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Criminalização do revenge porn

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5. TIPIFICAÇÃO DO REVENGE PORN

A justiça brasileira, conforme elucidado, tem entendido a prática de revenge porn como conduta conformada dentro dos limites previstos pela figura da Difamação e/ou Injúria. Tais crimes estão previstos, respectivamente, nos arts. 139 e 140 do Código Penal, enquadrados nos Crimes contra a Honra. Ambos os crimes tutelam dimensões distintas da honra. Enquanto a Difamação visa proteger a honra objetiva da pessoa, a Injúria importa-se apenas com a honra subjetiva. O professor Guilherme Nucci (2010, p. 673)20 diferencia as duas dimensões definindo a honra objetiva como “o julgamento que a sociedade faz do indivíduo, vale dizer, é a imagem que a pessoa possui no seio social” e a honra subjetiva como “o julgamento que o individuo faz de si mesmo, ou seja, é um sentimento de autoestima, de autoimagem”. Portanto, apesar de as duas normas protegerem a honra, fazem-no sobre aspectos distintos: um global, projetivo e extrínseco – honra objetiva – e o outro pessoal, silente e intrínseco – honra subjetiva.

Também não se pode denegar o perfeito enquadramento com a lesão corporal quando da ação decorrer sequelas psíquicas para a vítima, podendo se enquadrar em quase todas as modalidades de lesão corporal – exceto a culposa – inclusive a lesão corporal seguida de morte, caso a vítima venha a cometer suicídio pela divulgação indevida de sua intimidade. Sendo assim, passemos para a análise do enquadramento do revenge porn, segundo as figuras típicas vigentes na atual estrutura penal do Brasil, buscando a conformação mais adequada da conduta à norma repressora.

5.1. Enquadramento na Lesão Corporal

Nélson Hungria apud. Rogério Greco (2011, p. 253)21 explica que “o crime de lesão corporal consiste em qualquer dano ocasionado por alguém, sem animus necandi, à integridade física ou a saúde (fisiológica ou mental) de outrem”. Ele define a lesão corporal como toda e qualquer ofensa ao funcionamento do corpo ou organismo humano que o desvie da plena normalidade. Casos como o de Rose Leonel22 em que o estado depressivo decorrente do repúdio social foi caracterizado encontra perfeito enquadramento com a posição da doutrina majoritária, sendo necessária, para a caracterização da lesão corporal, por essa via, a comprovação da patologia psíquica bem como do nexo de causalidade. Todavia, não necessariamente o revenge porn terá associado a si a deflagração de um estado de patologia psíquica, pois não se trata de uma consequência fechada em si.

Os dados da CCRI23, conforme já exposto, apontam o aparecimento de problemas emocionais em 93% das vítimas de revenge porn e, esses dados, não podem ser desabonados. Contudo, a lesão corporal surge mais como um agravante do que como um elementar do tipo penal. Tratar essa conduta apenas sob o crivo da lesão corporal implica dizer que sete por cento das vítimas de pornografia não consensual foram vítimas de fato atípico, por não terem desenvolvidos, em decorrência da agressão sofrida, patologia psíquica. De igual forma é imputar ao agressor o animus laendendi ao invés do animus diffamandi vel injuriandi, o que não corresponde à veracidade da conduta. Em suma, aparecendo disfunção psicológica condizente com lesão corporal, o crime deve ser assim julgado e processado, mas na ausência de condições capazes de enquadramento no art. 129 do Código Penal é indispensável a existência de outra figura típica idônea para acomodar em seus contornos a conduta delituosa.

Sendo assim, assumindo a lesão corporal como um possível e recorrente agravante do revenge porn ainda não reconhecido pela justiça brasileira, a busca por uma norma penal incriminadora menos restritiva nos conduz à análise das tipificações sob as quais o entendimento da justiça tem recaído: Difamação e Injúria.

5.2. Enquadramento na Difamação

O Código Penal define essa figura típica como difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação. Rogério Greco (2011, p. 423)24 explica que “os fatos considerados ofensivos à reputação da vítima não podem ser considerados como crime, fazendo, assim, com que se entenda a difamação como um delito de menor gravidade, comparativamente ao crime de calúnia”. Ele também salienta não haver margem para a discussão se o fato ofensivo imputado é ou não verídico, pois a proteção à reputação da vítima se sobrepõe ao juízo de valor da coletividade impedindo, assim, que o próprio conceito da vítima seja maculado. Isso porque “embora sem revestir caráter criminoso, o fato incide na reprovação ético-social e é, portanto, ofensivo à reputação da pessoa a quem se atribui” (HUNGRIA. apud GRECO, 2011, p. 424)25.

É fundamental esclarecer que nesse ponto não discutimos se o revenge porn é ou não é considerado uma conduta delituosa, pois já está claro que o é. Entretanto, discutimos qual delito ele configura e, para um contorno genuíno dentro da difamação, deve existir, com a divulgação de conteúdo íntimo, imputação de fato ofensivo à reputação. Em suma, para haver difamação é necessária a existência de fato desairoso, capaz de lhe macular o conceito frente à sociedade. Portanto, para enquadrar a pornografia de vingança nessa figura típica é crucial enxergar a presença de fato ofensivo à reputação quando da prolação de fotos íntimas. Mas afinal, qual seria o fato ofensivo?

Se pensarmos em revenge porn facilmente temos duas vertentes. Há quem defenda haver imputação de fato ofensivo à reputação quando se divulga conteúdo íntimo de outra pessoa e há quem refute essa hipótese. No argumento dos que defendem esse posicionamento existe a premissa postulada sobre o caráter e moral da “pessoa que se deixou filmar / fotografar”, independentemente das circunstâncias, pois, por essa linha de pensamento, a valorização pessoal deve ser priorizada em detrimento da lubricidade do ato sexual. Logo permitir a produção de fotos ou vídeos durante o coito demonstraria uma exacerbada propensão para a luxúria, o que atribui, em especial para as mulheres, caráter lascivo à pessoa, sujeitando-se, portanto, à reprovação da sociedade. Essa forma de pensar, apesar de considerada provinciana, ainda é facilmente percebida no mundo hodierno.

Por outro lado, aqueles que não enxergam a existência de fato ofensivo à reputação da vítima, defendem existir total liberdade para a realização dos desejos sexuais não sendo reprovável produzir fotos ou vídeos sensuais ou eróticos. Grosso modo, é uma visão mais cosmopolita e libertária no tocante à sexualidade. Por essa linha de pensamento, mesmo a publicização de conteúdo íntimo agredindo de forma indubitável a vítima com a imagem violada, não há como enquadrar essa agressão dentro da difamação, pois não há imputação de fato que ofenda a reputação.

Em síntese, o mérito recaí sob o quão conservador é sua forma de pensar. Se entender existir liberdade para o casal fotografar ou filmar o próprio ato sexual, não há como enquadrar o revenge porn na difamação. Por outro lado, se entender haver limites éticos, morais, religiosos, enfim, capazes de impedir o casal de fotografar ou filmar o ato sexual, há possibilidade de enquadramento do revenge porn nos contornos da difamação.

Contudo, o Direito não deve ficar completamente a mercê de tabus sociais para interpretar o caso concreto. Havendo diferentes formas de analisar o enquadramento da figura típica, é necessário continuar a busca por interpretações severamente proibitória de questionamentos. Conclui-se então, que apesar de haver ataque à honra objetiva da vítima – com a exposição de sua intimidade para a sociedade –, o revenge porn não tem perfeito enquadramento com a difamação, pois lhe faltam elementos essenciais do tipo penal descrito. Nessa lógica, é importante destacar o posicionamento do Professor Rogério Sanches Cunha (2017)26 que defende sem seu canal o afastamento de enquadramento do revenge porn como difamação por não haver, justamente, a imputação de fato ofensivo à alguém, ou seja, ausência de elementos essenciais do tipo.

5.3. Enquadramento na Injúria

O Código Penal define essa figura típica como injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro. Fernando Capez (2010, p. 305)27 ensina que “o bem protegido por essa norma penal é a honra subjetiva, que é constituída pelo sentimento próprio de cada pessoa acerca de seus atributos morais (chamados de honra-dignidade), intelectuais e físicos (chamados de honra-decoro)”. Guilherme Nucci (2010, p. 682)28, em sua análise sobre o núcleo do tipo, define injuriar como praticar uma ofensa ou insulto capaz de atingir a dignidade, materializada pela respeitabilidade ou amor próprio, ou o decoro, materializado pela correção moral ou compostura. Em sua análise, explica ser indissociável, para consumação do delito, a presença do elemento volitivo da conduta. Em suas palavras “exige-se majoritariamente (doutrina e jurisprudência), o elemento subjetivo do tipo específico, que é a especial intenção de ofender, magoar, macular a honra alheia”. Sendo assim a ofensa quando proferida por agente que agiu com animus criticandi – crítica – ou animus corrigendi – corrigindo – descaracteriza a injúria, por não existir anseio de ofender a honra subjetiva da vítima.

Não há dúvida que o revenge porn atinge de forma brutal a honra subjetiva da vítima, e esse é o objeto jurídico tutelado pela norma incriminadora em comento. Também não podemos afastar o elemento subjetivo do agressor, pois sua intenção ao propalar o conteúdo em qualquer meio de ampla divulgação é, inegavelmente, vingar-se, com a diminuição da vítima, de fato anterior que o tenha causado inconformismo. Entretanto, a conformação da conduta à essa figura penal encontra incompletude, pois o dano causado à honra objetiva da vítima não é aqui apreciado. Rogério Greco (2011, p.435)29 ressalta que “de todas as infrações penais tipificadas no Código Penal que visam proteger a honra, a injúria, na sua modalidade fundamental, é a considerada menos grave”. Em síntese, tratar a matéria como injúria é fechar os olhos para a mácula causada à reputação da vítima na sociedade e desconsiderar todo o sofrimento oriundo da exposição ante ao corpo social e do julgamento do caráter e moral da vítima.

O revenge porn não afeta apenas a honra subjetiva, mas afeta também a honra objetiva. Não existe em nosso ordenamento jurídico uma figura típica que consubstancie ambas as dimensões da honra. Sendo assim, o crime de injúria não é capaz de tutelar todos os objetos jurídicos dessa conduta, mostrando inaptidão para reprimir a pornografia não consensual em qualquer uma de suas espécies.

Frente ao crescimento dessa forma de agressão sui generis, radical e impiedosa, é imperioso conseguir moldar um tipo penal apto a desestimular essa conduta e proteger concomitantemente o binômio formado por honra objetiva e subjetiva no meio virtual. Diante dessa necessidade, surgiram no Congresso Nacional vários Projetos de Lei com intenção de criminalizar a pornografia não consensual. Analisaremos, portanto, os mais relevantes desses projetos, frente as considerações até então elucidadas.


6. OS PROJETOS DE LEI

Até o dia 21 de fevereiro do corrente ano, tramitavam no Congresso Nacional alguns Projetos de Lei orientados para a criminalização da pornografia não consensual, e, de forma particular, o revenge porn. Ao todo eram doze projetos propostos por diferentes parlamentares e com peculiaridades específicas nessa matéria. O Apêndice I desse material apresenta uma tabela com (1) número dos projetos, (2) nome do parlamentar autor da proposta, (3) data de proposição e (4) resumo da ementa. Onze dos projetos estavam apensados ao Projeto de Lei (PL) n° 5.555/2013 de João Arruda (PMDB/PR), pois foi o primeiro projeto a ser proposto nessa direção. Ele previa alterações na Lei Maria da Penha com intuito de criar mecanismos para o combate a condutas ofensivas contra a mulher na Internet ou em outros meios de propagação da informação. O organograma abaixo apresenta a lista dos projetos de lei apensados ao PL 5.555/[13].

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A discussão sobre o projeto do deputado João Arruda se apôs sobre o caráter pouco abrangente da proposta, pois tratando a matéria apenas sob a luz da Lei n° 11.340/2006 restringia esse tipo de violência apenas às vítimas do sexo feminino, não conformando com essa tipificação a pornografia não consensual masculina. Mesmo sendo raro encontrar esse tipo de agressão voltada para homens, não é razoável agir como se não ocorresse. Exposição da intimidade de homossexuais e transexuais, por exemplo, que violam de igual forma a integridade moral dessas vítimas – quiçá ainda mais, dado o reverberante paradigma homofóbico ainda persistente na sociedade brasileira – não estariam amparadas por essa legislação. Nesse sentido, alguns projetos surgiram tratando a matéria sob o crivo do Decreto-Lei n° 2.848, de 7 de Dezembro de 1940 – Código Penal –, pois a abordagem penal do assunto seria capaz de ser a mais genérica possível, podendo criminalizar a violação da intimidade não consentida de homens, mulheres ou transexuais, não restringindo a figura típica à apenas um grupo ou gênero. O primeiro projeto a surgir com esse viés, e, na opinião do autor, um dos mais completos, foi o PL n° 6.630/2013 proposto pelo senador Romário (PSB/RJ) que previa a inclusão no Código Penal do crime de Divulgação Indevida de Material Íntimo cominando pena de detenção de um a três anos e multa. A Proposta ainda previa majorantes de pena para o delito se (I) cometido com finalidade de humilhação ou vingança, se (II) cometido por agente que manteve algum relacionamento amoroso com a vítima e se (III) cometido contra menor de dezoito anos, bem como a responsabilidade de indenização por danos decorrentes da conduta, não se afastando a possibilidade de pleitear indenização civil por outras perdas e danos materiais e morais não discriminados na proposta.

Apesar das dicotomias a matéria deveria ser tratada tanto pelo Código Penal, quanto pela Lei Maria da Penha, o que nenhuma das duas propostas faziam. A penalização da matéria visa generalizar o fato típico e a introdução do seu conteúdo no rol das proteções à mulher visa desestimular a tão comum prática do revenge porn e proteger a intimidade feminina frente ao falocracismo da sociedade. Sendo assim, destaque deve ser dado ao PL 4.527/2016 proposto pelo deputado Carlos Henrique Gaguim (PMB/TO) que aborda o conteúdo por ambos os lados. Contudo, a tipificação da conduta não previa majorantes e comina pena demasiada leve para a pornografia não consensual – detenção de três meses a um ano e multa. Ou seja, faltava para o PL um aprofundamento maior na matéria e a descrição de situações atenuantes e agravantes para a conduta de acordo com os resultados advindos da prática delituosa.

Não posso negligenciar a perspicácia dos PLs n° 6.668/2016 de autoria do deputado Dilceu Sperafico (PP/PR) e n° 6.713/2013 de autoria da deputada Eliene Lima (PSD/MT) por tratarem de forma específica a pornografia de vingança, tipificando de forma expressa a conduta e cominando penalidades severas para esses delitos. Destaco o PL n° 6.668/16 por dar descrição minuciosa para vários cenários advindos do revenge porn como agravantes em caso de tentativa ou consumação de suicídio da vítima, prevendo na própria norma diferentes dimensões e contextos relacionados ao delito.

Nesse cenário, com ampla repercussão de casos informados pela mídia e com vários Projetos de Lei apensados ao PL 5.555/13, a Câmara dos Deputados aprovou em 21 de fevereiro desse ano um substitutivo para o texto original do projeto elaborado pela deputada Laura Carneiro (PMDB/RJ) em conjunto com a deputada Tia Eron (PRB/BA), relatora anterior da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Ele traz inovações tanto no âmbito da Lei Maria da Penha quanto no âmbito do Código Penal.

No que se refere à Lei Maria da Penha o substitutivo amplia o rol dos direitos assegurados à mulher no art. 3° pela inserção do direito à comunicação e garantias de condições para o exercício efetivo dos direitos assegurados. Insere também o inciso VI no art. 7° que inclui, entre as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, a violação da intimidade da mulher, entendida como a divulgação, por meio da internet ou outro meio de propagação de informações, de dados pessoais, vídeos, áudios, montagens e fotocomposições da mulher, obtidos no âmbito das relações domésticas, de coabitação ou hospitalidade, sem seu expresso consentimento. Tais medidas permitem o julgamento e processamento pelos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de crimes relacionados à pornografia não consensual no âmbito das relações domésticas. Permitem ainda ação do Ministério Público independentemente de representação quando da conduta advier danos psicológicos como, por exemplo, depressão ou sociofobia, segundo tese do professor Rogério Sanches.

No âmbito penal o substitutivo aprovado cria o crime de Exposição Pública da Intimidade Sexual, pela inserção do art. 140-A no Código Penal, definido como “ofensa à dignidade ou ao decoro de outrem, divulgando por meio de imagem, vídeo ou qualquer outro meio, material que contenha cena de nudez ou de ato sexual de caráter privado”. A pena cominada para o crime é de reclusão de três meses a um ano com aumento de um terço à metade se o crime for cometido por motivo torpe ou contra pessoa com deficiência.

A aprovação do substitutivo implicou o arquivamento dos PL’s n°s 4.527/16, 6.630/13 e 5.822/13 por haver prejudicada a matéria. O substitutivo aguarda envio ao Senado Federal para apreciação pela casa revisora do Projeto de Lei.

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