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Da desigualdade legítima

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25/07/2004 às 00:00
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2. DESIGUALDADE LEGÍTIMA

Ao analisar o artigo 5º, caput da Constituição Federal e o próprio conteúdo do mesmo, percebe-se que, de um lado, o próprio ditame constitucional impede a desequiparação por motivo de raça, sexo, trabalho, credo religioso e convicções políticas; e, de outro, evidencia traços característicos de pessoas, coisas ou situações que podem dar origem a desigualdades.

Como vimos, a Constituição Federal de 1988 também consagrou o princípio da igualdade, prevendo a igualdade de tratamento a todos perante a lei, em conformidade com os critérios albergados pelo ordenamento jurídico. Dessa forma, o que se veda são diferenciações arbitrárias, somente sendo lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho ratifica:

O princípio da igualdade não proíbe de modo absoluto as diferenciações de tratamento. Veda apenas aquelas diferenciações arbitrárias. Assim, o princípio da igualdade no fundo comanda que só se façam distinções com critérios objetivos e racionais adequados ao fim visado pela diferenciação. [19]

Segundo Canotilho existe uma violação arbitrária da igualdade jurídica quando a disciplina jurídica não tiver um sentido legítimo e nem estabelecer diferenciação jurídica sem um fundamento razoável e sério.

O mesmo autor complementa:

O princípio da igualdade proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem justificação razoável, segundo critérios de valor objetivo constitucionalmente relevante. Proíbe também que se tratem por igual situação essencialmente desigual. E proíbe ainda a discriminação: ou seja, as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjetivas. [20]

Portanto, para verificar se as desequiparações existentes nas pessoas, coisas ou situações ofendem ou não o principio em estudo é necessário que seja analisado alguns critérios, a saber:

a)verificar qual é o elemento diferenciador;

b)se há justificação lógica e racional que autoriza tal diferenciação ;

c) se esta justificativa é compatível com os ditames expostos na Constituição Federal.

Fica sublinhado que não basta a exigência de pressupostos fáticos diversos para que a lei distinga situações, pessoas ou coisas, sem ofensa à isonomia. Também não é qualquer fundamento lógico e racional que autoriza a diferenciação; é necessário e indispensável que esta se oriente pelas linhas de interesses prestigiados pela nossa Constituição.

Conforme discorre Celso Antônio Bandeira de Mello:

Tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é adotado como critério discriminatório; de outro lado, cumpre verificar se há justificativa racional, isto é, fundamento lógico, para, à vista do traço desigualador acolhido, atribuir o especifico tratamento jurídico construído em função da desigualdade proclamada. Finalmente, impende analisar se a correlação e o fundamento racional abstratamente existente é, in concreto, afinado com os valores prestigiados no sistema normativo constitucional. A dizer: se guarda ou não harmonia com eles. [21]

Neste mesmo sentido, esclarece Pimenta Bueno, em Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império: "A lei deve ser uma e a mesma para todos; qualquer especialidade e prerrogativa que não for fundada só e unicamente em uma razão muito valiosa do bem público será uma injustiça e poderá ser uma tirania". [22]

Para que não haja agravos à isonomia, o traço desigualador adotado deve residir na pessoa, coisa ou situação a ser diferenciada, não pode ser sujeita a desigualdade se o traço diferencial não existir nelas mesmas. Como também a lei não pode direcionar o critério diferencial para uma pessoa determinada singularmente.

A lei que singulariza o destinatário agride de forma nítida o princípio constitucional da igualdade.

Sem contrariar a isonomia a norma pode alcançar um determinado grupo de pessoas ou até mesmo um indivíduo, desde que seja um sujeito indeterminado, como conceder um benefício para o primeiro que fizer determinada invenção.

Percebe-se que o princípio em estudo, além de garantir constitucionalmente a igualdade entre os homens, tem como finalidade proibir de forma implícita o favoritismo e as perseguições.

Importante destacar, de forma breve, que a lei pode ser geral ou individual – o primeiro caso se caracteriza quanto atinge uma categoria de pessoas; e o segundo, quando atinge um único sujeito.

Celso Antônio Bandeira de Mello, em O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, entende, em contraposição ao pensamento de Norberto Bobbio, que a lei classificada como abstrata contém como uma de suas características, além da reprodução da situação, a generalidade. Para ele, a norma abstrata é simultaneamente geral, embora deixe claro que a generalidade nada predica quanto à abstração, ou concretização da norma.

O referido autor aduz ao tema ainda outras considerações relativas à natureza e abrangência das normas, que seria útil reproduzir: [23]

"a) a regra simplesmente geral nunca poderá ofender a isonomia pelo aspecto da individualização abstrata do destinatário, vez que seu enunciado é, de si mesmo, incompatível com tal possibilidade;

b) a regra abstrata também jamais poderá adversar o principio da igualdade no que concerne ao vício de atual individualização absoluta, ou definitiva, pois a renovação da hipótese normativa acarreta sua incidência sempre sobre uma categoria de indivíduos, ainda que, à época de sua edição, exista apenas uma pessoa integrando-a;

c) a regra individual poderá ou não incompatibilizar-se com o princípio da igualdade no que atina à singularização atual absoluta do sujeito. Será conveniente com ele se estiver reportada a sujeito futuro, portanto atualmente indeterminado e indeterminável. Será transgressora da isonomia se estiver referida a sujeito atual, determinado e determinável;

d) a regra concreta, igualmente, será ou não harmonizável com a igualdade. Sê-lo-á, quando, ademais de concreta, for geral. Não o será quando, sobre concreta, for, no presente, individual".

Suponha-se que uma norma estabelecesse que, após determinado período, os sujeitos alcançados por ela seriam beneficiados por um período de férias, assim como estabelece o artigo 130 da Consolidação das Leis do Trabalho, que dispõe: o empregado adquire o direito às férias após completar 12 meses de trabalho. Analisando esta norma, constata-se que o fator "tempo" em nada ofende o princípio da isonomia, apenas demarcou-se uma data para que, a partir dela, TODOS os empregados tenham direito às férias.

Como já afirmado, o fator discriminatório deve residir na própria pessoa, coisa ou situação. "O tempo nada mais faz que recobrir acontecimento ou acontecimentos que são eles mesmos as próprias raízes da desequiparação realizada". [24]

Portanto, a norma não pode considerar o "tempo" como fator determinante para justificar de forma legal a desigualdade entre as pessoas. O que pode tomar como elemento discriminatório é a situação, o fato delimitado pelo tempo.

Esclarece Celso Antônio Bandeira de Mello que:

O princípio da igualdade preceitua que sejam tratadas igualmente as situações iguais e desigualmente as desiguais. Donde não há como desequiparar pessoas e situações quando nelas não se encontram fatores desiguais. E, por fim, consoante do averbado insistente, cumpre ademais que a diferenciação do regime legal esteja correlacionada com a diferença que se tomou em conta. [25]

Ademais, há que se recordar que um dos aspectos de análise para verificar se uma norma agride ou não o princípio da igualdade é a existência ou não de correlação lógica entre o fator da discriminação e a desigualdade estabelecida, ou seja, tem-se que identificar qual é o fator da desigualdade e se há justificativa lógica e racional para tal diferenciação.

De forma simples e clara, explica Alexandre de Moraes:

Para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não-discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com os critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, cuja exigência deve aplicar-se em relação à finalidade e efeitos da medida considerada, devendo estar presente por isso uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionalmente protegidos. [26]

O fator de discriminação pode ser qualquer elemento existente na coisa, pessoa ou situação, todavia necessita ter correlação lógica com a diferenciação que dele resulta.

Como exemplo deste aspecto: suponha-se lei que regulamentasse que pessoas negras da empresa X não pudessem ter folga aos domingos. A ausência da correlação entre o fator de discrímen e os efeitos que dele decorrem é vista, nesse caso, de forma nítida, agredindo flagrantemente o princípio de isonomia.

Há que se considerar também que a correlação lógica aludida nem sempre é absoluta; basta considerar um momento histórico e parecerá justificável vedar às mulheres o acesso a certas funções, sendo que, em outras épocas, inexiste motivo racionalmente subsistente que convalide a vedação.

Salienta Celso Antônio Bandeira de Mello:

A lei não pode conceder tratamento específico, vantajoso ou desvantajoso, em atenção a traços e circunstâncias peculiarizadoras de uma categoria de indivíduos se não houver adequação racional entre o elemento diferencial e o regime dispensado aos que se inserem na categoria diferenciada. [27]

Ao interpretar a lei, é necessário que haja uma certa cautela quanto ao fato da lei assumir, de modo claro e explícito, o fator reputado como desequiparador. Isto é, circunstâncias ocasionais, que proponham sutis distinções entre categorias de pessoas, não são de considerar.

Para que a diferenciação estabelecida não seja ofensiva à igualdade, ou seja, para que a desigualdade construída seja legítima, é essencial e indispensável que esta não seja contrária aos ditames constitucionais, e para isso é necessário que:

a)a desequiparação não alcance um indivíduo determinado e atual;

b)a desequiparação resida nos traços das próprias pessoas, coisas e situações;

c)que exista a correlação lógica entre o fator discriminatório e a distinção estabelecida em função dele;

d)a diferenciação deve estar em plena consonância com a Constituição Federal;

Alguns exemplos demonstram que espécie de elementos existentes nas coisas, pessoas ou situações, podem ser determinantes da desigualdade, sem colidir com o principio da igualdade garantido, na Constituição Federal. Como, por exemplo, no que tange a matéria tributária, ela se realiza com base na renda do tributado, e isso não constitui violação ao principio isonômico, ao contrário afirma Pontes de Miranda: "esse critério serve a maior igualdade, de que o principio da igualdade perante a lei foi justamente um dos pontos avançados na luta contra as distinções entre os seres humanos". [28]

"Não desatende a igualdade geométrica exigindo-se de quem ganha dez milhões, cinco vezes mais de impostos do que daquele que ganha dois". [29]

O parágrafo 1º do artigo 145 da Constituição Federal estabelece:

Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração pública, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte".

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A expressão "sempre que é possível" representa o reconhecimento de que certos impostos não tem a condição pragmática de levar em conta a capacidade econômica.

Tal artigo vem ratificado pelo artigo 150, II do mesmo ordenamento jurídico, quando determina que é vedado às pessoas de direito público "instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão da ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos". O elemento diferenciador nesse texto é que sejam tratados de forma igual aqueles contribuintes que se encontrarem na mesma situação, e de forma desigual os que estiverem em outra situação – como exemplo de efetividade da frase afirmada por Aristóteles "tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais". Portanto, há justificação lógica, racional e legal que autoriza tal desigualdade.

Assim como também não se pode considerar violação ao principio em estudo o texto da lei que estabelece o pagamento de indenização aos que não tem recursos, em caso de inundação ou de outra calamidade pública. A justificação para o pagamento de indenização para determinadas pessoas, em determinadas situações, autoriza a existência da diferenciação.

Supondo-se a existência de concurso público para preenchimento de vaga somente na área de assistentes sociais, a exclusão das outras profissões não significa ofensa à isonomia, pois a inexistência de profissional ocupando esta vaga justifica tal diferenciação. O mesmo ocorre em concurso público para o cargo de policia feminina - somente mulheres podem participar do referido concurso e isso não significa ofensa nenhuma ao princípio da igualdade.

Concurso para participar de propaganda de uma loja de confecções para pessoas que pesam mais de 100 kilos. Nenhum agravo existirá ao principio da igualdade na exclusão de pessoas que pesam menos de 100 kilos. O fato de que a confecção das roupas é direcionada para pessoas de mais de 100 quilos justifica tal diferenciação.

Como já foi afirmado anteriormente, em concurso público para a polícia militar, faz-se discriminação por peso e idade. O aspecto físico avantajado é característica fundamental para o profissional que lida com a criminalidade. Um policial incapaz de correr será quase que completamente inútil numa situação de risco. Há desigualdade nesse concurso, mas é perfeitamente razoável e não atenta contra a ordem constitucional.

O princípio de igual acesso às funções e cargos públicos, significa que todos devem ter as mesmas oportunidades, e ainda que a lei não pode prescrever qualquer requisito subjetivo, como, idade, sexo, classe social, cor, religião, crenças políticas ou naturalidade de alguma região. Os requisitos objetivos podem ser exigidos – técnica, especializações, antecedentes morais, índices psicobiológicos, forca física. Esta é a regra, porém em nada impede que o texto da lei aponte um elemento subjetivo ou objetivo como fator diferenciador, desde que sejam respeitados os critérios já apontados.

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Sobre a autora
Lenise Antunes Dias

mestre em Teoria do Estado e do Direito pela Fundação de Ensino Eurípides Soares da Rocha, coordenadora e professora do curso de Direito do Centro de Ensino Superior de Dracena (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DIAS, Lenise Antunes. Da desigualdade legítima. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 383, 25 jul. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5467. Acesso em: 19 mai. 2024.

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