Artigo Destaque dos editores

A teoria jurídica fundamental:

algumas especulações acerca do conceito de Direito (em linhas propedêuticas)

Exibindo página 2 de 4
13/06/2004 às 00:00
Leia nesta página:

3. As Grandes Divisões do Direito

É recorrente, na teoria jurídica fundamental, a exposição de divisões primordiais dos conceitos jurídicos, ordenadas para um maior aprofundamento dos sentidos buscados no estudo. Assim, é comum falar-se em "divisões do direito" ou "dicotomias clássicas".

Em termos lógicos, a expressão dicotomia indica a divisão de um conceito em dois outros conceitos, em geral contrários, que lhe esgotam a extensão. Pode, assim, caracterizar a bifurcação de um plano compreensivo sobre um determinado objeto.

Ao estudar o fenômeno jurídico, é comum o recurso a essa estrutura lógica, pois as relações dicotômicas potencializam um amplo cabedal de informações sobre o conceito jurídico estudado

Para franquear uma completa visão acerca das grandes questões do Direito, propomos uma divisão conceitual de dados relevantes para o objeto estudado, a partir das seguintes polarizações:

- Direito Positivo x Direito Natural

- Direito Objetivo x Direito Subjetivo

- Direito Público x Direito Privado

- Direito Material x Direito Processual

3.1. Direito Natural e Direito Positivo

O Direito Natural é o direito pressuposto pela intuição do que é o correto, dos princípios elementares do "justo". A idéia de Direito Natural é, assim, de alta indagação filosófica, constituindo-se o Jusnaturalismo em uma tendência que visualiza o direito como um valor perene, imutável e válido universalmente. Em outras palavras, seria o direito válido em todos os lugares e em todos os tempos, para todos os povos, correspondendo à clássica fórmula "direitos do homem e do cidadão", ou em outras palavras, "direitos humanos" [21].

A base filosófica para a convicção de um direito de tal ordem radica no chamado Jusnaturalismo, ou seja, na doutrina de um Direito Natural, que compreende um conteúdo variável [22]. Podemos destacar as principais concepções jusnaturalistas: A primitiva ou estóica, a teológica e a racionalista ou antropológica.

A concepção primitiva apresenta rastros remotos na Grécia Antiga, de um direito que a natureza (Physis) ensinou aos animais e que prediz ser a virtude consiste em uma vontade que está sempre de acordo com a natureza. Há que se ressaltar, aqui, a chamada fase de indiferenciação entre o direito, a religião e a moral, em que as normas jurídicas se confundem com as regras do culto.

A tragédia Antígona, de Sófocles, bem retrata a idéia arcaica do jusnaturalismo. Nela, o rei de Tebas, Creonte, editou uma norma proibindo o sepultamento de Polinice, que havia se insurgido contra aquele governante. Antígona, irmã de Polinice, ao desobedecer a norma real, proferiu, dirigindo-se ao próprio Creonte, de forma encomiasta, seu laudatório acerca da superioridade do Direito Natural:

Não foi do Sumo Zeus essa ordem emanada.

Nem a justiça a impôs dos Manes na morada.

Do céu não procedeu. Nem podia acudir-me

Que um decreto de rei ou ato humano infirme

Inolvidáveis leis, eternas, não escritas,

À raça dos mortais por imortais prescritas.

Não são d´ontem nem d´hoje; estranhas são às datas.

Têm existido sempre, imutáveis, inatas.

Por humana coação leis santas infringir

Fora da divindade a cólera atrair. [23]

Alguns autores preferem atribuir aos estóicos [24] a primeira formulação dessa doutrina, onde a participação dos seres vivos na ordem universal acontece por meio do instinto para os animais e através da razão para os homens. Neste sentido, exsurge a clássica definição de Ulpiano: "Jus naturale est quod natura omnia animalia docuit".

Como ressalta João Maurício Adeodato, outro exemplo está na célebre passagem atribuída a Jesus Cristo: "a César o que é de César, a Deus o que é de Deus". [25]

O Direito Natural teológico traduz-se na concepção medieval, com a notória influência da Igreja Católica, sobretudo da filosofia tomista [26]. Persiste, aqui, a noção de um direito imutável e superior, de origem divina, que é revelado aos homens através da Santa Madre Igreja.

Com o enfraquecimento da Igreja Católica e a ascensão do Estado como máxima instância sócio-político-jurídica, o mundo laico, isto é, secularizado, o jusnaturalismo transmuta-se em uma concepção antropológica ou racionalista. Esta surge, sobremaneira, com Hugo Grócio [27] e seu o jusnaturalismo. Com o Renascimento, o direito perde, de maneira progressiva, seu caráter sagrado e, a partir da construção de um sistema de normas que objetivassem a paz social, aparece como regulador racional, capaz de se operar, apesar das divergências nacionais e religiosas [28].

O Direito Natural seria, portanto, o conjunto de princípios da conduta humana que resultariam ou da natureza, ou da divindade, ou, ainda, da própria razão humana, sempre referente à idéia de justiça e que seria superior ao Direito Positivo [29].

Designa-se por Direito Positivo o conjunto de normas jurídicas escritas e não escritas (como o costume jurídico, por exemplo), vigentes em determinado território e, também, na órbita internacional na relação entre os Estados, sendo o Direito Positivo aí aquele estabelecido nos tratados e costumes internacionais [30]. O Direito Positivo de um Estado soberano não se cinge apenas às normas ou previsões hipotéticas, mas representa o conjunto de prescrições jurídicas, no qual se incluem as decisões, sejam administrativas ou judiciais [31].

Embora apareça nos primórdios da civilização ocidental (na Grécia surge como a nómos), o Direito Positivo se consolida como esquema de segurança jurídica a partir do século XIX. [32]. Sobre as raízes desse postulado, anota Ovídio Baptista Silva que, a busca da segurança jurídica foi o ethos que caracterizou toda a filosofia política do século XVII, tendo Hugo Grócio, em sua obra "O Direito da guerra e da paz", esposar sua idéia de ser preferível uma dominação ilegítima a uma guerra civil [33], opinião compartilhada também por Hobbes, que considerava o caos como maior temor das populações, a despeito do jugo da ditadura mais ferrenha [34].

Em síntese, o Direito Positivo seria o conjunto de normas que apresentam formulação, estrutura e natureza culturalmente construídas. É a instituição de um sistema de regras e princípios que ordenam o mundo jurídico, tendo como ponto de partida a norma jurídica e cujo manancial seria o Estado.

Para Tércio Sampaio Ferraz Jr, atualmente, esta dicotomia resta enfraquecida. A atual influência do direito natural, ainda existente, provém do século XVIII onde, sob o império do racionalismo jurídico, era concebido como um conjunto de direitos e deveres aplicados às relações entre os homens de maneira análoga a que se aplica o direito posto pelo Estado formal. [35]

Sucede-se, assim, a evolução de uma ordem jurídica racionalizada que, em meados do século XIX já absorveu, de modo institucional (como em Declarações de Direito), em que o nas primeiras décadas do século XX. Embora mantenha-se até os dias atuais, aquela dicotomia, a nível prático, enfraqueceu-se consideravelmente resumindo-se à discussões acerca da proteção dos direitos invioláveis do homem contra o próprio Estado.

O direito natural na atualidade encontra-se "positivado", a exemplo de algumas normas constitucionais que, com status de cláusulas pétreas, albergam direitos fundamentais do cidadão. Este fato contribuiu para o enfraquecimento da dicotomia ora falada, acarretando a trivialização do direito natural, a partir do momento em que todo direito passou a ser logicamente redutível a direitos naturais.

O fato é que apesar de o direito natural ter perdido sua força, seu objeto ainda continua presente, inclusive na ciência dogmática do direito, quando por exemplo tenta descobrir-lhe substitutos para-universais, como o princípio da legalidade, da autonomia privada, etc. A tudo isto acresça-se a teoria do direito artificial de Vittorio Frosini, que intenta "ressuscitá-lo" e transformá-lo numa "jurisprudencia more geometrico demonstrata".

Tabela 1

Características do Direito Positivo e do Direito Natural

DIREITO POSITIVO

DIREITO NATURAL

É posto (monopolizado pelo Estado)

É pressuposto (aspira superioridade ao Estado)

É valido em determinado tempo (vigência temporal) e em determinado lugar (base territorial)

Possui validade universal e imutável, ou seja, é válido em todos os tempos e para todos os povos

Tem como fundamento a estabilidade e a ordem da sociedade (primado da segurança jurídica)

Liga-se a princípios fundamentais, de ordem abstrata. Corresponde a idéia de justiça

Corresponde à dogmática jurídica

Pode ser associado ao pensamento zetético

3.2. Direito Objetivo e Direito Subjetivo

Outra dicotomia clássica é aquela que contrapõe o direito em sentido objetivo e o direito em sentido subjetivo, ou, simplesmente, direito objetivo e direito subjetivo. O primeiro é o conjunto de normas obrigatórias, como, por exemplo, as do direito civil. No outro caso, quando se alude à capacidade de uma pessoa para determinar obrigatoriamente a conduta de outra, com a expressão "ter direito a.. .", trata-se de direito subjetivo [36]. Afirma Rabenhorst: "A teoria jurídica faz uma distinção importante entre o direito entendido como o conjunto de normas vigentes em uma determinada sociedade (direito objetivo) e o direito enquanto faculdade, poder, prerrogativa, imunidade ou privilégio (direito subjetivo)" [37].

O Direito Romano distinguia esses "dois lados do direito". No conceito jus est norma agendi (o direito é norma de agir) está implícita a face objetiva do direito. A noção subjetiva se traduz na fórmula jus est facultas agendi (o direito é a faculdade de agir). A ordem jurídica compõe-se do direito objetivo, ao reunir prescrições, normas, leis e imperativos jurídicos. O direito objetivo, ao voltar-se sobre situações concretas, gera direitos subjetivos e deveres jurídicos que se opõem ou se articulam reciprocamente.

O direito como norma é chamado de "objetivo", porque, ao surgir, "se objetiva", se põe como uma realidade objetiva, independente da pessoa do observador e irredutível à sua subjetividade.

Já quando afirmamos que "alguém tem um direito", isso quer dizer que alguém possui direitos subjetivos, que podem (daí a expressão faculdade) ser exercidos, em uma relação jurídica [38].

Desse modo, explica Savigny: "O direito considerado na vida real, envolvendo e penetrando por todos os lados nosso ser, nos aparece como um poder do indivíduo. Nos limites desse poder, reina a vontade do indivíduo, e reina com o consentimento de todos. A tal poder ou faculdade nós chamamos ´direito´, e alguns, ´direito em sentido subjetivo´". [39]

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

3.3. Direito Público x Direito Privado

Quando focalizamos o direito como conjunto de normas vigentes para regular uma determinada sociedade – direito positivo, estabelecemos uma divisão conceitual dos vários ramos dogmáticos que o compõem. Assim, referimo-nos a célebre divisão dicotômica do Direito em Direito Público e Direito Privado.

O Direito Romano apontou, com muita propriedade, tal distinção, referindo-se ao Jus Publicum e ao Jus Privatum. O primeiro ocupava-se do governo do Estado e das relações entre os cidadãos e o Estado. O Jus Privatum tinha por objetivo regular as relações entre os cidadãos, entre os particulares, enfim. Tal dicotomia foi seguida pelo grande Savigny, para quem, no Direito Público, o Estado é o fim, e no Direito Privado, o indivíduo é o fim.

Embora sólida em suas bases, tal dicotomia não desfruta mais do antigo prestígio. Dizer-se que no Direito Público há o interesse do Estado e que no Direito Privado há o interesse da pessoa, como duas realidades estanques, incomunicáveis, é afirmação que vem encontrando severas críticas, pois, na verdade, não pode deixar de haver pelo menos uma pequena parcela de interesse do particular nos negócios públicos e, em contrapartida, uma pequena parcela de interesse do Estado nos direitos privados.

De tal sorte, alguns autores falam de descabimento técnico da dicotomia [40], ao passo em que outros preferem criar um terceiro bloco, sui generis, "intermediário", "misto" ou "difuso" [41], em que se inserem os chamados direitos fundamentais da Humanidade, cuja tutela jurídica está a ampliar-se.

Veremos abaixo, uma proposta de divisão do Direito em Público, Privado e Difuso, com base em Rizzatto Nunes [42] e efeito meramente didático [43] (Tabela 2).

Cabe, ainda, antes de fazermos a disposição dos ramos referidos, tecer alguns comentários acerca do problema da existência do direito na ordem internacional. Poderíamos falar, assim, de outra dicotomia: a do direito interno em face do direito internacional.

Com efeito, As normas jurídicas têm seu campo de abrangência limitado por espaços territoriais, em nível nacional, pelas fronteiras e extensões ficcionais do Estado, o que caracteriza o princípio jurídico da territorialidade (existência do direito em uma base territorial, entendida como elemento constitutivo de um Estado) [44].

Segundo Rizzatto Nunes, com o avanço das relações internacionais, os Estados modernos passaram a admitir, circunstancialmente, a aplicação de leis estrangeiras em seus territórios [45]; Haveria, assim, a quebra do princípio da territorialidade e adoção de um novo: o da extraterritorialidade [46].

Assim, a Lei de Introdução ao Código Civil (LICC) [47], estipula, em seu art. 8º, que, para qualificar os bens e regular as relações a eles concernentes, aplicar-se-ão as normas jurídicas do país em que estiverem situados, ao passo em que o art. 9º, do mesmo diploma legal dispõe que, quanto às obrigações, valem as normas jurídicas do país em que elas forem constituídas.

Existem duas correntes que tentam explicar o fenômeno direito na ordem internacional: a monista e a dualista.

A corrente monista defende a unicidade da ordem jurídica, não concebendo um sistema jurídico interno absolutamente separado do direito internacional. Sedimenta-se na idéia de que o direito é um só, quer se apresente nas relações de um Estado, quer nas relações internacionais [48].

A corrente dualista, cujos principais representantes são Triepel, Anzilotti e Oppenheim, enfoca o direito internacional e o direito interno dos Estados como sistemas absolutamente independentes e distintos, de forma que a validade jurídica de um em nada interfere na do outro. A validade do direito interno não se condiciona à sintonia junto ao direito na ordem externa. De modo que o direito internacional e o direito interno confrontam-se, um com o outro, como mero fato e não como normas jurídicas colidentes.

Uma das bases teóricas do dualismo é a diversidade das fontes de produção normativa das normas jurídicas internas e internacionais. Outra base teórica refere-se aos destinatários das normas: as normas internacionais são formuladas pelos Estados, em conjunto, para serem aplicadas aos próprios Estados; as normas internas são formuladas pelo Estado, unilateralmente, para ser aplicadas aos indivíduos, súditos do Estado.

Em âmbito internacional, o Estado apresenta-se como um membro da sociedade internacional. Em âmbito interno, o Estado apresenta-se, sobretudo, como ente soberano, legitimado a impor regras aos seus indivíduos.

Assim, a obediência dos Estados frente aos pactos internacionais assumidos advém do princípio pacta sunt servanda, ao passo que os súditos do Estado devem cumprir as normas por este imposta em virtude da soberania de que está investido, externada pelo seu poder [49].

Tabela 2

Os Ramos do Direito: Direito Público, Direito Privado e o "Direito Difuso" [50]

No quadro abaixo, uma visão geral dos principais ramos da clássica divisão, ampliada pela dimensão do tertium gens chamado por Rizzatto Nunes de "Direito Difuso".

DIREITO PÚBLICO

DIREITO PRIVADO

DIREITO "DIFUSO"

Direito Constitucional

Direito Civil

Direito do Trabalho

Direito Administrativo

Direito Comercial

Direito Previdenciário

Direito Tributário

-

Direito Econômico

Direito Penal

-

Direito Ambiental

Direito Processual

-

Direito do Consumidor

Direito Eleitoral

-

Direito Internacional Privado

Direito Internacional Público

-

-

3.4. Direito Material e Direito Processual

Poucos autores recorrem a essa distinção nos manuais de Introdução ao Direito, cabendo crédito ao opúsculo de Hugo de Brito Machado, Uma Introdução ao Estudo do Direito, que trata de diferençar o direito material do processual [51].

Dentre os autores estrangeiros, podemos anotar a presença de tal dicotomia em Werner Goldschmidt [52] e Torres Lacroze [53].

Tal dicotomia, em verdade, só passa a ser enquadrada quando do estudo da Teoria Geral do Processo.

Direito material é o corpo de normas que disciplinam as relações jurídicas referentes a bens e utilidades da vida em seus respectivos ramos dogmáticos (Civil, Penal, Constitucional, Tributário etc). De tal sorte, as normas de direito material (ou substancial) são aquelas que disciplinam imediatamente a cooperação entre pessoas e os conflitos de interesses ocorrentes na sociedade, escolhendo qual dos interesses conflitantes, e em que medida, deve prevalecer e qual deve ser sacrificado [54].

Já o Direito Processual liga-se à regulação da atividade do Estado (com respeito à sua função jurisdicional) e das partes litigantes, bem assim o modo como essa atividade se desenvolve. Subdivide-se em Processual Civil, Processual Penal, Administrativo e do Trabalho.

O Direito Processual disciplina a imposição da regra jurídica específica e concreta (Direito Material) pertinente a determinada situação litigiosa. Assim, as normas de direito processual, pela sua característica instrumental, são aquelas que disciplinam a aplicação das normas substanciais (materiais), seja regulando os meios de tornar estas efetivas e ainda as vias adequadas para provocar o seu cumprimento e efetivação.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Gustavo Rabay Guerra

Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), doutor e pesquisador em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UNB), professor do Centro Universitário de Brasília (UNICEUB) e advogado em Brasília.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUERRA, Gustavo Rabay. A teoria jurídica fundamental:: algumas especulações acerca do conceito de Direito (em linhas propedêuticas). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 341, 13 jun. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5329. Acesso em: 19 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos