Artigo Destaque dos editores

Ação afirmativa:

o problema das cotas raciais para acesso às instituições de ensino superior da rede pública

Exibindo página 1 de 4
Leia nesta página:

SUMÁRIO: Introdução – 1 O Principio da igualdade – 2 A igualdade jurídica nos Estados Unidos da América: 2.1 A doutrina dos separados mas iguais; 2.2 Os reflexos da segunda guerra mundial; 2.3 A revisão da doutrina dos separados mas iguais; 2.4 O Surgimento da affirmative actions; 2.5 As ações afirmativas nas universidades: o caso Bakke – 3 Discriminação: 3.1 Classificação das discriminações; 3.2.Discriminação intencional ou tratamento discriminatório; 3.3 Exceções: hipóteses de discriminação legítima; 3.4 Teoria do impacto desproporcional; 3.5 Discriminação na aplicação do direito; 3.6 Discriminação de fato; 3.7 Discriminação manifesta ou presumida – 4 Ações afirmativas: 4.1 Ação afirmativa e as cotas; 4.2 Fundamentos constitucionais da ação afirmativa – 5 Ação afirmativa no direito brasileiro: 5.1 Ação afirmativa e raça; 5.2 O vestibular das universidades públicas estaduais do Rio de Janeiro – Conclusão – Referências.


Introdução

De todos os objetivos que a humanidade busca, a igualdade talvez seja um dos seus mais antigos, desde a Antigüidade Clássica o homem vê o outro como seu semelhante, e deseja ser tratado como igual.

Mas, o princípio da igualdade não pode ser utilizado apenas para tratar todos da mesma forma, faz-se mister o uso de políticas sociais, para conceder um tratamento específico aos grupos historicamente discriminados, garantindo-lhes assim as mesmas chances de galgar os melhores postos na sociedade.

Essas políticas de proteção social, que transformam uma igualdade meramente formal numa igualdade real são as ações afirmativas.

Neste trabalho, trataremos das ações afirmativas de cunho racial, mais especificamente do problema das cotas no acesso às instituições de ensino superior da rede pública, para tanto dividimos o trabalho em cinco capítulos.

No primeiro deles, enfocaremos o princípio da igualdade, fazendo um breve apanhado histórico, distinguindo a igualdade formal da igualdade material ou substancial.

Em seguida, analisaremos um pouco da história norte-americana, com o fito de demonstrar os fatores que levaram ao surgimento das ações afirmativas, com ênfase no campo educacional.

Logo após, trataremos da discriminação, seu conceito, e sua tipologia, para possibilitar a compreensão e o uso das ações afirmativas.

Depois, trataremos das ações afirmativas, analisando a sua problemática, seus fundamentos, e em especial, diferenciando-a das cotas.

Por fim, dedicamos um capítulo para tratar das ações no Brasil, destacando as ações afirmativas de raça, e o problema das cotas para o acesso as instituições de ensino superior.

Espera-se que ao final o leitor compreenda o mecanismo da ação afirmativa e reflita sobre o problema da discriminação.


1 O princípio da igualdade

O princípio da igualdade pode ser compreendido em duas acepções: em igualdade formal e igualdade material.

A igualdade formal é dirigida ao Estado, como forma de vedar o tratamento desigual das pessoas, baseados em caracteres suspeitos, como por exemplo, o sexo, raça e convicções morais, religiosas e filosóficas.

Assim, o princípio da igualdade formal está positivado no caput do art. 5º da Carta Magna de 1988, ao dizer que "todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza". [1]

O conceito de igualdade surge na Antigüidade Clássica, mas propriamente na Grécia, juntamente com a democracia (demos = muitos; kratia = governo). Na sociedade grega, todos os cidadãos eram iguais, todos tinham o direito a votarem e serem votados e seus votos tinham o mesmo peso, enfim todos os cidadãos participavam ativamente da vida política na polis.

Todavia, só eram considerados cidadãos apenas os homens nascidos livres, o que excluía as mulheres e os escravos, deixando a grande maioria da sociedade, à margem da vida política. Contudo, apesar de restrita a alguns, foi lá que surgiu a idéia de igualdade, entre os homens.

Este tipo de privilégios a uma determinada classe, se manteve na Idade Média, na qual o sistema feudal impunha a dominação dos camponeses pelos donos das terras: era a dominação do suserano sobre os vassalos. As monarquias absolutistas eram sustentadas pelos senhores feudais, que possuíam as terras e exploravam os camponeses, em contra-partida, os reis privilegiavam os nobres, em detrimento do restante da população.

Com o surgimento do comércio, surge uma nova classe social, a burguesia, que começa a acumular riquezas não mais através das terras, mas com o comércio de mercadorias.

Tal processo de acumulação de capitais, se intensifica com a Revolução Industrial, e a burguesia passa acumular capital não só com a compra e venda de produtos, mas também com a fabricação, já que detinha o meio mais eficiente de produção, a máquina.

A Revolução Industrial permitiu que a burguesia o domínio dos meios de produção mais vantajosos: a máquina e o comércio, fazendo com que a burguesia passasse a adquirir capital, e conseqüentemente obtivesse mais condições de produzir e adquirir cultura.

O enriquecimento cultural deu à burguesia substrato para reivindicar tratamento igualitário a todos, protestando pelo fim de todos os privilégios que o Estado destinava à aristocracia e ao clero.

Na verdade, a burguesia passou a deter a maior parte da riqueza, os privilégios Estatais, porém, eram dirigidos ao Primeiro e Segundo Estado (igreja e nobreza), os quais não pagavam tributos, restando apenas ao Terceiro Estado (burguesia e proletariado), o custeio estatal.

É quando, no fim do século XVIII, ocorre a Independência Norte-Americana e a Revolução Francesa, e foi através delas que os burgueses puseram fim aos privilégios nobiliárquicos e eclesiásticos até então existentes.

Tais Revoluções modificaram a forma de organização da sociedade, que antes era baseada na monarquia, sustentada pelas terras dos nobres e pelo apoio teológico da Igreja.

Para a burguesia manter-se no poder, fazia-se necessário uma norma superior que obrigasse o Estado a tratar todos os homens igualmente, independente de sua origem.

Daí o fundamento do princípio da igualdade estar ligado com o princípio da dignidade pessoa humana, pelo qual todos os indivíduos são sujeitos de direitos, vez que dotados de humanidade, devendo ser tratados de forma igualitária independentemente de sua origem, raça ou gênero.

É quando fica positivado o princípio da igualdade na sua acepção formal.

Note-se que, neste primeiro momento, não há uma preocupação com a igualdade material, isto é, em dar a todos as mesmas condições, isso porque financeiramente falando, a burguesia já havia atingido o mesmo patamar que a nobreza, pelo que lhe bastava abolir os privilégios que ela possuía.

O princípio da igualdade formal passa a ser uma norma, que é dirigida tanto ao aplicador da lei quanto ao legislador, daí alguns doutrinadores subdividi-lo em princípio da igualdade perante a lei (dirigido ao aplicador) e princípio da igualdade na lei (destinado ao legislador).

O princípio da igualdade deve ser obedecido por ambos, no entanto, o legislador só tem que obedecer aos ditames constitucionais e aos princípios gerais do direito; enquanto o aplicador deve obedecer não só a constituição e aos supramencionados princípios, mas também às normas exaradas pelo poder legislativo, exceto se eivadas de inconstitucionalidade, caso em que deverão ser afastadas devendo ser aplicada a própria norma constitucional.

Portanto, o princípio da igualdade formal, criado no Estado Liberal, baseado na premissa de que o Estado não deve intervir na sociedade, não deve estabelecer privilégios; deve sim, antes de tudo, permitir que, as pessoas, por seus próprios meios construam as oportunidades de crescimento, seja ele profissional, pessoal e financeiro, pois todos nascem iguais, somos todos humanos, e por isso teríamos as mesmas condições.

Contudo, a história mostra que a mera abstenção estatal, não foi suficiente para tornar os indivíduos verdadeiramente iguais. Percebe-se, se que determinados grupos sociais não conseguiram atingir padrões sociais relevantes. E isto fica mais explicito, se utilizarmos como exemplo a situação dos indivíduos de raça negra, nos Estados Unidos.

É notável que nos EUA os negros são marginalizados socialmente, havendo em muitas cidades bairros onde negros não podem morar. Claro que está divisão não é explicita, mas se o negro for morar em um bairro onde reside a elite branca dominante, era será no mínimo excluído, isso se este negro tiver condições financeiras para fixar sua residência em tal bairro, pois, via de regra, são poucos os negros que conseguem uma ascensão econômica nos EUA.

Diante de questões como estas, é visível que a simples colocação do princípio da igualdade formal, fundado na abstenção estatal de tratar as pessoas de forma diferente, não produz a igualdade de forma efetiva. Ou seja, não basta que a Constituição diga que todos são iguais perante a lei, vedando o seu tratamento de forma diferenciada, é necessário que a Constituição obrigue o Estado a discriminar as pessoas para promover uma verdadeira igualdade.

A percepção dessa discriminação se dá com o surgimento do Estado do Assistencial ou Estado do Bem-Estar Social, expresso inicialmente na Constituição Mexicana de 1917 e na Constituição Alemã de Weimar de 1919. Contrapondo-se à inatividade do Estado Liberal, o Estado Assistencialista passa a intervir na sociedade para igualar as pessoas, estipulando benefícios compensatórios aos que antes eram excluídos.

Surge, portanto, uma verdadeira discriminação positiva, destinada a suprir as desvantagens historicamente impostas às pessoas em razão da sua cor de pele, religião ou sexo, por exemplo.

O conceito jurídico de igualdade deixou de ser um conceito meramente passivo, para abarcar também uma face ativa, ou seja, saímos de um conceito negativo de atitudes discriminatórias, passamos a um conceito jurídico de igualdade positiva, que culmina com o surgimento das ações afirmativas.

Portanto, temos agora, lado a lado, a igualdade formal e a igualdade material, que se consubstancia no primeiro momento em uma vedação ao Estado de tratar desigualmente os indivíduos, para não desigualá-los e num segundo momento numa obrigação de trata-los desigualmente para igualá-los.


2 A igualdade jurídica nos Estados Unidos da América

Assim como em todos os países do mundo, nos Estados Unidos nem sempre houve uma igualdade jurídica entre os seres humanos. Antes da Guerra Civil, muitos Estados, mormente os do sul, tinham ordenamentos jurídicos que não só permitiam, mas disciplinavam o regime escravocrata.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

O conflito entre o sul escravista e o norte abolicionista, foi tal que a própria Constituição de 1787, evitou o uso do vocábulo escravidão, mas como posteriormente observou Abraham Lincoln: "a palavra escravidão ocultou-se na Constituição, exatamente como um homem angustiado oculta um tumor ou câncer, que ele não ousa extirpar de imediato, com receio de sangrar até a morte". [2]

Os escravos não eram, sequer, considerados seres humanos. De acordo com as normas de diversos Estados, os escravos eram considerados como mercadorias, mais precisamente como bens imóveis, ligados à terra, sendo mesmo passíveis de hipoteca. [3]

Com o passar dos anos e com o aumento da população de escravos libertos, as leis escravistas terminaram por tornar-se leis de discriminação racial, assim, mesmo os negros que conseguissem sua liberdade, não poderiam votar, casar com pessoas não negras, nem sequer criar cachorros. [4]

2.1 A doutrina dos separados mais iguais

Somente com a Guerra Civil é que a estrutura social e jurídica foi alterada.

Ocorre que antes da guerra, a economia norte-americana era baseada na agricultura que era dominada pelo sul escravocrata, mas com a vitória do norte, a economia passou a ser dominada pela industrialização que exigia a mão de obra livre e barata dos operários assalariados.

É quando são ratificadas a Décima Terceira Emenda, em 1865, que proíbe a escravidão; a Décima Quarta Emenda, que trouxe o princípio do devido processo legal, proibiu a discriminação racial e considerou cidadãos americanos todos aqueles nascidos nos EUA, e a Décima Quinta Emenda, em 1870, que impede o cerceamento do voto por motivo de raça.

Contudo, apesar da discriminação estar constitucionalmente proibida, várias foram as leis estaduais, sobretudo no sul, que procuraram ao máximo preservar o status quo existente antes da abolição da escravatura. Havendo leis que exigiam lugares separados para negros e brancos, em cinemas, restaurantes e até mesmo em penitenciárias. Essa Doutrina ficou conhecida como separados mas iguais (separate but equal). [5]

Por mais absurdo que hoje pareça, foi no Poder Judiciário que essa doutrina ganhou notoriedade. Sobretudo, a partir do julgamento do caso Plessy v. Ferguson, em 1896. [6] Plessy era um cidadão norte-americano, que apesar de ser aparentemente branco, era considerado negro pela legislação estadual, por ter ascendência negra.

Plessy foi preso durante uma viagem de trem no Estado da Louisiana, por ter se negado a se retirar da área reservada para pessoas brancas. Inconformado, ajuizou uma ação contra a empresa de trens e contra o Estado da Louisiana, afirmando que a Lei estadual violava as Décima Terceira e Décima Quarta Emendas.

A Suprema Corte, porém, rejeitou os argumentos apresentados, afirmando que a Décima Terceira Emenda só proibia a escravidão e a Décima Quarta Emenda proibia a discriminação, e que a separação das pessoas num trem em função da sua raça, não significava que uma fosse inferior em relação à outra. Nas palavras do Ministro Henry Brown: "Leis que permitem, e até exigem... a separação [das raças], em lugares onde houver possibilidade de elas entrarem em contato, não implicam necessariamente a inferioridade de uma raça com relação à outra". [7]

O único a descordar dessa teoria foi Ministro Harlan, entendendo que a Décima Terceira Emenda tinha um alcance mais amplo, proferindo um voto que entrou para a história da Suprema Corte norte-americana, cuja passagem mais enfática merece ser lembrada: "A Constituição é daltônica, e não conhece nem tolera classificação entre os cidadãos". [8] Infelizmente, essa não foi a posição vencedora, e a Suprema Corte passou então a aplicar essa doutrina amplamente até o ano de 1954.

2.2 Os reflexos da segunda guerra mundial

Durante a segunda guerra mundial, havia um intenso desconforto na sociedade norte-americana, pois no plano internacional, ela combatia regime anti-semitista do nazi-facismo alemão e italiano, e no plano interno, havia uma tolerância ao forte preconceito racial.

Aliado a esse desconforto, as faixas mais discriminadas da população (negros e mulheres) passaram a ocupar os postos de trabalho deixados pelos americanos brancos que iam lutar na guerra.

Diante desse quadro, vários movimentos e lideranças negras articularam-se por meio de várias manifestações sucessivas, para que a desigualdade a que eram submetidos fossem extirpadas.

Sentindo-se pressionado, o Presidente Franklin Delano Roosevelt, baixou a Executive Order, "algo semelhante ao Decreto do direito pátrio", [9] n.º 8.806, de 25 de junho de 1941, que impedia a discriminação racial na contratação de funcionários pelo governo federal e pelas empresas bélicas que mantivessem contratos governamentais.

Embora esta medida não tenha sido suficiente para modificar o entendimento da Suprema Corte, foi a primeira vez que o governo federal norte-americano praticou uma ação no sentido de assegurar iguais condições de trabalho para todos.

Durante a Guerra começou a surgir no seio da sociedade norte-americano o temor que japoneses e seus descendentes residentes no país formassem uma rede de espionagem, o que fez surgirem diversas leis, limitando liberdade de locomoção dessas pessoas, impondo toques de recolher e mesmo expulsando-os de determinadas áreas da costa do pacífico.

No ano de 1944, foi julgado pela Suprema Corte o caso Korematsu v. United States, versando sobre a condenação de um descendente de japonês que havia desrespeitado uma dessas leis. [10]

A Suprema Corte confirmou a condenação, por considerar a discriminação uma necessidade pública urgente, afirmando o Ministro Black em seu voto: "Todas as restrições legais que limitam os direitos civis de um grupo racial isolado são imediatamente suspeitas. O que não quer dizer que todas essas restrições sejam inconstitucionais. Quer dizer que os tribunais devem sujeita-las a um exame apurado. A necessidade pública urgente pode algumas vezes justificar a existência de tais restrições; o antagonismo racional nunca pode." [11]

Apesar da Suprema Corte ter reconhecido a Constitucionalidade da medida, ela deixou bem claro que não endossaria as discriminações, e que estava proferindo a decisão em razão do momento drástico marcado pela guerra com o Império Nipônico.

De acordo com Paulo Lucena de Menezes [12] Este caso tem uma relevante significância para o direito constitucional norte-americano, pois fixou três pontos que passaram a ser analisados no controle de constitucionalidade das leis baseadas em classificações raciais ou étnicas: primeiro, que essas classificações são suspeitas; segundo, devem ser analisadas aprofundadamente e terceiro, essas classificações serão inválidas se consistirem num antagonismo racial, exceto se amparado por uma necessidade pública urgente.

2.3 A revisão da doutrina dos separados mais iguais

Como já foi dito anteriormente, somente no ano de 1954, quase meio século após a decisão proferida no caso Plessy v. Ferguson, é que a Suprema Corte reviu a doutrina dos separados mas iguais. Foi no caso Brown v. Board of Education of Topeka, que tinha por objetivo acabar com a segregação racial nas escolas.

Os trabalhos de discussão deste caso foram iniciados em 13 de dezembro de 1952, quando era Presidente da Suprema Corte, o Ministro Fred M. Vinson, o qual demonstrou que não estava inclinado a rever a doutrina dos separados mas iguais, argumentando que a lei que instituiu a separação era anterior a Décima Quarta Emenda e que se os Congressistas quisessem, a teriam abolido especificadamente, quando da criação da referida emenda. [13]

Esta colocação foi apoiada por mais dois outros Ministros, Reed e Clark. Contudo, foi questionada pelo Ministro Black, que achava que a o objetivo da Décima Quarta Emenda era de evitar qualquer tipo de discriminação, e pelos Ministros Douglas, Burton e Minton, para quem a Constituição não autorizavam classificações baseadas nas raças dos indivíduos. Os outros dois Ministros, Jackson e Frankfurter, não se posicionaram de forma clara.

Como não se chegou a um consenso, o julgamento foi adiado, e em setembro do ano seguinte, o Ministro Vinson veio a falecer, sendo nomeado o Ministro republicano Earl Warren [14], que promoveu uma reviravolta no caso.

Em 12 de dezembro de 1953, em uma reunião informal, o Ministro Warren expressou seu entendimento de que a doutrina do separados mas iguais denotava no reconhecimento da inferioridade da raça negra, asseverando que: "Não vejo como, no dia e na época de hoje, podemos separar um grupo do restante e dizer que eles não têm direito ao mesmo tratamento de todos os outros. Fazer isso isto seria contrário às Décima Terceira, Décima Quarta e Décima Quinta Emendas. Elas visavam tornar os escravos iguais a todos os outros. Pessoalmente, não consigo ver de que forma podemos hoje justificar a segregação unicamente com base na raça." [15]

Procurou ainda alertar os Ministros para que se ativessem ao sentido moral da norma impugnada, e que evitassem controvérsias quanto aos efeitos no tempo da possível decisão que revogasse a doutrina dos separados mas iguais, buscando assim, conciliar os Ministros. Além disso, em seguida, o Ministro-Presidente, promoveu uma serie de almoços e encontros com os demais integrantes da Suprema Corte.

Em 17 de maio de 1954, em um julgamento secreto, a Suprema Corte proferiu uma histórica decisão, concluindo: "unanimemente, que no campo da educação pública a doutrina de separados mas iguais não tem lugar. Instalações educacionais separadas são intrinsecamente desiguais". [16]

Como a decisão foi restrita as escolas públicas, posteriormente, em dezenas de outras ações, a Suprema Corte afastou a doutrina de separados mas iguais em diversos outros campos.

2.4 O Surgimento da affirmative actions

Apesar da doutrina de separados mas iguais ter sido de afastada, poucos foram os Estados que aboliram automaticamente as normas que impunham a segregação, isto, via de regra, só era feito através de medidas judiciais. Apenas com a posse do Presidente John F. Kennedy, em janeiro de 1961 é que se iniciam medidas eficazes por parte do poder público.

Dois meses após tomar posse, Kennedy, expediu a Executive Order n.º 10.925 que utilizou pela primeira vez o termo ação afirmativa, em inglês, affirmative action. [17]

Essa norma se dirigia às relações de trabalho, obrigando os empregadores a tratar igualmente todos os seus empregados, e os proibia de impor restrições de cunho racial para a sua contratação.

A Executive Order obrigava os contratantes do governo federal a não discriminar "nenhum funcionário ou candidato a emprego devido à raça, credo cor ou nacionalidade. O contratante adotará a ação afirmativa para assegurar que os candidatos sejam empregados, como também tratados durante o emprego, sem consideração a sua raça, seu credo, sua cor, ou nacionalidade. Essa ação incluirá, sem limitação, o seguinte: emprego; promoção; rebaixamento ou transferência; recrutamento ou anúncio de recrutamento; dispensa ou término; índice de pagamento ou outras formas de remuneração; e seleção para treinamento, inclusive aprendizado." [18]

A partir de então, surgiram diversos textos legais incentivando a affirmative action, em especial nas relações empregatícias e na área da educação, que será visto especificamente no item seguinte.

2.5 As ações afirmativas nas universidades: o caso Bakke

Não tardou para que surgissem demandas judiciais questionando as ações afirmativas. O primeiro caso dessa natureza que chegou à Suprema Corte, foi De Funis v. Odegar, [19] que contudo não chegou a ser apreciado, pois ainda na primeira instância o autor havia sido autorizado a freqüentar o curso enquanto a questão estivesse judicialmente pendente e, quando o caso chegou a Suprema Corte ele já estava prestes a se formar, razão pela qual o processo foi extinto sem julgamento de mérito.

O mérito da questão só foi apreciado pela Suprema Corte anos mais tarde, com a chegada de um outro processo, Regents of the University California v. Bakke [20].

Allan Bakke era um engenheiro, branco, de 37 anos, já tendo servido como oficial da marinha por 4 anos, inclusive no Vietnã, que decidido a mudar de profissão, se inscreveu em 1972, para o curso de medicina em diversas faculdades, não sendo admitido em nenhuma delas, inclusive na Universidade da Califórnia, em Davis, onde havia um programa de ação afirmativa que destinava 16 vagas em 100, exclusivamente para indivíduos de grupos minoritários, "negros, índios, ou norte americanos descendentes de mexicanos", [21] enquanto nas demais 84 vagas concorriam todos os candidatos, estivessem ou não inseridos nos grupos minoritários.

De acordo com Joaquim B. Barbosa Gomes "o programa, contudo,tinha uma falha séria em sua concepção e isto era visível ao primeiro contato: para as dezesseis vagas reservadas só podiam concorrer às minorias, mas o inverso não era verdadeiro, ou seja, as minorias também podiam concorrer a uma das 84 vagas restantes!" [22]

Na primeira instância, entendeu-se que embora o programa de ações afirmativas, desenvolvido pela universidade, violasse a Décima Quarta Emenda Constitucional, Allan Bakke não poderia ser admitido por não haver demonstrado que caso a cota não existisse ele seria aceito.

Inconformado, Bakke apelou para a Suprema Corte californiana, que manteve a decisão no tocante a sua inconstitucionalidade, mas reformou a decisão determinando a admissão de Allan Bakke.

A Universidade da Califórnia, recorre, levando o processo para a Suprema Corte norte-americana, que nesta época era composta por quatro Ministros liberais: William Brennan, Thurgood Marshall (o primeiro negro na história da Suprema Corte), Harry Blackmun, John Paul Stevens; três Ministros conservadores: Potter Stewart, Byron White e William Rehnquist; e por mais dois Ministros que flutuavam entre um pólo e outro o então presidente, Warren Burger, e o relator do caso Bakke o Ministro Lewis Powell. [23]

A ala conservadora, seguida pelo Ministro Burger, queria a admissão de Allan Bakke no curso de medicina da Universidade da Califórnia; e a ala liberal, desejava ver as ações afirmativas baseadas na raça confirmadas pela corte, e conseqüentemente a inadmissão de Bakke.

Porém, nos Estados Unidos, antes que a Corte julgue o mérito propriamente do caso, deve ser definido o critério que se utilizará para a sua análise e no campo dos direitos das minorias, onde se enquadram as ações afirmativas, existem três níveis:

a) rational basis test – critério racional ou critério de bases racionais [...]; b) o Standard intermediário, também conhecido como intermediate scrunity [...]; c) o critério mais rigoroso, o strict scrutiny test. [24]

Esses critérios diferenciam o rigor com que a Corte vai analisar o caso, sendo o primeiro deles o mais brando e o último o mais rigoroso, que era o desejado pela ala conservadora seguida, mais uma vez, pelo Presidente Burger, sob o argumento, em síntese, de que toda classificação racial era suspeita, e por isso tinha que ser submetida ao exame rigoroso strict scrutiny test.

De outro lado, a ala liberal da corte desejava ver o julgamento sob a ótica do critério intermediário, intermediate scrunity, para facilitar a aprovação da ação afirmativa em análise.

A decisão na prática, ficou por conta do Ministro Powell, relator do caso, o qual entendeu que a questão deveria ser analisada sob pálio do strict scrutiny test e, em seguida passou a analisar o mérito da questão.

Nas razões do seu voto, o Ministro Powell assevera que o único argumento da Universidade da Califórnia é que as cotas seriam o único meio para atingir a diversidade étnica no corpo discente, que propiciaria a troca de experiências entre os estudantes, e conseqüentemente melhoraria a sua formação, consistindo portanto, num interesse estatal imperativo.

O Ministro Powell refuta esta tese, dizendo que: "um interesse estatal imperativo engloba uma gama de qualificações e características consideravelmente maior, da qual a origem racial ou étnica nada mais é do que um simples elemento, embora importante. O programa especial de admissões da recorrente, centrado somente na diversidade étnica, impediria, e não promoveria a obtenção de uma genuína diversidade." [25]

Ainda em seu voto, o Ministro Powell declara que não seria do interesse do Estado um sistema com um número prescrito de cotas para cada "categoria identificável de candidatos". [26]

E conclui relatando que outras universidades utilizam critérios muito mais brandos, os quais não fixam um número determinado de vagas para atingir a diversidade, citando como exemplo o programa de admissões da Faculdade de Harvard, que procurava diversificar seu campus não só com as minorias, mas com candidatos de todas as partes dos Estados Unidos, pois de acordo com o Ministro: "a raça de um candidato pode pesar na balança em seu favor tanto quanto a origem geográfica ou a vida passada em uma fazenda [...]. Um garoto do interior do Estado de Idaho pode trazer para os cursos de graduação [...] algo que um Bostoniano não pode oferecer. Da mesma forma, um estudante negro pode usualmente trazer algo que uma pessoa branca não pode oferecer[...]. Em tal programa de admissões, o fator racial ou étnico pode ser considerado um ‘plus’ [...] todavia ele não isola o individuo da comparação com todos os outros para as vagas disponíveis." [27]

Ou seja, o programa de Harvard considerava todos os aspectos do candidato, colocando-o em pé de igualdade para concorrer com os demais. A exclusão de um candidato não significava que ele tivesse a cor errada ou não fosse de determinado local do país, mas que as suas qualidades combinadas não foram suficiente para vencer as de outro candidato, portanto conclui o Ministro Powell que "tal fraqueza aparente [a discriminação] não existe em um programa de admissões em o fator racial ou étnico seja simplesmente um elemento no processo de seleção". [28]

Colocando seu voto dessa forma, o Ministro Powell terminou por conciliar os conservadores e os liberais, dividindo o julgamento em duas partes.

Na primeira parte, declarou ilegal o programa de admissões da Universidade da Califórnia e determinou a admissão de Allan Bakke no respectivo curso de medicina daquela universidade. Voto no qual foi acompanhado pelos Ministros Stewart, Burger, Rehnquist e Stevens.

Na segunda parte de seu voto, permitiu a Universidade da Califórnia que considerasse a raça como um dos critérios para a admissão em seus cursos, no mesmo sentido votaram os Ministros Brennan, White, Marshall e Blackmun.

Em outras palavras, a Corte considerou constitucional o uso de ações afirmativas que favorecessem as minorias, mas vedou o uso de ações afirmativas que fixassem um número determinado de vagas (cotas) para os candidatos das minorias.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Osias Tibúrcio Fernandes de Melo

Técnico Judiciário do Tribunal de Justiça de Pernambuco

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELO, Osias Tibúrcio Fernandes. Ação afirmativa:: o problema das cotas raciais para acesso às instituições de ensino superior da rede pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 342, 14 jun. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5301. Acesso em: 28 mar. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos