Capa da publicação A banalização do dolo eventual no homicídio de trânsito
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A banalização do dolo eventual no homicídio de trânsito.

A impossibilidade de flexibilização da teoria geral do delito

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13/02/2017 às 10:00
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4 MEDIDAS LEGISLATIVAS ADOTADAS

 

4.1 A LEI N. 12.971/14 E A TENTATIVA DE QUALIFICAÇÃO DA PENA DO HOMICÍDIO DE TRÂNSITO

 

Com o advento da legislação supracitada algumas modificações foram feitas no sentido de agravar a punição aos condutores de veículos automotores que sob influência de álcool causarem mortes no trânsito (DE BEM, 2014). Dentre tais modificações, a mais significativa do ponto de vista do presente trabalho foi a inserção do parágrafo segundo ao artigo 302 do CTB, com a seguinte redação:

 

Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor: Penas - detenção, de dois a quatro anos (grifo nosso), e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação  para dirigir veículo automotor.

§2º Se o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência ou participa, em via, de corrida, disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente:

Penas - reclusão, de dois a quatro anos (grifo nosso), e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação  para dirigir veículo automotor.

 

Com isto, criou-se uma circunstância qualificadora para o delito de homicídio culposo na direção de veículo automotor, cuja incidência se dará quando tal fato decorrer da embriaguez do motorista. Como se percebe na leitura do dispositivo acima, não houve aumento na quantidade da pena, mas sim uma alteração de sua qualidade, isto é, de detenção para reclusão. Disso se depreende que, com a nova redação a regra geral de que o homicídio de trânsito é culposo foi reforçada pelo legislador, tendo como exceção o dolo eventual (SILVA, 2014, p. 16).

 

Não obstante, por mais que a intenção do legislador ao elaborar a novel legislação seja clara no sentido de dar melhor adequação típica ao delito perpetrado nas condições em testilha, não faltam críticas por parte da doutrina. A principal delas, diz respeito à pena cominada na qualificadora (§2º), que foi mantida na mesma quantidade prevista no caput do artigo 302 do CTB, alterando-se tão somente a qualidade, conforme já mencionado. De acordo com Greco (2014), tal modificação “[...] na prática não fará qualquer diferença significativa.” Segundo ele (op. cit.):

 

Assim, o que seria para ser um homicídio culposo qualificado, em virtude do maior grau de reprovação do comportamento praticado pelo agente, nas situações previstas pelo §2º, somente teve o  condão de ratificar as hipóteses como sendo as de um  crime  culposo, com as mesmas penas para ele anteriormente previstas, afastando-se, consequentemente, o raciocínio correspondente ao delito de homicídio com dolo eventual. […] E mais. Todos aqueles que foram condenados em situações similares, onde a Justiça, no afã de impor-lhes penalidades mais severas, entendeu a hipótese como sendo a de um homicídio praticado com dolo eventual, utilizando-se, equivocadamente, da expressão assumiu o risco de produzir o resultado; terão direito à revisão criminal, adaptando suas condenações às disposições contidas no mencionado §2º.

Em que pese a problemática dos efeitos (pena), a questão do concurso entre os crimes de embriaguez ao volante e homicídio culposo no trânsito, assim como a questão da culpa consciente e do dolo eventual, parecem melhor esclarecidas nesta novel legislação. O que falta, ainda, é a previsão de uma pena mais severa para o condutor embriagado, sem que para isto ocorram distorções hermenêuticas dos elementos construídos pela dogmática penal (SILVA, op. cit., p. 16).

Apesar da tentativa de melhora, o aludido §2o foi revogado recentemente pelo artigo 6o da Lei N° 13.281/16, ainda em período de vacância, conforme delineado no art. 7o, inciso II, da mesma legislação. Com isto, as discussões neste âmbito retornam ainda mais intensas, visto que a tentativa de qualificar o homicídio de trânsito restou inexitosa, possivelmente pela má elaboração legislativa. 

 

4.2 O PROJETO DE LEI N. 236/12 E A FIGURA DA CULPA TEMERÁRIA: MAIS UMA PROMESSA

 

            A inserção da culpa gravíssima ou culpa temerária na legislação nacional é uma das propostas apresentadas pela comissão de juristas constituída pelo Senado visando à reforma do Código Penal. A referida comissão foi formada no mês de outubro do ano de 2011, tendo como justificação, principalmente:

 

Em contraste com uma dinâmica social cada dia mais veloz, globalizada e tecnológica, nosso atual Código Penal é oriundo do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, com revisão de sua parte geral pela Lei nº 7.209, de 11 de julho de 1984, o que revela  um notável grau de atraso e falta de sintonia com as exigências contemporâneas de segurança e proteção da população. Com efeito, se de um lado o Direito comumente anda a reboque da evolução social, de outro o legislador deve sempre estar atento para a necessidade de atualização dos preceitos normativos, sob pena de se gerar injustiça e falta de efetividade das normas, o que se torna dramático na seara penal, que trata da proteção dos maiores bens jurídicos do ser humano: a vida e a liberdade […] (requerimento do Senado N°756 de 2011)

Acerca da questão do homicídio culposo praticado no trânsito, a comissão apresentou, no anteprojeto de reforma do Código Penal, o conceito de culpa temerária, nos termos seguintes:

 

[…] se todo homicídio culposo nasce do descuido, existem situações nas quais o desvalor deste descuido é acendrado, indicativo de uma suscetibilidade à produção de tão terrível efeito. Se, conforme a própria Comissão propõe, não há dolo eventual sem assunção indiferente do risco de produzir a morte, cuidava-se de criar figura intermediária, lindeira tanto da culpa comum, quanto da intenção indireta. Daí a culpa gravíssima, capaz de oferecer sanção penal mais intensa para os casos nos quais, sem querer e sem assumir o risco, o resultado fatal advém de excepcional temeridade.

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Consoante o magistério de Selma Pereira de Santana (2005, p. 68), para que se aplique a culpa temerária ou gravíssima, “[…] se tem de alcançar, ainda, a prova autônoma de que o agente, não omitindo a conduta, revelou uma atitude particularmente censurável de leviandade ou de descuido perante o comando jurídico-penal.”

Claus Roxin (1997, p. 1.025) também reconhece a existência da temeridade, ao prelecionar que “si por consiguiente se puede establecer incluso entre el dolo y la imprudencia una relación gradual, está claro que también dentro de la imprudencia se pueden distinguir formas más fuertes y más débiles.” O mesmo autor entende ser evidente que se trata de uma “imprudencia substancialmente elevada” e deixa a cargo da jurisprudência a tarefa de determinar quando a culpa pode ser considerada grave (ibid.). Preleciona que:

 

Ello puede suceder cuando el sujeto, por grave descuido, no advierte que realiza el tipo, pero también quando el mismo, con una frívola falta de consideración, no tiene en cuenta la possibilidad claramente advertida de realización del tipo. Sucede también quando el sujeto infringe un deber que se há de tomar especialmente en serio (ibid.).

Para Santana (op. cit., p. 68), nosso direito pátrio ainda trata do assunto com desinteresse, em desarmonia com países como Portugal, Alemanha, Itália e Espanha, que inclusive inseriram a culpa gravíssima em seus diplomas penais.

Ao que nos parece, a possibilidade de agravamento das penas por meio do reconhecimento da culpa temerária, além de ser uma medida mais ajustada à dogmática penal, é solução menos gravosa e mais proporcional que o reconhecimento de dolo eventual, visto que este último implica nos efeitos anteriormente destacados (aplicação das sanções e procedimentos atinentes ao homicídio doloso).

Demais disso, não significa elidir definitivamente a possibilidade do injusto doloso de trânsito, pois no caso concreto, quando houver demonstrativos objetivos da existência do dolo eventual, este deverá ser reconhecido. Luiz Flávio Gomes, por exemplo, sugere uma pena de quatro a oito anos de reclusão se demonstrada a embriaguez do condutor, ou a participação deste nos chamados “rachas” (competições automobilísticas irregulares) (GOMES, 2014).

Vejamos as alterações sugeridas pela comissão de juristas implantada pelo Senado (Projeto de Lei N°236/2012):

 

Art. 18/CP – Diz-se o crime:

I– Doloso, quando o agente quis realizar o tipo penal ou assumiu o risco de realizá-lo, consentindo ou aceitando de modo indiferente o resultado;

II– Culposo, quando o agente, em razão da inobservância dos deveres de cuidado exigíveis nas circunstâncias, realizou o fato típico;

 

Culpa gravíssima:

 

Parágrafo único. Se as circunstâncias do fato demonstrarem que o agente não quis o resultado, nem assumiu o risco de produzi-lo, mas agiu com excepcional imprudência. (grifos nossos)

Note-se, pois, que a redação proposta esclarece que o dolo eventual ocorre quando o agente assume o risco de realizar o fato típico, com o beneplácito ou com a indiferença quanto ao resultado. O anteprojeto também insere a culpa temerária no artigo 121 do Código Penal, com a seguinte redação:

 

Art. 121/CP – Matar alguém:

 

(…)

 

Culpa gravíssima:

 

§5º Se as circunstâncias do fato demonstrarem que o agente não quis o resultado morte, nem assumiu o risco de produzi-lo, mas agiu com excepcional temeridade, a pena será de quatro a oito anos de prisão.

 

§6º Inclui-se entre as hipóteses do parágrafo anterior a causação da morte na condução de embarcação, aeronave ou veículo automotor sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, ou mediante participação em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente.

Dessa forma, se o agente não quis o resultado (morte), nem assumiu o risco de produzi-lo, mas por outro lado atuou com excepcional temeridade, sofrerá pena de prisão de quatro a oito anos.

Além disso, o parágrafo sexto apresenta como hipóteses de culpa gravíssima a causação de morte na condução de embarcação, aeronave ou veículo automotor sob a influência de álcool ou drogas, ou em participação em “racha”.

Impende salientar, ainda, que a culpa temerária, conforme anteprojeto, não terá aplicação adstrita aos casos do artigo 121 do CP, mas também aos casos em que houver temeridade excessiva, como consta na própria redação, que “a culpa temerária pode ser aplicada noutras situações nas quais se vai muito além do ordinário, em matéria de descuido”.

A inclusão da culpa gravíssima em nosso ordenamento jurídico-penal talvez seja o caminho para mantermos “uma ideia de Direito Penal como um conjunto de normas motivadoras e não um instrumento de imputação aleatória de resultados.” (BOTTINI, 2011) Em prol da segurança jurídica “não devemos abrir mão dos aspectos subjetivos, que embora sutis e de difícil revelação, são a garantia de uma dogmática mais humana.” (ibid.)

Jorge de Figueiredo Dias (2007, P. 376) também entende que a temeridade funciona como meio termo entre a culpa (manifestada por negligência, imprudência e/ou imperícia) e o dolo, ratificando a premissa de Roxin (mencionada alhures).

 

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Sobre o autor
Kleber Stumpf de Almeida

Advogado Criminalista e Consumerista atuante no Rio Grande do Sul. Pós-Graduado em Ciências Criminais pela IERGS. Bacharel em Direito pela UNISINOS. Extensões em Direito do Consumidor, Direito Ambiental, Prática Forense Penal, Prática Forense no Novo Processo Civil, Criminologia, Medicina Legal, Oratória na Prática Jurídica, Psicologia Criminal, Direitos Humanos, Etimologia, Atendimento a Grupos Vulneráveis, Filosofia do Direito, Ciência Polícia, Direitos Humanos e outros - pelo ILB, IDC, Verbo Jurídico, Unisinos, Uniasselvi, Acadepol/RS e outros.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Kleber Stumpf. A banalização do dolo eventual no homicídio de trânsito.: A impossibilidade de flexibilização da teoria geral do delito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4975, 13 fev. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/54740. Acesso em: 4 mai. 2024.

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