Artigo Destaque dos editores

A corrupção.

Uma visão jurídico-sociológica

Exibindo página 4 de 6
26/05/2004 às 00:00
Leia nesta página:

16.A CONVENÇÃO DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS CONTRA A CORRUPÇÃO.

Sensíveis ao fato de que a corrupção, além de comprometer a legitimidade das instituições públicas, atenta contra a sociedade, a ordem moral e a justiça, retardando o próprio desenvolvimento dos povos, os Estados membros da Organização dos Estados Americanos (OEA) subscreveram, em 29 de março de 1996, na Cidade de Caracas, a "Convenção Interamericana Contra a Corrupção" (CICC). [34]

Essa Convenção, como resulta de seu preâmbulo, tem por fim despertar a consciência coletiva para a existência e a gravidade do problema, estimular ações coordenadas entre os Estados para o combate aos atos de corrupção que transcendam as lindes de seu território e evitar que se tornem cada vez mais estreitos os vínculos entre a corrupção e as receitas provenientes do tráfico ilícito de entorpecentes, "que minam e atentam contra as atividades comerciais e financeiras legítimas e a sociedade, em todos os níveis".

O texto é especificamente direcionado à prevenção, detecção, sanção e erradicação da corrupção no exercício de funções públicas e nas atividades especificamente vinculadas a tal exercício. Considera função pública toda a atividade, temporária ou permanente, remunerada ou não, realizada por pessoa natural a serviço ou em nome da administração direta ou indireta, qualquer que seja o nível hierárquico. Funcionário público, por sua vez, é aquele que mantém vínculo com a administração, alcançando os oriundos de eleição, contratação ou aprovação em concurso público. [35]

Além de veicular normas de natureza penal e penal internacional, a CICC buscou introduzir modificações no próprio sistema administrativo dos Estados Partes, cuja atuação deveria ser necessariamente direcionada por critérios de eqüidade, publicidade e eficiência.

O art. II veicula um extenso rol de medidas preventivas que os Estados se comprometem a implementar. Por sua importância, passamos a transcrevêlas:

"1.Normas de conduta para o correto, honorável e adequado cumprimento das funções públicas. Essas normas deverão estar orientadas a prevenir conflitos de interesses e assegurar a prevenção e o uso adequado dos recursos atribuídos aos funcionários públicos no desempenho de suas funções. Estabelecerão também as medidas e sistemas que exijam dos funcionários públicos informar às autoridades competentes sobre os atos de corrupção na função pública de que tenham conhecimento. Tais medidas ajudarão a preservar a confiança na integridade dos funcionários públicos e na gestão pública.

2. Mecanismos para tornar efetivo o cumprimento das referidas normas de conduta.

3. Instruções ao pessoal das entidades públicas, que assegurem a adequada compreensão de suas responsabilidades e das normas que regem suas atividades.

4. Sistemas para a declaração de rendas, ativos e passivos por parte de pessoas que desempenham funções públicas nos cargos que estabeleça a lei e para a publicação de tais declarações nos casos correspondentes.

5. Sistemas para a contratação de funcionários públicos e para a aquisição de bens e serviços por parte do Estado que assegurem a publicidade, eqüidade e eficiência de tais sistemas.

6. Sistemas adequados para a arrecadação e o controle das rendas do Estado, que impeçam a corrupção.

7. Leis que eliminem os benefícios tributários de qualquer pessoa ou sociedade que realize ações em violação à legislação contra a corrupção dos Estados Partes.

8. Sistemas para proteger os funcionários públicos e cidadãos particulares que denunciem de boafé atos de corrupção, incluindo a proteção de sua identidade, de conformidade com a Constituição e os princípios fundamentais do ordenamento jurídico interno, e a legislação contra a corrupção dos Estados Partes.

9. Órgãos de controle superior, com o fim de desenvolver mecanismos modernos para prevenir, detectar, sancionar e erradicar as práticas corruptas.

10. Medidas que impeçam o suborno de funcionários nacionais e estrangeiros, tais como mecanismos para assegurar que as sociedades mercantis e outros tipos de associações mantenham registros que reflitam com exatidão e razoável detalhamento a aquisição e alienação de ativos, e que estabeleçam suficientes controles contábeis internos que permitam ao seu pessoal detectar atos de corrupção.

11. Mecanismos para estimular a participação da sociedade civil e das organizações nãogovernamentais nos esforços destinados a prevenir a corrupção.

12. O estudo de outras medidas de prevenção que levem em conta a relação entre uma remuneração eqüitativa e a probidade no serviço público."

Ao menos sob o aspecto formal, inúmeras medidas preventivas de combate à corrupção já foram adotadas no Brasil: a) múltiplas unidades da Federação estatuíram códigos de conduta para os seus servidores; b) a omissão do superior hierárquico na informação dos ilícitos praticados por seus subordinados pode configurar o ato de improbidade previsto no art. 11 da Lei nº 8.429/92 e o crime de condescendência criminosa, tipificado no art. 325 do Código Penal; c) o fornecimento anual da declaração de rendas já é contemplado no art. 13 da Lei nº 8.429/92 e na Lei nº 8.730/93; d) os agentes públicos, ressalvadas algumas poucas exceções, são recrutados por meio de concurso público; e) as contratações de bens e serviços são precedidas de licitação, o que assegura a sua publicidade e eqüidade; f) a gestão das receitas do Estado, além de serem objeto de fiscalização pelas Cortes de Contas, devem render obediência aos ditames da Lei de Responsabilidade Fiscal; g) as pessoas físicas e jurídicas que se envolvam na prática de atos de corrupção, consoante o art. 12 da Lei nº 8.429/92, podem ser proibidas de contratar com o Poder Público; h) a lei contempla um programa de proteção às testemunhas; i) a todos é assegurado o direito de representação; etc. Resta, no entanto, a necessidade de que tais medidas venham a ser transpostas do plano normativo para o fático, o que ainda não ocorreu em sua inteireza.

Segundo o art. VI, a Convenção será aplicada aos seguintes atos de corrupção:

"a. requerimento ou aceitação, direta ou indiretamente, por um funcionário público ou uma pessoa que exerça funções públicas, de qualquer objeto de valor pecuniário ou outros benefícios como dádivas, favores, promessas ou vantagens para si mesmo ou para outra pessoa ou entidade em troca da realização ou omissão de qualquer ato no exercício de suas funções públicas;

b. o oferecimento ou a concessão, direta ou indiretamente, a um funcionário público ou a uma pessoa que exerça funções públicas, de qualquer objeto de valor pecuniário ou outros benefícios em troca da realização ou omissão de qualquer ato no exercício de funções públicas;

c. a realização por parte de um funcionário público ou de uma pessoa que exerça funções públicas de qualquer ato ou omissão no exercício de suas funções, com o fim de obter ilicitamente benefícios para si mesmo ou para um terceiro;

d. o aproveitamento doloso ou a ocultação de bens provenientes de qualquer dos atos a que se refere o presente artigo;

e. a participação como autor, coautor, instigador, cúmplice, acobertador ou em qualquer outra forma na prática, tentativa de prática, associação ou confabulação para a prática de qualquer dos atos a que se refere o presente artigo."

Além do rol mínimo de ilícitos que devem ser necessariamente coibidos pelos Estados Partes, nada impede que outros mais sejam previstos na legislação interna. Também o suborno internacional foi objeto de preocupação pela Convenção, devendo ser proibidas e sancionadas as condutas consistentes em oferecimento ou entrega de vantagens a funcionário de outro Estado, com o fim de obter a prática ou a omissão de determinado ato. [36]

O art. IX da Convenção veicula regra de relevância ímpar para a contenção da corrupção no setor público, dispondo que os Estados partes devem adotar as medidas necessárias no sentido de tipificar, como infração penal, o enriquecimento ilícito do agente público. Considerarseá enriquecimento ilícito, a evolução patrimonial que exceda, de forma significativa, as receitas recebidas legitimamente pelo agente em razão do exercício de suas funções e "que não possa ser razoavelmente justificada por ele". Nessa hipótese, como deflui dos claros termos do preceito, caberá ao órgão responsável pela persecução penal o dever de provar a desproporção entre o patrimônio e a renda do agente, enquanto que sobre este recairá o ônus de demonstrar os fatos impeditivos, modificativos ou extintivos da pretensão autoral, vale dizer, a origem lícita das receitas que propiciaram tal evolução patrimonial.

No art. XI é veiculado um rol de condutas correlato aos atos de corrupção e que deve ser igualmente coibido pelos Estados partes. São elas: a) a utilização indevida de informações privilegiadas obtidas em razão ou no exercício da função; b) o uso indevido, em proveito próprio ou de terceiros, de bens a que o agente teve acesso em razão ou no exercício da função; c) o comportamento de agentes estranhos à administração que busquem obter desta uma decisão que lhes propicie um benefício ilícito em detrimento do patrimônio público; d) o desvio de finalidade, quer seja em benefício próprio ou de terceiro, no emprego de bens ou valores que tenha recebido em razão ou no exercício da função.

Outra importante regra contemplada na Convenção é a de que a sua incidência independe da produção de prejuízo patrimonial para o Estado, o que é um indicativo de que a preservação da moralidade administrativa foi um dos vetores que nortearam a sua elaboração. [37] A obtenção de vantagens indevidas, em razão da função, é um indicativo da degradação moral do agente, ainda que não seja divisado qualquer dano ao erário.

Buscando a efetividade de seus preceitos, dispõe a Convenção que os Estados Partes devem colaborar entre si na identificação, no rastreamento, na indisponibilidade e no confisco dos bens obtidos com infringência aos seus preceitos. [38] Para tanto, nem mesmo o sigilo bancário pode ser erigido como óbice a tal cooperação. [39]

A Convenção está sujeita a ratificação dos Estados partes, [40] sendo admissível a formulação de reservas [41] e a denúncia por qualquer dos Estados. [42]


17.A LEI ANTICORRUPÇÃO DA FRANÇA.

O direito positivo francês inaugurou uma nova fase no combate à corrupção com a edição da Lei nº 93122, de 29 de janeiro de 1993 (JO de 30/01/1993, p. 1.588 e ss.), "relativa à prevenção da corrupção e à transparência da vida econômica e dos processos públicos". [43]

Os seis primeiros artigos da Lei, que não estão situados sob um título específico, tratam da instituição de um novo serviço administrativo, vinculado ao Ministério da Justiça, que é encarregado de centralizar e analisar as informações úteis à prevenção da corrupção, encaminhandoas ao ProcuradorGeral da República em sendo detectada a prática ilícita. [44] Esse Service Central busca suprir uma das grandes deficiências detectadas no combate a esse tipo de ilícitos: a pulverização de informações entre órgãos desvinculados entre si, o que confere maior lentidão à sua circulação e compromete a efetividade das medidas a serem adotadas. Iniciativa semelhante já fora divisada com a edição da Lei nº 90614, de 12/07/1990, JO de 14/07/1990, p. 8.329), que instituíra a estrutura denominada de TRACFIN (Service de traitement du renseignement et d''action contre les circuits clandestins). Essa estrutura detinha alguns poderes investigatórios, sendolhe assegurado o anonimato de suas fontes de informação, e lhe era interdito utilizar os dados obtidos para fins outros que não a luta contra a lavagem de capitais oriundos do tráfico de entorpecentes. [45] Sobre o Service Central instituído pela Lei Anticorrupção recai o dever de fornecer informações aos órgãos legitimados a obtêlas, expedir recomendações e disponibilizar os serviços de auditores ao Ministério Público e ao Poder Judiciário em matéria financeira. A forma de exercício desses poderes deve ser disciplinada pelo Conselho de Estado [46], o que foi feito com a edição do Decreto nº 93232, de 22/02/1993, JO de 24/02/1993, p. 2.937.

O primeiro título da Lei dispõe sobre o financiamento das campanhas eleitorais e dos partidos políticos. [47] Nesse particular, o sistema francês evoluiu da seguinte forma: a) até 1988 proibição total de doações; b) de 1988 até 1990 permissão de doação aos candidatos a cargos do Legislativo e à Presidência, sendo prevista, inclusive, a possibilidade de deduções fiscais; c) de 1990 até 1993 permissão de doação também aos partidos políticos; e d) a partir da Lei Anticorrupção é admitida a doação, mas são instituídos mecanismos rígidos de publicidade, o que inclui o dever de publicar uma relação das pessoas, físicas e jurídicas, responsáveis pelos repasses financeiros. Com essa última medida, possibilitouse a própria identificação dos setores sociais com os quais os candidatos e os partidos se comprometeram no curso da campanha. Em que pese à insistência de algumas vertentes políticas, em especial daquelas de colorido socialista, foram consideradas "irreais" e "inexeqüíveis" as propostas que preconizavam a proibição do financiamento privado, devendo a atividade partidária ser custeada unicamente com os recursos repassados pelo erário.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Ainda em relação ao financiamento das campanhas e dos partidos, a Lei Anticorrupção instituiu dois critérios para o repasse de recursos públicos, os quais coexistiriam com aqueles de origem privada: a) parte da receita seria repartida entre os partidos que, nas eleições nacionais, apresentaram candidatos em pelo menos cinqüenta circunscrições eleitorais; e b) a outra parte seria repartida proporcionalmente ao número de parlamentares que foram eleitos pela legenda partidária.

O segundo título veicula inúmeras medidas de transparência das atividades econômicas, alcançando: a) a contratação de publicidade [48] estabelecendo mecanismos para a identificação das receitas auferidas pelas agências que intermediam as negociações entre o anunciante e o veículo de comunicação, somente sendo admitida a percepção de remuneração atribuída àquele, com o que se busca assegurar a lealdade para com o contratante; b) o urbanismo comercial [49] estabelecendo critérios objetivos de aferição e evitando que as dificuldades no atendimento aos requisitos exigidos para a urbanização de "grandes superfícies" atuem como estímulo à corrupção (é a denominada "gestão da raridade", que faz com que a menor oferta aumente a corrupção entre os incorporadores e os políticos locais); c) as delegações de serviço público e as contratações públicas, ainda que estabelecidas com empresas vinculadas ao Poder Público, [50] tornando obrigatória a concorrência e a transparência do procedimento, o que restringirá a contratação direta às hipóteses de ausência de proposta ou no caso de a administração não aceitar, por desvantajosa, aquela formulada; e d) as atividades imobiliárias, [51] disciplinando as cessões de terrenos e do direito de construir das coletividades locais ou das sociedades de economia mista locais, bem como o dever de disponibilizar equipamentos públicos (praças, escolas etc.) nas áreas construídas.

O terceiro título veicula disposições relativas às coletividades locais [52], garantidolhes a possibilidade de explorarem diretamente algumas atividades de interesse público, prevendo a expedição de avisos, pelas cortes regionais de contas, buscando orientar a execução orçamentária, veiculando normas de controle das sociedades de economia mista locais, dispondo sobre o cumprimento das decisões judiciais que fixem astreintes, submetendo os políticos locais à competência da Corte de Disciplina Orçamentária e criminalizando qualquer obstáculo oposto ao exercício dos poderes das Cortes de Contas ou das Câmaras Regionais de Contas, sendo cominada pena pecuniária.

O descumprimento das normas veiculadas pela Lei nº 93122 poderá acarretar a nulidade do ato e a apuração da responsabilidade do infrator perante o órgão competente, em regra com a adoção de medidas de caráter penal.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Emerson Garcia

Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GARCIA, Emerson. A corrupção.: Uma visão jurídico-sociológica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 323, 26 mai. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5268. Acesso em: 10 mai. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos