Artigo Destaque dos editores

Interceptação da correspondência de presos:

críticas aos Projetos de Lei do Senado nº 11 e 19, de 2004

Exibindo página 2 de 2
09/09/2004 às 00:00
Leia nesta página:

Dos Projetos de Lei do Senado 11 e 19 de 2004 e sua inconstitucionalidade.

Não obstante os argumentos aduzidos ao longo deste trabalho, lamentavelmente, venho chamar atenção dos operadores do direito em geral para dois projetos de lei (PLS – Projeto de Lei do Senado) que hoje tramitam perante Senado Federal: um de autoria do Senador Rodolpho Tourinho do PFL-BA (PLS 11/2004), que visa alterar o art. 41 da Lei 7.210/84 para prever a interceptação de correspondência de presos condenados ou provisórios para fins de investigação criminal ou de instrução processual penal; e outro de autoria do Senador Gerson Camata do PMDB-ES (PLS 19/2004), que tem a pretensão de alterar o art. 233 do Decreto-Lei nº 3689/1941 - Código de Processo Penal, para permitir a interceptação de correspondência de presos condenados ou provisórios para fins de investigação criminal ou de instrução processual penal.

É certo que, com o PLS 11 de 2004, o art. 41 da Lei 7.210/84 passaria a viger acrescido do seguinte § 2º, renumerando o parágrafo único como § 1º, in verbis:

"§ 2º - A correspondência de presos condenados ou provisórios, a ser remetida ou recebida, poderá ser interceptada e analisada para fins de investigação criminal ou de instrução processual penal, e seu conteúdo será mantido sob sigilo, sob pena de responsabilização penal nos termos do art. 10, parte final, da Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996. (NR)"

Em sua justificação do referido projeto, o Senador Rodolpho Tourinho limita-se a mencionar a única decisão do STF neste sentido (o fatídico HC 70814/SP já comentado) e argumenta a necessidade do projeto embasado em "casos notórios a gestão dos tráficos de drogas e de armas a partir dos complexos de Bangu, no Rio de Janeiro, as incursões extramuros do Primeiro Comando da Capital, em São Paulo, e, mais recentemente, as orientações para o tráfico internacional de drogas dadas por um dos maiores traficantes do País, Fernandinho Beira-Mar, a partir da suposta mais segura penitenciária em território brasileiro, a Presidente Bernardes, no interior de São Paulo".

Ademais, o Ilustre Senador aduz ainda: "Os direitos individuais esculpidos no inciso XII do art. 5º da Constituição Federal não são absolutos, conforme entendimento majoritário na doutrina penal. A Constituição Federal, ao prescrever o direito do indivíduo de não ter a sua correspondência violada, tinha por objetivo proteger o cidadão de bem. Não são destinatários da norma aqueles que afrontam e desafiam o Estado de Direito".

Conclui sua inusitada justificativa com a célebre assertiva, digna daqueles que exercem a função legisferante de nossa nação: "o presente projeto de lei vem para suprir uma lacuna em nossa lei infraconstitucional que não deve mais persistir, pois a sociedade clama por respostas eficazes por parte do Estado, cada vez mais acuado diante do avanço do crime e de estados paralelos".

Passemos ao que se refere o PLS 19/2004: aqui a pretensão é a de alterar o artigo 233 do Decreto-Lei nº 3689/1941 - Código de Processo Penal, para permitir a interceptação de correspondência de presos condenados ou provisórios para fins de investigação criminal ou de instrução processual penal, provavelmente, visando a legitimidade da prova obtida mediante o Projeto de Lei do Senado 11/2004.

Ocorre que, o Senador Gerson Camata em justificativa, limita-se a repetir ipsis litteris a argumentação utilizada pelo seu colega parlamentar Senador Rodolpho Tourinho, reportando-se aos mesmos motivos, quando de sua justificativa pelo supramencionado projeto.

É preciso observar que os Senhores Senadores expõem tais ocorridos, como se estes tivessem sido perpetrados através de comunicação epistolar, e, ainda por cima, pela sua forma regular (envio postal). Ora, é muita inocência (ou não), imaginar que o dito traficante, enaltecido pelos Senhores Senadores, tenha se comunicado com o exterior ou com seus asseclas, através de uma carta particular, um simples pedaço de papel, sujeito a exame grafotécnico, ou mesmo apreensão, face à disposição do art. 41, parágrafo único da LEP, caso a correspondência saísse com o advogado do referido preso.

Mister se faz alertar os referidos parlamentares, sobre os meios modernos de comunicação existentes na atualidade (celulares – inclusive os modelos Irídium que suportam os bloqueios existentes em determinadas unidades prisionais, internet, e principalmente aparelhos de telefone móveis que operam em freqüência de rádio) impossíveis de serem rastreados pelas interceptações da polícia.

No tocante ao argumento de não serem absolutos os direitos esculpidos no inciso XII da Constituição Federal, não obstante o que outrora fora esposado, entendemos realmente não serem absolutos, visto a própria Lei Maior permitir a sua relativização em seus art. 136, §1º, 1, b e c, e art. 139, III, e, como sabemos, o que é absoluto não aceita exceções. Contudo, isso não significa dizer que uma determinação judicial ou mesmo uma norma infraconstitucional possa vir ampliar tais exceções, que, inclusive, devem ser interpretadas restritivamente, sob pena de se violar as regras mais básicas de hermenêutica jurídica.

Em suma, acreditamos veementemente que tais projetos não devam prosperar, visto que, em ambos, existe flagrante inconstitucionalidade material, afrontando a Constituição Federal no âmago de seus direitos e garantias fundamentais.

Em todo o caso, está unicamente nas mãos do Excelentíssimo Senhor Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, íntimo das lutas democráticas durante os negros anos de ditadura, a possibilidade de se sensibilizar ou até mesmo se indignar com os mencionados projetos, e lançar mão do controle político preventivo de constitucionalidade (único instrumento de controle deste ato, ainda na forma preventiva), através de seu veto, segundo art. 66, §1º da Constituição Federal; impedindo, assim, que se transformem em Leis.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Caso contrário, estaremos sujeitos ao dissabor de enfrentar o Supremo Tribunal Federal (o qual já manifestou sua posição desde 1994) que irá realizar o controle de constitucionalidade repressivo das possíveis Leis.

Não é demais lembrar que, caso a ação direta de inconstitucionalidade venha a ser julgada improcedente, as pretensas Leis serão tidas como constitucionais e insuscetíveis de novo controle, unindo-se, desta forma, a tantos outros diplomas que passaram pelo mesmo caminho infeliz.


Considerações Finais.

À guisa de conclusão, não podemos negar que, freqüentemente, durante nossa diária leitura de jornais ou assistindo aos tradicionais noticiários noturnos na televisão, nos deparamos com cenas de internos em unidades prisionais, totalmente amotinados e rebelados, no teto dos ditos estabelecimentos, com os rostos quase sempre cobertos pelas camisas, empunhando armas de fogo ou aqueles artefatos artesanais igualmente letais, quando não ostentam explosivos de grande poder de destruição, mostrando para as lentes das câmeras dos jornalistas, funcionários atemorizados utilizados como reféns, sendo surrados e algumas vezes mortos.

Os "cidadãos de bem", como disseram os Ilustres Senadores, no conforto de seus lares praguejam algumas palavras de repúdio, demonstram a instantânea indignação, pregam a pena de morte, defendem a lei de talião e obtém assunto suficiente para o momento do cafezinho no intervalo do trabalho e para a roda de amigos no bar após o expediente.

Enquanto isso, nós, operadores do direito, munidos desta sensibilidade sociológica e técnica inerente às áreas humanas, enxergamos coisas que os "leigos" normalmente não vêem, ou na pior das hipóteses, não querem ver.

Aqueles, por exemplo, que militam na área criminal, principalmente no "front" da execução penal, na maioria das vezes, reconhecem a legitimidade das reivindicações daqueles desprovidos de liberdade, visto que, em grande parte das conturbadas ocorrências, os clamores dos presos são uníssonos e pleiteiam o óbvio: o mínimo de respeito e cumprimento de seus direitos mais básicos assegurados por lei.

Ocorre que, muitas vezes por despreparo e incúria de seus próprios líderes, atabalhoados, acabam os presos por reverterem-se ao próprio substrato, utilizando as únicas coisas que puderam aprender com as chances que a vida lhes ofereceu: terror e violência, protagonizando o "show" grotesco e nefando que a população verbera em suas paradas durante o expediente e conversas de fila de banco.

Entretanto, esta não é a conseqüência mais perigosa de todo o exposto acima, muito embora a mídia e o clamor público fomentem o pior; o perigo está no planalto central, mais precisamente em Brasília, onde os representantes do povo e os representantes dos Estados-membros, mais uma vez irão exercer a desenfreada atividade legisferante precipitada e despreparada, dando uma resposta aos anseios das redes de televisão e a população, com vistas à mais uma eleição que se aproxima, aproveitando a excelente oportunidade de auto-promoção.

Pelo que parece, se nada for feito, em breve teremos mais uma lei feita às pressas, visando uma resposta rápida à sociedade, (como tantas outras que temos em vigência, tratando-se de verdadeiras aberrações legislativas) elaborada muita vezes por alguém que nunca às estudou. "Mas o que isso importa? O importante é que fiz meu comercial!"

Desta vez não foi o Abílio Diniz nem o Medina, também não foi Glória Peres, e talvez também não seja a quantidade de armas nas mãos da população. Mas o que importa? Vamos criar crimes, aumentar as penas, rasgar a Constituição mais uma vez, e vamos violentar os direitos e garantias que os próprios parlamentares dizem ter lutado por mais de vinte anos para tê-los de volta (ou será que não?).

Termino aqui meu artigo, mas não minha indignação, ficando com as palavras do insigne Prof. Fernando da Costa Tourinho Filho:

"Na verdade, conforme observa Bettiol, "a liberdade individual, como expressão de um valor absoluto, deve ser tida como inviolável por qualquer Constituição democrática" (Instituições de direito penal e processo penal. trad. J. F. Dias, Coimbra. Ed., 1973, p. 251)." (39)

"É preferível que o criminoso fique impune a se permitir o desrespeito à Lei Maior". (40)


NOTAS

  1. FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 57.
  2. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 58.
  3. in Interceptação Telefônica. Saraiva: São Paulo, 1996, p. 10-11.
  4. in As Nulidade no Processo Penal, 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 179.
  5. in Comentários à Constituição do Brasil. 2º vol., Saraiva: São Paulo, 1989, p. 72-73.
  6. Neste sentido, Cf. CAPEZ, Fernando. op. cit. p 281 e GRINOVER, Ada Pellegrini. As nulidades... p. 169.
  7. in As Nulidade no Processo Penal, 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 179.
  8. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. vol. 3, 23. ed. Saraiva: São Paulo, 2001, p. 225.
  9. idem
  10. in Processo Penal em Face da Constituição. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 28-29.
  11. in Curso de Direito Constitucional Positivo. 12. ed., Malheiros: São Paulo, 1995, p. 416-417.
  12. in Código Processo Penal Comentado. 1. vol., 3. ed., São Paulo: Saraiva, 1998, p. 445-446.
  13. in Direito à Prova no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 122.
  14. in Processo Penal. 4. ed., São Paulo: Atlas, 1995, p. 316.
  15. in Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 432.
  16. in Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política 23/187-188.
  17. Neste sentido, Cf. ZIMMERMANN, Augusto. Análises intrínseca e extrínseca dos Princípios Constitucionais da República Federativa do Brasil. Artigo publicado na Revista Interdisciplinar de Direito, Centro de Ensino Superior de Valença, ano III, nº 3, novembro de 2000.
  18. in Novas Tendências do Direito Processual. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990, p.60.
  19. op. cit. p. 58. No mesmo sentido: RT-STF 709/418; STJ – 6º Turma, RHC 2.777-0/RJ – Rel. Min. Pedro Acioli – Ementário, 08:721
  20. in Direito Constitucional. p. 78.
  21. A Constituição e as provas ilicitamente obtidas. in Temas de Direito Processual. Sexta Série. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 117. Também publicado na Revista Forense volume 337, p. 131.
  22. in GOMES, Luiz Flávio e CERVINI, Raúl. Interceptação Telefônica: Lei 9.296, de 24.07.96. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 100-104 e 173-175.
  23. in Interceptação de Comunicações Telefônicas: Notas à Lei 9.296, de 24/07/1996. São Paulo: Revista dos Tribunais, RT, 735:464 – janeiro de 1997.
  24. in Curso de Processo Penal. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 37.
  25. in O Processo Penal em Face da Constituição e dos Ditames de uma Justiça Penal Mais Eficaz. Justiça Penal: Críticas e Sugestões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 91-92.
  26. RT, 709:418
  27. PRADO, Geraldo Luiz Mascarenhas. Sistema acusatório. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999. e __________. Interceptação de comunicações. Disponível em <http://www.direitosfundamentais.com.br> acessado em 23.07.2004.
  28. in A Ponderação de Interesses na Constituição Federal, Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2000, p.73.
  29. in Direito Constitucional. p.48.
  30. idem
  31. in Centesimus Annus. Carta Encíclica de João Paulo II, §13.
  32. Neste sentido. Cf. MORAES, Alexandre. Direitos humanos fundamentais. 2 ed., Atlas: São Paulo, 1996, p. 36.
  33. Neste sentido. Cf. SILVA Júnior, Azor Lopes da. Direito do condenado ao sigilo da correspondência. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. São Paulo, v. 8, n.89, p. 5-6, abril 2000.
  34. XIMENES, Sérgio. Dicionário Ediouro da língua portuguesa. 8. ed., Rio de Janeiro: Ediouro, 1999, p. 563.
  35. TERSARIOL, Alpheu. Dicionário Brasileiro. 2. ed., Erechim: Edelbra, 1997, p 373.
  36. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. vol. 1, 23. ed. Saraiva: São Paulo, 2001, p. 56.
  37. Neste sentido. Cf. SILVA Júnior, Azor Lopes da. Direito do condenado ao sigilo da correspondência. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. São Paulo, v. 8, n.89, p. 5-6, abril 2000.
  38. NUNES, Adeildo. Correspondência nos presídios. 22.03.2004 - Disponível na internet: http://www.ibccrim.org.br> Acessado em 23.07.2004.
  39. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. vol. 1, 23. ed. Saraiva: São Paulo, 2001, p. 57.
  40. idem p. 59.
Assuntos relacionados
Sobre o autor
Felipe Lima de Almeida

estudante em Direito na Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro (RJ), membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Felipe Lima. Interceptação da correspondência de presos:: críticas aos Projetos de Lei do Senado nº 11 e 19, de 2004. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 429, 9 set. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5672. Acesso em: 7 mai. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos