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O paradoxo em torno da democracia em tempos de globalização

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CONCLUSÃO

"(...) temos necessidade ao mesmo tempo de reanimar o pensamento crítico e a imaginação política. O pensamento crítico não é o verdadeiro sempre negativo sobre o presente, em benefício da nostalgia das soluções mitológicas do passado; a imaginação não é a edificação de um modelo de sociedade projetado sobre o futuro. O pensamento crítico comporta necessariamente uma parte autocrítica e conduz aos problemas de fundo. A imaginação tem por tarefa inventar um possível, mesmo se ele é hoje improvável. Os dois estão legados: a crítica chama a imaginação e a imaginação chama a crítica". (11)

O Estado Democrático de Direito vive a crise, aprofundada pelos efeitos do processo da globalização, é um fato. Mas, tal crise não permite aos apocalípticos de plantão afirmar, igualmente, o fim do Estado, ou mesmo da democracia.

É sem sentido declarar a morte do Estado, pois esse é, ainda, o cenário privilegiado da política. Mesmo que não se negando que as exigências do efeito da transterritorialidade vem cobrando um alto custo na capacidade desse em exercer o controle do jogo político e dos sujeitos políticos, sua importância para o campo social sobrevive. Como estabelecer as condições para o exercício de uma regulamentação política é o desafio que se impõe a sua existência.

Já a democracia, única forma em que se acredita ser possível a enunciação da política, tem desafios mais robustos e que se não confrontados, podem decretar a transformação dessa ou mesmo o seu abandono por parte de amplos e extensos setores do campo social.

Isso, porque, não há de se falar em democracia sem a obrigatoriedade de uma política de inclusão que venha a ser mais eficiente do que uma política de exclusão. E, nesse escopo, a cidadania e a soberania são peças fundamentais para determinar a estratégia dessa para alcançar a desejada sobrevivência.

A cidadania, não mais amarrada e limitada ao universo da identidade com o nacional, com a nação, deve buscar, através da figura dos princípios constitucionais, abrir espaços para que o cenário de atuação dos indivíduos cresça em forma e substância, libertando-os de viver, apenas, na margem da participação política, através da disputa eleitoral pelo poder político, à margem de outros cenários de participação.

Se a perda do lugar tradicional do Estado, nesse momento de globalização, veio a colocar em cheque o próprio poder constitucional do agente político tradicional, pois, paulatinamente ele vai perdendo as condições para o exercício do controle da função política, é através dessa cidadania mais abrangente, e que convoca os indivíduos a uma maior participação, que será possível operacionalizar uma redefinição do controle, da regulamentação, enfim, da governança, pois, obrigando-se o campo social a atuar como produtor de políticas que atendam as suas próprias necessidades, o Estado, menos oprimido pela imperatividade de responder à sociedade, deverá recuperar melhores condições de funcionalidade e, assim, se preparar para as exigências dessa nova ordem global.

A soberania, por sua vez, confundindo-se com os direitos fundamentais, e somente nessa condição, pode passar a ter forças para reeducar e disciplinar a relação entre os sujeitos políticos, bem como ao próprio Estado, ainda nação, mas pouco nacional.

Essas exigências históricas, e que acabam por exigir uma ressignificação dos conceitos políticos, das relações sociedade/Estado, não tem, entretanto, potência para afastar da democracia uma das suas características intrínsecas: a da indeterminação.

A democracia é uma nebulosa, perceptível por diferentes sujeitos em diferentes espaços do social, o que lhe dá essa aparência maleável e insegura. Se, por um lado ela detém os sentidos de uma política que permita o desenvolvimento do processo de inclusão, por outro lado ela é um conceito ideológico, e nesse sentido, incapaz de permitir a entrada de todos no bloco histórico dirigente.

Dessa forma, é ela a opção possível para o espaço sócio-político dos países dependentes, de terceiro, quarto e quinto mundo?

Ao se fixar a atenção nessas nações, não por acaso a maioria das nações, se percebe que ali, as condições históricas que propiciaram a emergência da democracia não tiveram tempo de respeitar todas as fases fundantes, todas as etapas de maturação que, nos países de 1º mundo, foram cumpridas. E, em sendo assim, tal discurso em torno da democracia, pode representar aquelas mesmas nações dominantes, aqueles mesmos espaços dirigentes, pode ser, assim, antevista como um discurso novo na perspectiva da dominação. É, nesse sentido que se entende o paradoxo da democracia.

Por um lado, é a alternativa para se enfrentar a miséria, a exclusão de todos os tipos, a ameaça ao ambiente, o esgotamento das fontes de vida no planeta, e até mesmo a figura do atual terrorismo. Mas por outro lado, a democracia também é um rearranjo de estratégias que não tem por tradição, estender à totalidade das benesses a todos, mas apenas, buscar a pacificação da ordem, enfim, do mercado.

Possível alternativa para crise, mas, igualmente, uma possível estratégia de um novo domínio (neo)neocolonial, ainda mais perverso, pois que fundado no discurso do constitucionalismo e de seus elementos universais da figura do homem.

Nessa crise de significados, de discursos, definido está apenas a figura do paradoxo da democracia, que se impõe de forma banalizada entre os que a defendem e aqueles que não a entendem e que, por isso, não a podem praticar.


Notas:

1Carlos Drummond de Andrade. "Nosso Tempo".

2Discurso funerário de Péricles.

3É importante ressaltar que a concepção grega de cidadania é, na verdade, uma concepção bastante reduzida, pois ela parte da aceitação da exclusão para alcançar a sua definição. Dessa forma, a cidadania da pólis grega, que permitia o pleno exercício dos direitos da democracia, estavam, tradicionalmente, limitados a um pequeno grupo de habitantes da cidade-estado (pólis). Em Atenas, o caso mais citado como exemplo da democracia do mundo antigo, com exceção das mulheres, dos menores de idade do sexo masculino, filhos de pai e mãe ateniense, dos estrangeiros e dos escravos, apenas os homens maiores de idade, filhos de ascendentes jônicos, portanto 8 a 10% da população total da pólis é que existiam no espaço democrático, com plenos direitos políticos. E tal visão não é exceção, mas sim a regra dessa sociedade. Até mesmo entre os principais pensadores, como Sócrates e Platão, essa era a imagem que predominava. Não é por acaso que Platão, ao mesmo tempo em que denunciava os Sofistas, que pretendiam uma quebra da (i) moralidade desse sistema político, em seu grande escrito, A República, definiu uma sociedade ideal baseada em três verdadeiros estamentos: os filósofos, senhores, os militares, instrumentos para a proteção do sistema e, os agricultores, responsáveis em abastecer a sociedade, mas sem nenhum direito político. A opção pelo conceito de República, aqui, não deve permitir que se agregue a ela os significados da tradição romana, mas foi escolhida como forma política oposta a Tirania, que era um governo radicalmente popular, e a Oligarquia, forma degenerada da Aristocracia.

4O espaço da política é aqui entendido como distinto do campo político. A política é gênero, e o político, a espécie, portanto, englobado por aquela. A primeira se estende para além do espaço concreto do social, já que se confunde com a própria visão ideológica dos sujeitos. Ela acontece, assim, no espaço discursivo dos sujeitos, enquanto o segundo é eminentemente manifestado no espaço do público, já que representa a disputa pelo exercício do poder político, elemento da primeira. Igualmente fruto de discursos, aqui é o grupo, partido ou representante que enunciam os conceitos para os sujeitos, a tal ponto que mesmo que partindo do indivíduo e retornando a ele pelo espaço do público, é em um novo sentido, o que reafirma a influência do político sobre a política, até porque, na divisão do espaço público sobre o privado, apesar de vários fluxos em que um ou outro predominou, se assiste, hoje em dia, através da explosão dos espaços da mídia, uma reafirmação do público sobre o privado. É assim que Claude Lefort, em seu estudo A Democracia e a Teoria Política ratifica tal distinção, afirmando que "(...) a política se refere a estratégias manifestas e empíricas do sujeito, enquanto o político denota a matriz constitutiva, quase-transcendental da vida política, isto é, o espaço público que permite o mise-em scène (ou encenação) da política".

5Durante o largo e rico período medieval, que se estende dos séculos V a XV, o poder político foi entendido como um preceito delegado pela figura de Deus a alguns homens, que por ventura, eram senhores das propriedades. Para se evitar a contestação, usou-se do discurso ideológico da Igreja Católica, que impôs uma visão platônica ao poder, quer dizer, predominantemente moralista, buscando, dessa forma, reduzir a incidência dos conflitos sociais. Em muito colaboraram as figuras do livre arbítrio, da santíssima trindade nesse período, para reduzir as revoltas campesinas. Entretanto, enquanto sociedade de transição, na crise da sociedade medieval, as jacqueries acabaram não por favorecer a gênese da soberania ascendente, mas a teoria contrária da soberania descendente, não de nobres feudais, mas dos reis, os melhores entre os nobres, e que na tradição da taumaturgia, eram ungidos por vontade divina. Somente no ocaso do absolutismo é que a Democracia vai recuperar espaço entre os setores burgueses/populares, e usada como instrumento de um discurso revolucionário, passar a construir uma nova concepção de sociedade e poder político.

6Essa é uma questão fundamental para se aceitar o paradoxo da Democracia: os mesmos que pretendem usá-la como instrumento para fazer frente aos elementos que justificam a fragmentação e a exclusão do grupo social, ainda detêm condições para se apresentarem como porta-vozes dos sujeitos sociais, excluídos ou não. E o poder de ser porta-voz, usando e abusando do conceito político da democracia, acaba por esterilizar qualquer possibilidade dela se apresentar como um discurso verdadeiramente englobante. Pierre Bourdieu, em seu livro Coisas Ditas, reflete sobre a questão vital da figura do porta-voz nas sociedades atuais: "(...) como o porta-voz se vê investido do pleno poder de agir e falar em nome do grupo que ele produz pela magia do slogan, da palavra de ordem, da ordem e por sua simples existência enquanto encarnação do grupo? A exemplo do rei nas sociedades arcaicas, Rex, que, segundo Benveniste, é encarregado de regere fines e regere sacra, de traçar e dizer as fronteiras entre os grupos e, por essa via, de fazê-los existir enquanto tal, o dirigente de um sindicato ou de um partido, o funcionário ou o expert investidos de uma autoridade estatal são igualmente personificações de uma ficção social a que eles dão existência, na e por sua própria existência, e da qual recebem de volta seu próprio poder. O porta-voz é substituto do grupo que existe somente através dessa delegação e que, age e fala através dele. Ele é o grupo feito homem". É, assim, que a democracia se vê na obrigação, por um lado, de buscar um distanciamento do universo político, ainda que tal tentativa possa, desde já, correr o risco de ser vã, ao mesmo tempo em que, por outro lado, refugiando-se na aliança com a Constituição (espaço elementar dos princípios constitucionais, de grande força englobante, bem como na teoria dos direitos fundamentais, único espaço capaz de construir um discurso verdadeiro e com força para pôr fim ao exercício da exclusão), ela busque eleger um outro emissor, mais legitimado para recuperar todos os que iludidos, desinteressados, decepcionados, ajudem a reorganizar o fio condutor de um novo campo do político, menos predisposto ao jogo tradicional do mercado e do seu sujeito, o capital, e que só teve como fim, alcançar a plenitude do poder. Nessa aliança com o discurso jurídico-politizado, será fundamental a construção, igualmente, de novos centros de controle, sem o quê, qualquer discurso em torno da revitalização da democracia corre o risco de ser vazio em sua razão de ser.

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7Cármen Lúcia Antunes Rocha. O constitucionalismo contemporâneo e a instrumentalização para a eficácia dos direitos fundamentais. pág. 10, texto disponível na Internet.

8Schumpeter explica o funcionamento do jogo democrático como sendo o do próprio mercado competitivo: a democracia representativa é um procedimento para a seleção e troca das elites governantes que competem pelo voto de maneira análoga àquela dos produtores que buscam o controle e competem pelo mercado, de maneira a oferecer ou vender seus programas políticos como se fossem meras mercadorias. Portanto, os partidos competem entre eles, enquanto consumidores do produto, e os eleitores, como consumidores passivos, elegem entre as opções as melhores que lhes são apresentadas. A luta política é apresentada, assim, como uma livre competência entre líderes para conseguir os votos do eleitorado, competência essa que está diretamente envolvida com a capacidade dos partidos em estabelecer um melhor discurso, ou, como já se disse, espetáculo. Essa versão tecnocrática da democracia põe de manifesto muitas características reconhecíveis nas modernas democracias ocidentais, como a luta profundamente competitiva pelo poder político entre os partidos políticos, e o importante papel das burocracias públicas. Igualmente, destaca o sentido da liderança política, a relação entre a política moderna e as técnicas publicitárias, da legitimação da exclusão de amplos setores sociais, etc.

9 Alain Touraine, O que é a Democracia? pág. 37, Editora Vozes, Petrópolis, 2ª Edição, 1996.

10Maria José Fariñas Dulce, ciudadanía universal versus ciudadanía fragmentada, in: El vínculo Social: Ciudadanía y Cosmopolistismo. pág. 183, Turant lo Bllanch, Valência, 2002.

11. Egar Morin, in Javier de Lucas, pág.86.


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Sobre o autor
Antonio Marcelo Pacheco de Souza

advogado criminalista do escritório Amadeu Weinmann, em Porto Alegre (RS), professor de Direito Penal, Processual Penal e Constitucional em cursos preparatórios para exames de Ordem e concursos, mestrando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, licenciado e bacharel em História e Filosofia, especialista em Ciência Política pela UFRGS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Antonio Marcelo Pacheco. O paradoxo em torno da democracia em tempos de globalização. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 337, 9 jun. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5319. Acesso em: 28 mai. 2024.

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