A Defensoria Pública e o direito à saúde: acesso à justiça

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28/12/2016 às 11:22
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O Direito à Saúde

O direito à saúde encontra guarida na Constituição Federal do que decorre o dever do Poder Público em garantir aos cidadãos uma prestação adequada e eficiente desse serviço público.

Nesse passo, cumpre dizer que o tema ora tratado no passado não tinha grande repercussão e relevância como na hodierna conjuntura. Malgrado isso, já era possível se conhecer de alguns precedentes dos Tribunais da Federação, no sentido de compelir o Poder Público a custear medicamentos e promover as despesas com cirurgias e tratamentos de alto custo para as pessoas carentes.

Nos dias atuas, é bastante anunciado pela impressa nacional o fato das pessoas irem ao Judiciário em busca de receber medicamentos de alto de custo, bem como para a realização de cirurgias que envolvem risco de vida e em geral têm elevadíssimo valor.

Isso é corriqueiro no Brasil da atualidade, tanto é assim que o Supremo Tribunal Federal realizou uma Audiência Pública, de número 04, convocando a população, e todos os interessados, especialistas, doutores, médicos e intérpretes para se tentar chegar um denominador comum a respeito da matéria, explanando, conhecendo, entendendo e definindo os limites da obrigação constitucional do Estado na prestação do direito à saúde para todos.

Tal iniciativa teve por intuito estabelecer a diretriz a ser seguida pelos juízes e Tribunais do país, que devem respeitar e cumprir a orientação consignada pela Corte Constitucional pertinente à questão da saúde, influenciando sobremodo a elaboração e produção do presente artigo jurídico, que tomará o rumo da possibilidade jurídica do pedido no tocante à obrigação dos entes federativos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) de fornecer medicamentos e arcar com tratamentos de alto custo para as pessoas carentes de recursos financeiros, na medida em que não se comunga do argumento trazido pelo Poder Público de falta de reservas financeiras para esses procedimentos (reserva do economicamente possível), haja vista que tal tese não pode se sobrepor à vida, à saúde e à dignidade das pessoas.

O direito à saúde vem evoluindo com o passar dos tempos, de acordo com José Afonso da Silva, in Curso de Direito Constitucional Positivo, 24.ª ed, São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 308:

“A evolução conduziu à concepção da nossa Constituição de 1988, que declara ser a saúde direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação, serviços e ações que são de relevância pública (arts. 196 e 197). A Constituição o submete a conceito de seguridade social, cujas ações e meios se destinam, também, a assegurá-lo e torná-lo eficaz.” (José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo, 24.ª ed, Malheiros Editores, 2004, p. 308).

Noutra perspectiva, tem-se a problemática da reserva do possível versus o mínimo existencial, levada em consideração pela dogmática moderna para impor parâmetros e limites à obrigação do Estado para com a saúde, especialmente em relação à apreciação pelo Poder Judiciário de políticas públicas de competência do Poder Executivo, especialmente as voltadas para o direito constitucional à saúde.

Consoante ensina Ingo Wolfgang Sarlet e Mariana Filchtiner Figueiredo, in Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. 

“A garantia do mínimo existencial, que obriga o Estado a prestações que criem condições materiais mínimas para uma vida digna dos seus cidadãos, está fundada (1) no princípio da dignidade humana, pois ela não estaria garantida apenas pela proteção das liberdades individuais, mas precisaria também ser protegida "por um mínimo de segurança social, já que, sem os recursos materiais para uma existência digna, a própria dignidade humana ficaria sacrificada"; (2) no direito à vida e à integridade física, que não é apenas a proibição de sua violação, mas pressupõe uma postura ativa na sua proteção e; (3) no direito geral de liberdade, já que a qualidade de pessoa autônoma e responsável não prescinde da garantia de condições mínimas de existência. (Grifei).

Por outro lado, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF n. 45, adverte:

Vê-se, pois, que os condicionamentos impostos, pela cláusula da "reserva do possível", ao processo de concretização dos direitos de segunda geração - de implantação sempre onerosa -, traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado, (1) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e, de outro, (2) a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas. Desnecessário acentuar-se, considerado o encargo governamental de tornar efetiva a aplicação dos direitos econômicos, sociais e culturais, que os elementos componentes do mencionado binômio (razoabilidade da pretensão + disponibilidade financeira do Estado) devem configurar-se de modo afirmativo e em situação de cumulativa ocorrência, pois, ausente qualquer desses elementos, descaracterizar-se-á a possibilidade estatal de realização prática de tais direitos. (Brasil, STF. ADPF n. 45, 29/04/2004). (Grifei).

Outro ponto que provoca dúvidas, diz respeito aos limites da obrigação constitucional do Estado em relação ao direito à saúde, reconhecendo a possibilidade de todos os entes federativos integrarem o pólo passivo dessas ações, sendo solidariamente responsáveis pela efetivação do comando constitucional. Nesse passo, cite-se o argumento do Defensor Público Federal André da Silva Ordacgy na citada audiência pública, verbis:

“Em relação à solidariedade passiva, a jurisprudência dos nossos tribunais, especificamente aqui do Supremo Tribunal Federal é bem firme no sentido de que ela existe. Isso decorre do próprio ordenamento jurídico, da nossa Constituição Federal, no artigo 198, como também na sua forma de custeio. Qual é a ideia conceitual da solidariedade jurídica? É a ideia de que o jurisdicionado, o paciente que precisa de medicamentos pode requerer esse medicamento necessário de um dos entes públicos, Município, Estado ou União Federal, ou de todos eles juntos. O que for melhor para ele. Isso por quê? Porque ele se encontra numa posição de fragilidade. Ele é a parte mais fraca e, ainda por cima, acometido de uma enfermidade. Então, ele necessita deste medicamento.” (André da Silva Ordacgy, STF, Audiência Pública n. 04, Abril/2009). (Grifei).


Ativismo Judicial em relação às Políticas Públicas e o Pós-Constitucionalismo

No ordenamento jurídico brasileiro, a amplitude do direito constitucional e o desejo pela máxima efetividade das normas constitucionais são fatores predominantes na judicialização hodierna. A discussão acerca do ativismo judicial tem sido vista como a celeuma da judicialização, especialmente a judicialização das políticas públicas, numa relação de causa e efeito.

O ativismo judicial ou judicialização da política é fenômeno já muito ocorrido, tendo sua gênese com o fim do constitucionalismo liberal e o surgimento do social (Constituição Mexicana de 1917 e de Weimar de 1919), fortalecendo seus pilares com o fim da Segunda Guerra Mundial (1945), sendo a promoção dos direitos fundamentais e dos princípios que regem as constituições sociais seu maior triunfo, podendo ser visto quando ocorre o enfraquecimento dos outros poderes, levando ao fortalecimento do Judiciário, o qual, tendo em vista a omissão e sinecura do Executivo e Legislativo, acaba por tomar uma posição pró-ativa na sociedade, com a participação ativa dos magistrados na proteção dos princípios constitucionais, através do controle da atividade dos demais poderes, por meio do viés constitucional.

Destarte, quando há o enfraquecimento dos outros poderes, o Judiciário ganha forças e assume um papel relevante, intervindo em assuntos que antes eram abordados e resolvidos no âmbito de cada poder. Isso vem ocorrendo de forma corriqueira com relação à intervenção do Judiciário nas políticas públicas, mormente na área da saúde, assunto que originariamente caberia ao Executivo dispor, fomentar e instrumentalizar, otimizando os recursos de modo coerente e harmônico para cumprir sua obrigação constitucional de garantir saúde a todos de que dela necessitem.

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Nesse passo, percebe-se que a questão da judicialização das políticas públicas e o papel do Poder Judiciário é tema que causa grandes controvérsias no cenário jurídico brasileiro. Nesse sentido, impende trazer a lição do Professor Luis Roberto Barroso na palestra proferida na audiência pública n. 04, realizada no mês de abril de 2009, no Supremo Tribunal Federal:

A judicialização no Brasil decorre do modelo constitucional brasileiro e, portanto, em alguma medida ela é inevitável. Constitucionalizar é tirar uma matéria da política e trazê-la para dentro do Direito. E, portanto, existem prestações que o Judiciário não pode se negar a apreciar - e é muito bom que seja assim. Porém, a judicialização tem uma óbvia faceta negativa. É que, na medida em que uma matéria precise ser resolvida mediante uma demanda judicial, é sinal que ela não pôde ser atendida administrativamente; é sinal que ela não pôde ser atendida pelo modo natural de atendimento das demandas, que é, por via de soluções legislativas, soluções administrativas e soluções negociadas. A faceta positiva é que, quando alguém tem um direito fundamental e esse direito não foi observado, é muito bom poder ir ao Poder Judiciário e merecer esta tutela.”. (Luis Roberto Barroso STF, Audiência Pública n. 04, Abril/2009). (Grifei).

Na jurisprudência hodierna do país, temos julgados recentes do STF sobre a questão da intervenção do judiciário nas políticas públicas. Vejamos:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. SEGURANÇA PÚBLICA. LEGITIMIDADE. INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO. IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS. OMISSÃO ADMINISTRATIVA. 1. O Ministério Público detém capacidade postulatória não só para a abertura do inquérito civil, da ação penal pública e da ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social do meio ambiente, mas também de outros interesses difusos e coletivos [artigo 129, I e III, da CB/88]. Precedentes. 2. O Supremo fixou entendimento no sentido de que é função institucional do Poder Judiciário determinar a implantação de políticas públicas quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático. Precedentes. Agravo regimental a que se nega provimento. [grifado]. (Brasil, STF. RE 367432 AgR/PR, Relator Min. EROS GRAU, j. 20/04/2010, Segunda Turma, DJe- 13/05/2010).

DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO A SAÚDE. AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PROSSEGUIMENTO DE JULGAMENTO. AUSÊNCIA DE INGERÊNCIA NO PODER DISCRICIONÁRIO DO PODER EXECUTIVO. ARTIGOS 2º, 6º E 196 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1. O direito a saúde é prerrogativa constitucional indisponível, garantido mediante a implementação de políticas públicas, impondo ao Estado a obrigação de criar condições objetivas que possibilitem o efetivo acesso a tal serviço. 2. É possível ao Poder Judiciário determinar a implementação pelo Estado, quando inadimplente, de políticas públicas constitucionalmente previstas, sem que haja ingerência em questão que envolve o poder discricionário do Poder Executivo. Precedentes. 3. Agravo regimental improvido. (Brasil, STF. AI 734487 AgR/PR, Relatora Min. ELLEN GRACIE, j. 03/08/2010, Segunda Turma, DJe-154 19- 08 -2010). (Grifei).

A judicialização da política é resultado do debate constitucional que hoje vem sendo desenvolvido por toda a doutrina constitucionalista moderna, com o aparecimento de um novel paradigma com teses ainda mais inovadoras, denominado neoconstitucionalismo, constitucionalismo pós-moderno ou pós-positivismo. Hodiernamente o Direito como ciência jurídica está umbilicalmente ligado à ideia de constitucionalismo ou constitucionalização do Direito. Seguindo essa dogmática, todas as normas, todos os casos postos, todos os fatos concretos da vida que reflitam no cenário jurídico devem ser analisados e interpretados à luz da Constituição Federal, a nossa Lei Maior.

Portanto, pós-constitucionalismo ou novo direito constitucional, ou ainda, neoconstitucionalismo pode ser entendido como, na justa lição do professor Luis Roberto Barroso. 

"um conjunto amplo de transformações ocorridas no Estado e no direito constitucional, em meio às quais podem ser assinalados, (i) como marco histórico, a formação do Estado constitucional de direito, cuja consolidação se deu ao longo das décadas finais do século XX; (ii) como marco filosófico, o pós-positivismo, com a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre Direito e ética; e (iii) como marco teórico, o conjunto de mudanças que incluem a força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional. Desse conjunto de fenômenos resultou um processo extenso e profundo de constitucionalização do Direito".

Dessa maneira, o neoconstitucionalismo visa, na sua essência, à eficácia das normas constitucionais, tornando a teoria em prática contínua, sendo comum o pensamento de que é a partir dele que será possível a implantação de um real e efetivo Estado de Direito, apto a promover uma vida digna a todos os indivíduos, sendo a judicialização da política, com um expressivo deslocamento de poder da esfera do Legislativo e do Executivo para o Judiciário, marca indelével desse novo fenômeno constitucional.

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