, consagrando o postulado da liberdade do homem no plano contratual. À mercê desse princípio, toda pessoa capaz tem ampla liberdade de contratar e criar vínculo obrigacional com outra. No entanto, apesar do contrato ter como requisito de formação a declaração de vontade criada pelo consentimento entre as partes, o que faz com que tenha força obrigatória, ele nasce da vontade livre segundo o principio da autonomia da vontade.

Para os estudiosos, a vontade livre de contratar tem expressão máxima na liberdade que, por sua vez, passa a existir com o próprio Direito, já que esse faculta às pessoas criar, modificar ou extinguir obrigações. O próprio Direito na sua concepção surge da liberdade. O Direito não é a criação do homem isolado, mas sim em sociedade. Logo, é um produto da liberdade do ser humano. O Direito nasce da liberdade como forma de proteger e resguardar a sociedade. Dessa forma, conclui-se que não existe Direito sem liberdade e nem liberdade sem Direito.

O próprio Jean-Jacques Rousseau, na introdução de O Contrato Social prevê tal axioma: "O homem nasceu livre, e não obstante está acorrentado em toda parte. Julga-se senhor dos demais seres sem deixar ser tão escravo como eles."24 Pode-se observar, que o contratualismo tem suas raízes na própria trajetória do homem, só vindo a ser estruturado no mundo românico. Indo mais além, o contratualismo foi utilizado como fundamento à existência do Estado, que por sua vez originou da vontade dos membros da sociedade humana, em estabelecer um ordenamento que pudesse proporcionar o bem comum, baseando-se na igualdade dos homens. Essa teoria ganhou ênfase com Hobbes, Spinosa, Grotius, Puffendorf, Tomasius, Locke e Rousseau que defenderam a origem contratual do Estado.

Consoante ao exposto, Direito e liberdade andam juntos, tendo seus reflexos na esfera contratual quando se tratar da autonomia da vontade. Segundo Arnoldo Wald,25 a autonomia da vontade pode apresentar-se de duas formas: na liberdade de contratar e na liberdade contratual. A liberdade de contratar fundamenta-se na faculdade de contratar ou não, ficando a pessoa na livre escolha de decidir, de acordo com os seus interesses e conveniência, se e quando constituirá com outrem determinado contrato. Baseia-se na possibilidade de realizar ou não um negócio jurídico-contratual, como também na liberdade de escolha das partes com quem deva fazê-lo e o tipo de negócio a se pactuar.

A liberdade contratual, por sua vez, baseia-se na possibilidade das partes fixarem o conteúdo do negócio que desejam contratar. As partes ficam livres para estabelecer, de acordo com suas consciências e conveniências, a modalidade do negócio a contratar, bem como de atribuírem redação própria, estipulando obrigações, condições e contraprestações. É na liberdade contratual que se permite a criação dos contratos atípicos, isto é, aqueles não especificados pela norma jurídica vigente, importando a possibilidade das partes criarem normas subjetivas ou dispositivas, dando conteúdo próprio ao contrato pactuado, desde que observadas as condições mínimas fixadas pelo ordenamento jurídico.

Em termos gerais, tendo em vista a realidade jurídica e social, pode-se dizer que a liberdade de contratar vem se sobrepondo à liberdade contratual, devido às limitações que se estabelecem ao conteúdo do negócio, tornando-o verdadeiro contrato de adesão sujeito a aprovação do Estado ou não. Neste aspecto, a autonomia da vontade não pode e nem deve ser entendida como princípio absoluto no direito contratual, pois não reflete a realidade social em sua plenitude. Em determinados casos essa liberdade sofre restrições em virtude da ordem pública, que defende a projeção social do interesse social nas relações interindividuais. Esta intervenção do Estado, como se verá a seguir, busca estabelecer uma igualdade de fato, ou melhor, um equilíbrio entre a parte economicamente mais forte e a outra economicamente mais fraca, que desejarem estabelecer algum vínculo obrigacional.

Utilizando as sábias palavras de Nelson Borges26, conclui-se que:

No campo obrigacional a liberdade de escolha das partes é tutelada pelo direito que lhes é outorgado de legislarem para si mesmas. Esta liberdade é total no momento da manifestação de vontade de se obrigar ou não. Feita a opção, a vontade se exaure. Qualquer manifestação contrária – excetuada a denúncia de vícios de consentimento – não terá eficácia. Não seria exagerado concluir que a assunção de uma obrigação representa restrição de liberdade individual, embora consubstancie o exercício do livre direito de contratar. Por outra forma: a liberdade só existe até o instante da manifestação da vontade, em contexto de absoluta normalidade. O exercício dessa liberdade (contratação) traz como decorrência a restrição da própria liberalidade (assunção consciente de obrigação).

1.5.2. O dirigismo contratual

A passagem de um Estado Liberal de Direito, que se fundava na igualdade e na liberdade individual, para um Estado Social de Direito, cujo escopo era a proteção dos interesses sociais e da justiça social, ocorreu por meio do intervencionismo estatal. O Estado moderno frente às desigualdades sociais do século XIX viu-se na necessidade de estabelecer uma igualdade de fato que os ideais de igualdade e de liberdade do liberalismo não foram capazes de tutelar, como demonstrado no Titulo "1.2.1 A Evolução do Contrato", deste trabalho.

O intervencionismo estatal apresentou-se como adaptação aos fenômenos econômicos e sociais da sociedade. Assim, o princípio do pacta sunt servanda, o contrato que faz lei entre as partes, foi cedendo lugar ao dirigismo contratual. As relações contratuais passaram a ser tuteladas pelo Estado, que restringiu enormemente a autonomia da vontade, mas em contrapartida, houve uma proteção maior às partes social e economicamente mais fracas, tentando estabelecer uma igualdade de fato entre os contratantes.

É importante se observar que a liberdade de contratar e a autonomia da vontade nunca foram tão absolutas como se prega historicamente, "na verdade, a liberdade de contratar já nasceu relativa, uma vez que as normas de ordem pública, cogentes, proibitivas e relacionadas com os costumes, sempre foram indisponíveis".27 Dessa forma, trazendo esse relativismo à nossa realidade social, percebe-se que não é a simples vontade das partes que dá origem ao vínculo obrigacional. Este só existirá se a manifestação de vontade for expressa de acordo com a ordem legal. Só assim, o negócio produzirá efeitos no mundo jurídico. Nosso ordenamento jurídico deixa bem claro tal preceito no Parágrafo único do art.2.035 do Código Civil28, dispondo que "nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos". [grifo nosso]

A respeito dessa nova ordem jurídica e social, Arnoldo Wald29sabiamente acrescenta:

[...] atualmente, o contrato se transformou num bloco de direitos e obrigações de ambas as partes, que devem manter o seu equilíbrio inicial, e num vínculo ou até numa entidade. Vínculo entre as partes, por ser obra comum das mesmas, e entidade, constituída por um conjunto dinâmico de direitos, faculdades, obrigações e eventuais outros deveres, que evolui como a vida, de acordo com as circunstâncias que condicionam a atividade dos contratantes. Assim, em vez de contrato irrevogável, fixo, cristalizado de ontem, conhecemos um contrato dinâmico e flexível, que as partes podem e devem adaptar para que ele possa sobreviver, suportando, pelo eventual sacrifício de alguns interesses das partes, as dificuldades encontradas no decorrer de sua existência.

O contrato, na verdade, passou a atender sua função social, cabendo-lhe conciliar os interesses individuais com os da coletividade, sem afastar a função individual a que se propôs. O legislador, sob este aspecto, começou a admitir a revisão contratual nos contratos bilaterais e unilaterais, por motivo de onerosidade excessiva e ainda a anulação dos negócios jurídicos que desrespeitarem os parâmetros legais de validade e existência. O Estado, através de sua supremacia, começou a dar um conteúdo de ordem pública aos contratos. A rigidez do dogma do pacta sunt servanda passou a ser visto com certo relativismo, surgindo a predominância do rebus sic stantibus, teoria da imprevisão, como forma de manter um certo equilíbrio contratual naqueles casos de reconhecida anormalidade, onde não foi possível a identificação prévia no ato da contratação. Assim, em nome da boa-fé, da estabilidade e do equilíbrio na relação contratual, tal princípio vem sustentado pelo nosso Código Civil, nos arts. 477, 478 e 479 cumulados com os arts. 421 e 422 desse mesmo diploma legal e pelo Código de Defesa do Consumidor nos art.6º,V, 83 e 5,§1º,III.

Por fim, Orlando Gomes, citado por Nelson Borges (2002, p. 69), acrescenta: "que o mais importante para nós, juristas, se formos lúcidos, é compreender a inutilidade de tentar reconduzir a realidade jurídica ao modelo da liberdade contratual, expressão da livre iniciativa".

1.5.3. A obrigatoriedade

O princípio da obrigatoriedade dos contratos baseia-se na premissa de que o acordo de vontade faz lei entre as partes, pacta sunt servanda.

Como foi posto anteriormente, o elemento mais importante para a formação do vínculo obrigacional no contrato é a livre manifestação de vontade do agente. Assim, a pessoa exerce livremente uma faculdade de contratar ou não, feita a opção de contratar, a liberdade na qual se fundou a escolha se exaure. É claro que por traz dessa manifestação de vontade, prevalece a supremacia da lei. O contrato só terá força obrigatória se a manifestação de vontade, que lhe deu origem, obedecer aos requisitos mínimos de legalidade impostos pela ordem pública. Exemplos de tais argumentos seria o disposto nos arts. 104 e 106 do Código Civil, bem como o parágrafo único do art. 2035, deixando bem claro que "nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos."

Diante do exposto, pode-se estabelecer, quanto ao conteúdo da obrigação gerada pelo contrato, dois elementos: um de natureza pessoal, de caráter eminentemente privado, criado pela livre manifestação de vontade e resultante da opção feita pela parte de assumir uma obrigação. O outro elemento é um princípio de ordem pública, de cunho patrimonial e se caracteriza pela responsabilidade da parte em cumprir a obrigação contratada. Contudo, feita a opção de assumir uma obrigação, a parte fica responsabilizada pelo cumprimento desta. A parte credora no entanto, fica com o direito subjetivo de propor a execução dos bens do devedor, caso este não satisfaça espontaneamente a obrigação.

Dessa forma, o Estado, para garantir a execução das obrigações firmadas entre os contratantes dentro dos parâmetros legais, estabelece a obrigatoriedade dessas relações que se realizam tendo em vista a situação patrimonial das partes. Através de sua função judiciária, o Estado, por provocação, pode intervir nessas relações coagindo ou mesmo intervindo no patrimônio das partes para garantir o cumprimento do contrato.

Entretanto, os princípios da autonomia da vontade e da obrigatoriedade, já mencionados, não podem ser postos em termos tão absolutos, como o foram pelos jusnaturalistas e pelo Código Civil francês em seu art.1.134. Observa-se que, atualmente, não é a simples vontade das partes que dá origem à obrigatoriedade do vínculo contratual. Esse vínculo só existirá e produzirá efeitos jurídicos se essa manifestação de vontade for expressa de acordo com a lei.

Como exceção à regra da obrigatoriedade dos contratos, haverá casos em que cláusulas primitivas deverão ser compulsoriamente alteradas, independentemente da vontade particular de qualquer das partes. Por exemplo, em se ocorrendo caso fortuito ou força maior (artigo 393 do Código Civil) haverá derrogação automática dos ajustes diretamente atingidos.

A teoria da imprevisão, vertente moderna da antiga cláusula rebus sic stantibus, também é outro exemplo nítido da relatividade do princípio exposto pelo pacta sunt servanda. Veja-se o comentário de Washington de Barros Monteiro30, verbis:

Revisão dos contratos – Acentua-se, contudo, modernamente, um movimento de revisão do contrato pelo juiz; conforme as circunstâncias, pode este, fundando-se em superiores princípios de direito, boa-fé, comum intenção das partes, amparo do fraco contra o forte, interesse coletivo, afastar aquela regra, até agora tradicional e imperativa.

No entanto, a concepção extraída da teoria da imprevisão não pode levar ao exagero. A regra geral ainda é a da força obrigatória dos contratos e somente situações extremamente excepcionais podem mitigar o primado do pacta sunt servanda, de modo a preservar a justiça e o equilíbrio das relações jurídicas.

Ante o exposto, fica patente que a obrigatoriedade dos contratos, imposta pela lei, visa estabelecer a paz social, garantindo o cumprimento dos contratos dentro da situação patrimonial das partes. Resta mencionar que este princípio não pode ser tomado em termos absolutos, pois admite exceções.

1.5.4. A boa-fé

A boa-fé remota ao Direito Romano, doutrinariamente, pode ser classificada em boa-fé objetiva e boa-fé subjetiva.

A boa-fé subjetiva se refere à consciência ou à convicção da prática de um ato conforme o direito. É um estado psíquico de conhecimento ou desconhecimento, de intenção ou falta de intenção para aquisição dos direitos. Nesse contexto, o agente manifesta sua vontade, crendo ser correta e tendo em vista o grau de conhecimento que possui sobre o negócio. Para a análise desta boa-fé, própria da convicção do indivíduo, deve-se sempre considerar os fatos sociais que o envolvem. Sob este prisma, a simples ignorância do agente na feitura ou na execução do contrato basta para caracterizar a boa-fé.

Entretanto, em se tratando da boa-fé objetiva, tem-se uma compreensão diversa, pois esta se refere a uma conduta que impõe às partes determinado comportamento, dentro de uma realidade contratual. Aqui, se considera o padrão de conduta do homem médio, tornando-se mais perceptível como uma regra de conduta, que possibilita a sua aplicação de acordo com os padrões sociais já estabelecidos e reconhecidos.

Nesta modalidade, o fator basilar é a objetividade que se impõe à boa-fé, podendo ser resumida na boa conduta, no equilíbrio, na fidelidade e na honestidade, que é esperada ou desejada pela sociedade. Pode-se dizer que esta objetividade deriva de princípios ético-jurídicos, por isso passível de uma percepção.

Em certos códigos, o princípio da boa-fé é expresso como no Código Civil francês, no italiano e no alemão. Há de se observar que o nosso Código de Defesa do Consumidor31, em 1990 já trazia a boa-fé objetiva como um dos princípios norteadores das relações de consumo. Assim, o art.4,inciso III do Código de Defesa do Consumidor, dispõe que:

A Política Nacional de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: III – harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170. da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores. [grifo nosso]

Deste modo, o Código de Defesa do Consumidor vem estabelecer como fundamento, nas relações em fornecedores e consumidores, a boa-fé objetiva. Impondo-lhes uma conduta que prime pelos preceitos daquele código, pelo dever de lealdade e transparência para com o consumidor e, de certa forma, atendendo às expectativas das partes de acordo com a proteção do princípio da confiança.

Quanto ao Código Civil brasileiro, somente a partir da lei nº 10.406/2002, é que se adotou expressamente o princípio da boa-fé, visto que o Código de 1916 não o trazia expressamente. Assim, tal princípio foi posto de forma aberta, ampla, de modo a preponderar o exame do caso concreto na esfera contratual, dispondo no art.422 que "Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e de boa-fé."[grifo nosso]

Nesta mesma linha de raciocino, o legislador pátrio também contemplou a boa-fé em outros dispositivos legais. Dispôs no art. 112. que: "Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração".[grifo nosso] Da mesma forma, ao disciplinar o abuso de direito no art. 187: "Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes."[grifo nosso]

Sobre esses aspectos, acrescenta Sílvio de Salvo Venosa32 que:

[...] sob o prisma do novo código, há três funções nítidas no conceito de boa-fé objetiva: função interpretativa (art. 112), função de controle dos limites do exercício de um direito (art. 186) e função de interpretação do negócio jurídico (art. 421).

Retornando à função da boa-fé dentro da relação contratual, lembra-se que ela deve ser entendida como a imposição de condutas voltadas à probidade, à integridade de caráter e honradez, bem como à honestidade, de modo que haja lealdade e cooperação entre as partes. Neste ponto de vista, não se pode desprezar a boa-fé subjetiva, pois dentro de um contexto social, o seu exame dependerá da impressão do julgador na análise do caso concreto.

O nosso ordenamento jurídico, tomando por base o princípio maior de uma sociedade livre, justa e solidária, expressão do art.3° da Constituição Federal, refletiu tais preceitos no Código Civil (lei nº10.406/2002) e no Código de Defesa do Consumidor (lei nº8.078/1990). Assim, tais dispositivos impõem aos contratantes condutas efetivas que primam pela solidariedade e cooperação entre os contratantes, o que implica uma postura objetiva para o alcance desse fim.

Por fim, a boa-fé objetiva também é princípio interpretativo, que deve acompanhar o juiz na decisão do caso concreto, devendo sempre observar as condições em que o contrato foi firmado, o nível sócio-cultural dos agentes e seu momento histórico.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Francisco Serrano Martins

pós-graduando em Direito Civil pela PUC Minas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Francisco Serrano. A teoria da imprevisão e a revisão contratual no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 333, 30 mai. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5240. Acesso em: 18 nov. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos