A intervenção do judiciário na efetivação das políticas públicas constitucionalmente garantidas à luz da Teoria da Separação dos Poderes.

A garantia do mínimo existencial versus a reserva do possível

22/11/2016 às 20:27
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As políticas públicas têm sido objeto de discussão no que diz à intervenção do Judiciário, no sentido de que o Judiciário não teria competência intervir nesta seara. Há o conflito de teorias a favor e contra, gerando impasse nas esferas do poder estatal.

Resumo: As políticas públicas, elevadas na Constituição Federal à categoria de direitos fundamentais, têm sido objeto de muita discussão no que se diz à intervenção do Judiciário, no sentido de que o Judiciário não teria competência para dirimir conflitos provenientes de políticas públicas. Aqueles que defendem a Administração invocam a Teoria da Separação dos Poderes e a reserva do possível. Por outro lado, os que defendem tal intervenção baseiam na garantia do mínimo existencial. De fato, a Constituição Federal de 1988 criou o Estado social, o que tem ocasionado grandes problemas no momento da implementação das políticas públicas, gerando então o referido impasse nas esferas do poder estatal.

Palavras-chave: Direitos fundamentais. Intervenção do Judiciário. Políticas Públicas. Separação dos Poderes. Mínimo Existencial. Reserva do Possível.

1. Introdução

            O Brasil passou por muitos modelos de Estado até que em 1988, o constituinte brasileiro, de vez, rompeu com o modelo de Estado liberal e caminhou para o modelo de Estado social. A Constituição da República de 1988 deu um grande salto ao estabelecer que a República Federativa constitui em Estado Democrático de Direito e que os objetivos fundamentais são: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, como se verifica nos artigos 1º e 3º daquela Carta Magna.

            Passada a euforia com a ampliação em massa dos direitos fundamentais pela Constituição de 88, a sociedade brasileira passa a se deparar com promessas constitucionais na maioria vãs, pois o Estado não consegue implementar o mínimo prometido naquela carta magna, tais como o direito à saúde, educação, moradia, meio ambiente saudável, etc.

            O Judiciário surge nesse contexto caótico com a incumbência de fazer com que o Executivo e o Legislativo entendam que o Judiciário faz parte da República e que foi criado e mantido na CR/88 para dar eficácia aos direitos fundamentais previstos nessa Constituição, que por sua vez não constituem meras promessas de constituintes eufóricos por uma mudança, mas sim uma mudança promovida pela sociedade brasileira cansada dos desmandos, corrupções e desvios de dinheiro dos representantes do povo.

            Assim, o Judiciário passa a ser figura de grande destaque na garantia de que a sociedade não ficaria órfã caso os Executivo e o Legislativo não cumpram com os ditames constitucionais.

            Por outro lado, o Executivo se defende afirmando que não incumbe ao Judiciário fazer políticas públicas, configurando clara interferência do judiciário nas competências do executivo, em afronta ao Principio da Separação dos Poderes.

            Neste artigo, busca-se demonstrar a legitimidade de intervenção do Judiciário na efetiva implementação das políticas públicas, erigidas ao status de direitos fundamentais, vez que previstos na Constituição da República Federativa do Brasil.

2. Teoria da Separação dos Poderes

2.1. Breve Histórico

             A separação de poderes é um dos princípios fundamentais da democracia moderna. Surgiu como forma de evitara a concentração absoluta de poder nas mãos do soberano, comum no Estado absoluto que precede as revoluções burguesas e fundamenta-se com as teorias de John Locke e de Montesquieu. Fora criado, portanto, como um mecanismo em que se evita esta concentração de poderes, onde cada uma das funções do Estado seria de responsabilidade de um órgão ou de um grupo de órgãos.

            Historicamente falando, foi no final da Idade Média e durante o Renascimento, que o ambiente político e social tornou-se propício para o pleno desenvolvimento da teoria da separação dos poderes, ainda que seus inspiradores e precursores remontem à época da Grécia Antiga. Com a diminuição das guerras desse período, o poder da nobreza, da Igreja – alto clero e do rei foram enfraquecendo-se, pois que não sendo necessário mais um governo centralizado para a expansão territorial, haveria espaço para uma mais ampla participação da sociedade, o que implicava a descentralização do poder. De outro lado, a burguesia prosperava economicamente e fortalecia seu poder. A nobreza e o alto clero, através do rei, voltam-se para a burguesia cobrando-lhe exorbitantes tributos. Como retaliação, a burguesia reage, toma o poder e derruba o “Antigo Regime”. Principalmente através dos chamados filósofos iluministas, a burguesia e todos aqueles setores envolvidos na Renascença, puderam sustentar seus interesses e concepções para solapar o antigo regime.

            A concepção da separação dos poderes, portanto, surge neste contexto, principalmente através de Locke e Montesquieu. Posteriormente esta concepção seria enriquecida através da experiência dos Estados Independentes da América do Norte. Tais filósofos culminaram no modelo tripartite conhecido atualmente, que consiste em atribuir a três órgãos independentes e harmônicos entre si as funções Legislativa, Executiva e Judiciária.

2.2. A Teoria da Separação dos Poderes no Ordenamento Jurídico Brasileiro

            No Brasil, o princípio da separação dos poderes sempre foi obscurecido pela hipertrofia do Executivo.

            Já no Brasil Império tínhamos o Poder Moderador que se sobrepunha aos demais três poderes, formando um sistema original de “quadripartição” dos poderes do Estado. Nas origens da formação do Estado brasileiro está também o patrimonialismo, vindo de Portugal, que consiste numa forma de governar na qual o poder é fortemente centralizado nas mães do governante e o patrimônio público é confundido com o patrimônio particular. O populismo e o personalismo peculiares à política brasileira também favoreceram a concentração dos poderes nas mãos do governante, ou seja,  no Executivo. A ditadura também foi um elemento que favoreceu à hipertrofia do Executivo. Seja de fato e/ou de direito, o poder político de governar, de legislar e de julgar sempre esteve concentrado em um maior ou menor grau no Poder Executivo.

            A Constituição da República Federativa do Brasil predispõe, em seu artigo 2º, que são poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Trata-se de um princípio fundamental do ordenamento jurídico brasileiro que o legislador constituinte originário consagrou, na Carta Política de 1988, expressamente como cláusula pétrea no artigo 60, § 4º, III, que estabelece:

Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:

§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I - a forma federativa de Estado;

II - o voto direto, secreto, universal e periódico;

III - a separação dos Poderes;

IV - os direitos e garantias individuais.

(grifo nosso)[1]

            A divisão de poderes fundamenta-se em dois elementos: a) especialização funcional, significando que cada órgão é especializado no exercício de uma função; b) independência orgânica, significando que, alem da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação.

            Tecidas estas breves considerações, segue a analise do modelo tripartite e as funções típicas e atípicas de cada um.

2.3 Poder Legislativo

            Ao Poder Legislativo cabe legislar e fiscalizar, sendo ambas igualmente importantes. Exerce também alguns controles que, segundo Alexandre de Moraes, pode ser o político-administrativo e o financeiro-orçamentário. Pelo primeiro controle, cabe a análise do gerenciamento do Estado, podendo, inclusive, questionar atos do Poder Executivo. Ainda como atribuição constitucional, temos tutelada no artigo 58º, § 3º a previsão de criação de Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI), pela Câmara de Deputados e do Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, com poderes de investigação próprios das autoridades judiciais e daqueles previstos nos respectivos regimentos internos das Casas Legislativas.

            Em relação ao segundo controle, financeiro-orçamentário, previsto dos artigos 70 a 75 da Constituição Federal, será exercida pelo Congresso Nacional com abrangência pública e privada, de acordo com o parágrafo único do artigo 70, incluído pela Emenda Constitucional nº 19/98, onde estabelece que preste conta qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelo qual a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigação de natureza pecuniária.   

            Gilmar Mendes destaca que o Poder Legislativo, de atípico também exerce funções de administrar e de julgar, in verbis:

O Poder Legislativo, porém, de modo não típico, também exerce funções de administrar (ao prover cargos da sua estrutura ou atuar o poder de polícia, p. ex.) e de julgar (o Senado processa e julga, por crimes de responsabilidade, o Presidente da República e o Vice-Presidente da República, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes das três Forças Armadas, nos crimes de mesma natureza conexos com os praticados pelo Chefe do Executivo; também processa e julga, por crimes de responsabilidade, os Ministros do Supremo Tribunal Federal, os membros dos Conselhos Nacionais da Justiça e do Ministério Público, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União).[2]            

2.4 Poder Executivo

            Conforme leciona José Afonso da Silva, a expressão poder executivo ora exprime a função, ora o órgão. De modo geral, pode-se dizer que se trata de órgão constitucional que tem por função a prática de atos de chefia de estado, de governo e de administração.

            No Brasil é exercido pelo Presidente da República juntamente com os Ministros que por ele são indicados, aos quais competem os atos de chefia de Estado, quando exerce a titularidade das relações internacionais e de governo, quando assume as relações políticas e econômicas assumidas no plano interno, típico do sistema presidencialista adotado no Brasil.

            Dada a função precípua inerente ao poder Executivo, qual seja administrar o Estado, através da observação das regras emanadas do poder Legislativo, não raras vezes excursiona nos campos de atuação de outra esfera de poder.

            Dessa forma, temos as chamadas funções atípicas, em que se observa o Executivo exercendo, por exemplo, a possibilidade de adoção do instituto das Medidas Provisórias, com força de Lei, conforme determina o artigo 62 da Magna Carta de 1988:

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Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.

            Podemos também citar, como atribuição atípica, o julgamento de seus servidores no contencioso administrativos.

            Gilmar Mendes destaca que o exercício das atribuições do Poder Executivo há de se fazer em harmonia com os demais Poderes, ainda que se verifiquem, eventualmente, instantes históricos nos quais o Poder Executivo exerce certo predomínio na vida política nacional. Como já mencionado, é recorrente na realidade política brasileira certa hiperpotencialização do executivo, centrado na figura do Presidente da República

           

2.5 Poder Judiciário

            Ao Poder Judiciário cabe a função jurisdicional, que consiste na aplicação da lei a um caso concreto, que lhe é apresentado como resultado de um conflito de interesses. Por outro lado, também possuem o Poder Judiciário, atribuições atípicas de natureza administrativa e legislativa, de forma que, em relação ao primeiro, exerce a administração de atos relativos aos seus servidores, por exemplo, licenças e férias de seus membros de acordo com o artigo 96, I, f da CF e o provimento de cargos de acordo com o artigo 96, I, c, também da CF. Como atribuição legislativa tem a edição de normas regimentais, tutelada no artigo 96, I, a da CF, onde fica estabelecida a competência do Poder Judiciário a elaboração de seus regimentos internos, observando as normas processuais e as garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento de seus órgãos jurisdicionados e administrativos.

2.6. Sistema de Freios e Contrapesos

            Como decorrência da própria separação e da independência das funções desenvolvidas no âmbito do Estado, Montesquieu criou o Sistema de Freios e Contrapesos. Este Sistema significava a limitação do poder pelo próprio poder; ou seja, cada poder deveria ser autônomo e exercer a função que lhe fora atribuída, ao passo que o exercício desta função deveria ser controlado pelos demais poderes.

            O Sistema de Freios e Contrapesos é formado pela “faculdade de estatuir” e pela “faculdade de impedir”, possibilitando a influência mútua e o controle recíproco entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo. A “faculdade de estatuir” deve ser interpretada como o poder de ordenar ou corrigir o que foi por outro ordenado; enquanto a “faculdade de impedir” consiste no poder de tornar nula a ação efetuada por outrem.

            A aplicação das faculdades possibilita ao Legislativo examinar o modo como foram executadas as leis que elaborou, bem como, permitem ao Executivo o poder de frear iniciativas que tornariam o Legislativo em um poder despótico. O Poder Judiciário, por sua vez, não tem faculdade atribuída, pois para Montesquieu, sua função era considerada restrita.

            Hodiernamente, o principio da Separação dos Poderes não configura mais aquela rigidez de outrora. Segundo José Afonso da Silva, os mecanismos de freios e contrapesos são caracterizadores do que se chama hoje de harmonia entre os poderes. Esta se verifica primeiramente pelas normas de cortesia no trato recíproco e no respeito às prerrogativas e faculdades a que mutuamente todos têm direito. Há interferências, que visam ao estabelecimento de um sistema de freios e contrapesos, à busca do equilíbrio necessário à realização do bem da coletividade e indispensável para evitar o arbítrio e desmando de um em detrimento do outro.[3]

3. O dever de prestar no atual Estado Democrático de Direito.

            A transição entre o Estado liberal e o Estado social promove alteração substancial na concepção do Estado e de suas finalidades. Nesse quadro, o Estado existe para atender ao bem comum e, consequentemente, satisfazer direitos fundamentais e, em última análise, garantir a igualdade material entre os componentes do corpo social. Agora, ao dever de abstenção do Estado substitui-se seu dever a um dare, facere, praestare, por intermédio de uma atuação positiva, que realmente permita a fruição dos direitos de liberdade da primeira geração, assim como dos novos direitos. Trata-se de objetivo fundamental da República Federativa, elencado no Artigo 3º da Magna Carta.

            Nesse contexto, para atingir esses objetivos fundamentais o Estado tem que se organizar no facere e praestare, incidindo sobre a realidade social. É aí que o Estado social de direito transforma-se em Estado democrático de direito.

            Desse modo, formulado o comando constitucional ou legal, impõe-se ao Estado promover as ações necessárias para a implementação dos objetivos fundamentais. E o poder do Estado, embora uno, é exercido segundo especialização de atividades: a estrutura normativa da Constituição dispõe sobre suas três formas de expressão: a atividade legislativa, executiva e judiciária.

            É daí que surgem os direitos à prestação, que exigem que o Estado aja para atenuar desigualdades, com isso estabelecendo moldes para o futuro da sociedade. Partem do suposto de que o Estado deve agir para libertar os indivíduos das necessidades, figurando direitos de promoção, surgindo da vontade de estabelecer uma igualdade efetiva e solidária entre todos os membros da comunidade política.

            Os direitos a prestação supõem que, para a conquista e manutenção da liberdade, os Poderes Públicos devem assumir comportamento ativo na sociedade civil. O traço característico dos direitos a prestação está em que se referem a uma exigência de prestação positiva, e não de uma omissão. Na relação jurídica, ao direito prestacional corresponde uma obrigação de fazer ou de dar.[4]

            Dessa forma, a ação do Estado, imposta pelo direito a prestação, pode-se referir quer a uma prestação material, que emana do executivo ou legislativo, quer a uma prestação jurídica, oriunda do judiciário.

3.1. A omissão do executivo na efetiva entrega dos direitos fundamentais prestacionais e a consequente interferência do judiciário: a Teoria da Reserva do Possível x a garantia do Mínimo Existencial.

            A eficácia dos direitos fundamentais prestacionais e sua justiciabilidade talvez seja o maior problema a ser resolvido na atual conjuntura do ordenamento jurídico.. Isto porque as Cartas Constitucionais consagram diversos direitos a serem outorgados pelo Estado aos indivíduos. Muitos deles sem qualquer política pública para sua efetiva implementação, outros com implementação precária e, por fim, alguns que já vem sendo prestados razoavelmente.

            A chave do problema reside em indicar caminhos que consigam harmonizar o princípio da separação dos poderes, a omissão dos poderes legislativo e executivo com a efetiva entrega dos direitos fundamentais prestacionais, e a consequente interferência do judiciário como meio garantidor da efetiva prestação desses direitos.

            Nesse sentido é que surge a ideia de que os três poderes devem harmonizar-se para que os objetivos fundamentais do Estado sejam alcançados. E nessa jornada “harmonizadora”, cabe ao Poder Judiciário investigar o fundamento de todos os atos estatais a partir dos objetivos fundamentais inseridos na Constituição, de modo que essa investigação acaba por ser mal interpretadas pelos outros poderes, como uma afronta ao princípio da separação dos poderes.

            Em toda atividade política, também chamada de políticas públicas, exercida pelo Legislativo e pelo Executivo deve compatibilizar-se com a Constituição, e assim cabe ao Poder Judiciário analisar, em qualquer situação e desde que provocado, o que se convencionou chamar de “atos de governo” ou “questões políticas”, sob o prisma do atendimento aos fins do Estado (art. 3º da CF), ou seja, em última análise à sua constitucionalidade.

            Desta forma, surge uma nova ordem, denominada de judicialização da política, que conta com o juiz como co-autor das políticas públicas, restando claro que sempre que os demais poderes comprometerem a integridade e a eficácia dos fins do Estado — incluindo as dos direitos fundamentais, individuais ou coletivos – o Poder Judiciário deve atuar na sua função de controle.

            Corroborando com esse entendimento, assim tem decido nossos tribunais. O Supremo Tribunal Federal reconheceu o dever do Estado de fornecer gratuitamente medicação a portadores do vírus HIV, sob o fundamento de que os poderes públicos devem praticar políticas sociais e econômicas que visem aos objetivos proclamados no art. 196 da CF, invocando precedentes consolidados da Corte.[5] O mesmo entendimento foi adotado pelo Superior Tribunal de Justiça em diversas oportunidades, salientando-se o direito à integralidade da assistência à saúde a ser prestado pelo Estado, de forma individual ou coletiva.[6] O Tribunal, em outra decisão, afirmou que a Administração Pública se submete ao império da lei, até mesmo no que toca à conveniência e oportunidade do ato administrativo: uma vez demonstrada a necessidade de obras objetivando a recuperação do solo, cumpre ao Poder Judiciário proceder à outorga da tutela específica para que a Administração destine verba própria do orçamento para esse fim.[7]

            Mas o posicionamento mais representativo a favor da intervenção do Poder Judiciário no controle de políticas públicas vem do Supremo Tribunal Federal, na ADPF 45-9, sendo representado pela decisão monocrática do ministro Celso de Mello, que assim se pronunciou:

É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário e nas desta Suprema Corte, em especial — a atribuição de formular e de implementar políticas públicas (JOSÉ CARLOS VIElRA DE ANDRADE, "Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976", p. 207, item n. 05, 1987, Almedina, Coimbra), pois, nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo. Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático. Cabe assinalar, presente esse contexto — consoante já proclamou esta Suprema Corte — que o caráter programático das regras inscritas no texto da Carta Política "não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei do Estado" (RTJ 175/1212-1213, Rel.Min. CELSO DE MELLO)”

            Em contra partida, o que muito se vê nas demandas judiciais pleiteando a efetivação de tais prestações materiais de cunho fundamental é que em resposta a essa exigência e fiscalização judicial, o executivo apresenta como defesa a Reserva do Possível. Este princípio é uma construção jurídica germânica originária de uma ação judicial que objetivava permitir a determinados estudantes cursar o ensino superior público embasada na garantia da livre escolha do trabalho, ofício ou profissão.  Neste caso, ficou decidido pela Suprema Corte Alemã que, somente se pode exigir do Estado a prestação em benefício do interessado, desde que observados os limites de razoabilidade. Os direitos sociais que exigem uma prestação de fazer estariam sujeitos à reserva do possível no sentido daquilo que o indivíduo, de maneira racional, pode esperar da sociedade, ou seja, justificaria a limitação do Estado em razão de suas condições sócio-econômicas e estruturais.

            Por outro lado, como se pode observar, a meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em particular (artigo 7º, IV), pode ser resumida, como já exposto, na promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as condições de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de existência, que seria o conjunto de bens e utilidades básicas imprescindíveis para uma vida com dignidade, tais como a saúde, a moradia e a educação fundamental. Violar-se-ia, portanto, o mínimo existencial quando da omissão na concretização de direitos fundamentais inerentes à dignidade da pessoa humana, onde não há espaço de discricionariedade para o gestor público.

            Dessa forma, ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial), estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se deverá investir. O mínimo existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias é capaz de conviver produtivamente com a reserva do possível, não sendo um causa impeditiva da efetiva prestação do outro.

            Portanto, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou procederem com a clara intenção de neutralizar, comprometendo a eficácia dos direitos sociais, econômicos e culturais, afetando, como decorrência causal de uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamental, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência do indivíduo, aí, então, justificar-se-á, como precedentemente já enfatizado — e até mesmo por razões fundadas em um imperativo ético-jurídico — a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar, a todos, o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo Estado.[8]

4. Conclusão 

            A Carta Magna preocupou-se em elevar determinados direitos a categoria de direito fundamental para que, através dessas garantias, fosse possível que toda a sociedade tivesse acesso a condições mínimas de existência. Na esteira, estas normas fundamentais são autoaplicáveis, não sendo necessário deixar à conta do legislador ou da administração pública a responsabilidade pela satisfação plena de tais direitos. 

            Note-se que com a teoria do grau mínimo de efetividade dos direitos a prestação material, busca-se amenizar o quadro caótico e frustrante gerado pela não satisfação de tais garantias, vez que a Administração Pública, à mercê das inúmeras promessas feitas, apresenta incontáveis obstáculos para efetivação dos mesmos.  Seja alegando a teoria da Reserva do Possível, o Principio de Separação de Poderes, seja apresentando uma situação de crise econômica sensível, a verdade é que enquanto puder se escusar de prestar satisfatoriamente estas garantias, a administração pública o vai fazer.

            O Princípio da Reserva do Possível, construção de origem germânica, consiste em uma falácia decorrente de um Direito Constitucional Comparado equivocado, na medida em que a situação social brasileira não pode ser comparada àquela dos países membros da União Européia. Deve-se lembrar que os integrantes do sistema jurídico alemão não desenvolveram seus posicionamentos para com os direitos sociais num Estado de permanente crise social, com milhões de cidadãos socialmente excluídos, um grande contingente de pessoas que não acha uma vaga nos hospitais mal equipados da rede pública, crianças e jovens fora da escola, deficiência alimentar, subnutrição e morte.

            Desta feita, ao contrario do que se pretende incutir no ordenamento jurídico brasileiro, a intervenção do judiciário nas questões relativas às prestações materiais de direitos fundamentais em nada afrontam ao Principio da Separação dos Poderes, vez que se configura em mecanismo relativo ao sistema de freios e contrapesos necessário para a defesa dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.

5. Referências Bibliográficas

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 21ª ed. São Paulo: Atlas, 2007.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 38 ed. São Paulo: Malheiros, 2015.

RIBEIRO, Lúcio Ronaldo Pereira. Teorias da separação dos poderes. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, I, n. 0, fev 2000. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=2074>. Acesso em jun 2015.


[1] Constituição Da República Federativa Do Brasil De 1988.

[2] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 7ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2012, p.1186.

[3] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 38 ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p.112.

[4] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012. P.234.

[5] RE 271.286 e AgRg 271.286

[6] REsp 212346 no Ag. 842866; REsp 814076; REsp 807683; AgRg no REsp 757012; REsp 684646; REsp 658323; REsp 625329, MS 8895; REsp 509753 MS8740; REsp 430526; REsp 338373.

[7] RSTJ 187/219, 2ª Turma.

[8] Pronunciamento do Ministro do STF, Celso de Mello.

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Sobre a autora
Fernanda de Sousa Dias

Acadêmica de Direito do Bloco X do Curso Bacharelado em Direito da Universidade Federal do Piauí.

Informações sobre o texto

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