A história das associações de benefícios mútuos e a proteção veicular no Brasil

02/05/2017 às 16:44
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Atualmente, assistimos no Brasil a um aumento vertiginoso da insegurança pública e da violência social, que ocorreu em meio à total falência financeira e estrutural das instituições democráticas. Esse panorama levou ao surgimento da atividade de Proteção Veicular como uma solução simples, viável e de iniciativa popular. Saiba como isso vem funcionando em meio ao cenário normativo atual e porque parece gerar dúvidas.

Atualmente, assistimos no Brasil a um aumento vertiginoso da insegurança pública e da violência social, que ocorreu em meio à total falência financeira e estrutural das instituições democráticas. O Estado, que nunca cumpriu com seu papel da forma que a Constituição Federal prevê (seja a de 1988 ou as anteriores), chegou ao fundo do poço nas últimas décadas, tornando-se o um dos piores do mundo em diversos indicativos negativos, como corrupção, violência e deficiência na educação.

Em meio a este quadro, o surgimento da atividade de Proteção Veicular no Brasil adveio como uma solução simples e viável, e mais importante: de iniciativa popular, com a clara finalidade de sanar a enorme carência existente em relação à proteção patrimonial, causada pelo caos na segurança pública e pelo verdadeiro cartel das empresas de seguros, que somente protegem o patrimônio praticamente livre de risco, deixando à margem do mercado uma enormidade de necessitados.

Com este panorama, a Proteção veicular surgiu e se desenvolveu em pouquíssimo tempo, dada sua total adequação frente aos problemas que a demandaram e o alto grau de viabilidade econômica, por não haver finalidade lucrativa.

Ao que tudo indica, as primeiras associações de Proteção Veicular surgiram ainda na década de 80 no estado de São Paulo, mas se desenvolveram com maior abrangência na cidade de Betim/MG, como uma solução para a classe dos caminhoneiros transportadores de veículos, que cargas inflamáveis, que viam-se totalmente alienados pelo mercado securitário. Para a maioria destes, o seguro de sua ferramenta de trabalho equivalia a mais de 50% de seu valor. Para muitos outros, o risco era simplesmente declinado por todas as seguradoras, deixando o trabalhador sem qualquer opção de proteção patrimonial, ainda que sob valores impagáveis.

O mesmo quadro era até então compartilhado por diversas categorias profissionais (como taxistas e locadoras de veículos) e  também por particulares que possuíam veículos mais antigos ou mesmo novos com elevado risco de furto/roubo. Lado outro, diversas pessoas também eram segregadas pelo mercado securitário em função de seus perfis pessoais (CEP de residência, restrições creditícias, histórico de acidentes anteriores, etc.). Enfim, uma grande massa de desassistidos em relação à proteção patrimonial por “opção comercial” das seguradoras, que levaram ao importe atual de menos de 25% dos veículos em todo o país contarem com cobertura securitária.

Diante deste quadro, a Proteção Veicular surgiu como uma solução de iniciativa popular ate do problema da insegurança pública e o total abandono por parte do mercado segurador de mais de 75% dos veículos do País, simplesmente por não se interessarem pelos números do negócio.

Cumpre ressaltar que, para muitas destas pessoas, o veículo é, além da ferramenta de trabalho, o bem mais valioso que possui. Cerca de 90% dos brasileiros não possuem casa própria ou reservas financeiras, sendo o seu veículo esta reserva, a ser liquidada para atendimento de qualquer emergência que venha a acometer o cidadão ou sua família. Desta forma, concluímos que a proteção patrimonial não se revela somente como um “luxo” a ser ofertado a quem interessar ao mercado securitário, mas sim, uma necessidade de bem-estar social.

Foi justamente nesta lacuna deixada pelo mercado securitário e baseado na necessidade social que os próprios cidadãos buscaram sua solução, através de uma forma simples e inteligente de rateio de despesas homogêneas em um grupo de interesse comum. Trata-se da mais simples aplicação do conceito puro de mutualismo, sem qualquer interesse de lucro. Tão somente a socialização de um risco, seguido do rateio de eventual despesa, caso ocorra. 

Cumpre ressaltar que tal modalidade é comum em todo o mundo, seja de forma expressa e formalizada, ou mesmo informalmente. No próprio Brasil, as “seguradoras mútuas” eram comuns no início do século passado e abrangiam igualmente, riscos declinados pela seguradoras, como por exemplo os seguros de padarias, que possuíam alto índice de incêndios na época, e os riscos eram cotizados entre os empresários do ramo. Na época a modalidade foi até mesmo prevista em nosso Código Civil, tendo seção específica denominada “Do Seguro Mútuo” no diploma de 1916 para tratar do assunto em seus artigos 1466 a 1470, conforme notamos abaixo:

“Art. 1.466 - Pode ajustar-se o seguro, pondo certo número de segurados em comum entre si o prejuízo, que a qualquer deles advenha, do risco por todos corrido.

Em tal caso o conjunto dos segurados constitui a pessoa jurídica, a que pertencem as funções de segurador.

Art. 1.467 - Nesta forma de seguro, em lugar do prêmio, os segurados contribuem com as quotas necessárias para ocorrer às despesas da administração e aos prejuízos verificados. Sendo omissos os estatutos, presume-se que a taxa das quotas se determinará segundo as contas do ano.

Art. 1.468 - Será permitido também obrigar a prêmios fixos os segurados, ficando, porém, estes adstritos, se a importância daqueles não cobrir a dos riscos verificados, a quotizarem-se pela diferença. Se, pelo contrário, a soma dos prêmios exceder à dos riscos verificados, poderão os associados repartir entre si o excesso em dividendo, se não preferirem criar um fundo de reserva

Art. 1.469 - As entradas suplementares e os dividendos serão proporcionais às quotas de cada associado.

Art. 1.470 - As quotas dos sócios serão fixadas conforme o valor dos respectivos seguros, podendo-se também levar em conta riscos diferentes, e estabelecê-los de duas ou mais categorias.”

Tal previsão legal somente não foi trazida para o Código Civil de 2012 por interpretar o legislador que estava em desuso, mas sua supressão no novo códex não a tornou ilegal. Basta que se verifique os artigos 53 a 61 do NCC e a Constituição Federal em seu artigo 5º, incisos XVII, XVIII e XIX, para que se verifique que inexiste restrição legal.

A socialização de riscos e prejuízos é prática usual desde os primórdios da humanidade e em todo o Mundo. Ainda, no século II, se o membro de uma caravana perdesse seu animal sem culpa, todos os demais se cotizavam para repor o animal perdido. No cenário brasileiro, a socialização de riscos e prejuízos ganho força ao longo do Segundo Reinado e da Primeira República, como entidades mutuais organizadas por interesses recreativos, étnicos e profissionais.

Sob esta ótica, as associações de benefícios se desenvolveram com o passar dos anos e atualmente cumprem um importante papel no que se refere à proteção patrimonial em todo o País. Somente entre os anos de 2010 e 2015 a frota nacional de automóveis cresceu de 55 milhões para 85 milhões de veículos, sendo que o mercado segurador não acompanhou o crescimento. Estima-se que, atualmente,  pelo menos 2 milhões de pessoas utilizam a modalidade de Proteção Veicular, vendo-se livre do risco da perda de seu patrimônio. Pessoas que antes viam-se desamparadas em função da negativa do mercado segurador em atendê-las, seja por conta do tipo de veículo ou do perfil pessoal. Ou seja, declínio de risco em função de mero desinteresse comercial dos entes seguradores.

Este cenário levou a atividade a se desenvolver a pleno vapor, trazendo segurança a milhares de necessitados sem qualquer previsão de lucro a quem quer que seja, através da aplicação do mutualismo em sua mais pura essência, ou seja, negócio totalmente diverso do seguro. Uma das atividades visa o lucro, e a outra, visa o benefício mútuo dos optantes. Percebe-se claramente que, embora ambas as atividades sejam baseadas no mutualismo, as diferenças saltam aos olhos.

Contudo,  o crescimento da atividade chamou a atenção das seguradoras e dos corretores de seguros, que passaram a ver a atividade como uma ameaça ao seu rentável negócio, ignorando as visíveis diferenças jurídicas entre as atividades (assunto interessante, mas para outro momento) e também que esta grande massa de optantes não representa consumidores de seguros que optaram pela mudança da modalidade, mas uma parte (mui pequena, por sinal) dos mais de 75% dos brasileiros que nunca tiveram a oportunidade de contratar um seguro, por opção das próprias seguradoras que declinaram seu risco.

Com isso, ao contrário do que diz o senso comum, parte das instituições sociais que deveriam apoiar a modalidade tem travado um verdadeiro “combate” para com aquela, chamando a nossa atenção a atuação administrativa e judicial da SUSEP (Superintendência de Seguros Privados) em defesa dos interesses das seguradoras e contra o desenvolvimento da atividade de Proteção Veicular, por entenderem que o desenvolvimento da atividade ameaça o cartel tão bem operado pelas seguradoras (com o aval da autarquia que deveria fiscalizá-las).

Infelizmente, notamos que em nosso país é comum que autarquias federais, agências reguladoras e outros órgãos que deveriam vigiar a atuação de suas “fiscalizadas” em defesa do interesse público, atuem em sentido contrário, ignorando o interesse comum de milhares de pessoas em benefício do interesse financeiro e mercadológico de poucos outros.

Desta forma, a SUSEP tem empreendido, nos últimos anos, em uma cruzada épica, desfavorecendo totalmente o interesse coletivo de milhares de pessoas em favor do interesse individual e empresarial de poucos, combatendo esta prática sob o argumento de se tratar de “seguro pirata”, muito embora a própria autarquia já tenha admitido que na modalidade não há transferência de risco para um ente segurador e pagamento de prêmio, requisitos obrigatórios para configuração de seguro privado.

É inegável que existem semelhanças entre as atividades (sobretudo no resultado final ao optante, qual seja, a proteção de seu patrimônio), contudo existem também diversas diferenças que afastam por completo qualquer resquício de identidade. Outrossim, tal análise deve ser feita com atenção a todo embasamento técnico-jurídico, evitando assim um pré-julgamento prejudicial a todos os envolvidos. Porquanto similitude, absolutamente, não é sinônimo de identidade.

A história recente nos mostra que é comum a presente situação, onde milionárias entidades estabelecidas muitas vezes com monopólio de mercado, defendem sua reserva de mercado atacando com todas as armas disponíveis qualquer novidade que traga concorrência e benefícios à população, principalmente nos casos de iniciativa popular, sem grandes investidores por trás das novidades.

Podemos citar os casos do surgimento dos Consórcios, modelo exportado do Brasil para todo mundo, e que foi duramente combatido algumas décadas atrás. Temos o caso das Cooperativas de Crédito, que enfrentaram grande pressão dos bancos quando surgiram e atualmente são uma realidade muito mais confiável do que as instituições financeiras. Mais recentemente, podemos citar os casos do Uber, violentamente combatido pelos jurássicos taxistas (e recentemente regulamentado em SP), assim como do Netflix que tem deixado as operadoras de TV a cabo em desespero. Isso sem falar nos Planos de Autogestão da Saúde, que tem dado uma “aula” aos planos de saúde no quesito qualidade dos serviços prestados.

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Não se pode esquecer que os consórcios de veículos funcionaram livremente durante décadas, até que, em 1971, a Lei 5.768/71 condicionou o exercício dessa atividade à prévia autorização do Banco Central do Brasil.

Por outro lado, até o momento não foi regulamentada a atividade de factorização, embora projeto de lei a respeito, aprovado pelo Senado, tenha sido, recentemente, enviado a Câmara.

A Proteção Veicular nada mais é do que isso: mais uma iniciativa popular em busca de garantir os direitos de um cidadão (no caso, de propriedade), direitos que deveriam ser garantidos pelo Estado, mas que são negligenciados. 

Chamar de “pirata” e fugir do diálogo tem sido uma medida desesperada, largamente utilizada desde sempre pelas entidades que não se adaptam às novas realidades e atuam de forma predatória no mercado, tentando manter seu monopólio através de manobras em um mundo globalizado que não mais permite tais abusos.

Se a atividade traz algum risco aos associados, cabe a eles, desde que devidamente cientificados, definirem se aceitam ou não as regras do negócio. Uma vez cientes das regras e de acordo, não existe abuso algum. A liberdade associativa é garantida constitucionalmente, para fins lícitos. E a finalidade das associações é tudo, menos ilícita. 

E quando o assunto é risco de lesão aos consumidores, as seguradoras não podem falar de nenhuma outra atividade no País. Ora, somente nos últimos anos tivemos dezenas (sim, DEZENAS) de seguradoras liquidadas pela justiça, causando prejuízos a milhares de brasileiros (Federal, Confiança, etc.). Na mesa esteira, tivemos recentes casos de planos de saúde (Unimed SP). Igualmente, os bancos já deixaram milhares na mão (Cruzeiro do Sul, Rural, Panamericano).

Diante deste quadro, questionamos: Quantas Cooperativas de Crédito faliram, deixando os clientes em prejuízo? Quantos planos de autogestão da saúde o fizeram? E quantas associações de Proteção Veicular? Não se tem notícia de nenhuma.

Enfim, após a judicialização de dezenas de demandas em face das associações, percebeu-se que o embate judicial iniciado pela SUSEP não surtiu os efeitos esperados. A autarquia, que esperava encerrar as atividades de todas as associações com certa facilidade, viu-se derrotada em uma série de julgados. O Poder Judiciário tem se mostrado um pouco dividido na análise da questão, com decisões para ambos os lados, mostrando o quão controversa é a matéria.

Contudo, verifica-se que em segunda instância, as decisões de mérito favorecem sensivelmente as associações de proteção veicular, e não a SUSEP. O mesmo pode se afirmar em relação aos processos criminais instaurados em face dos diretores das entidades, onde quase 100% apontam para a inexistência de crime na atividade.

Tal embate despertou, nos últimos, anos a atuação do Poder Legislativo. Este tem se mobilizado, com a finalidade de regulamentar de uma vez por todas a atividade, cessando a atuação da SUSEP e de suas “fiscalizadas” contra esta importante atividade, que mostra-se como única opção de proteção matrimonial à maioria dos brasileiros, que se vêem alienados pelo mercado securitário.

Assim como no caso das decisões judiciais que favorecem a atividade de Proteção Veicular, temos iniciativas legislativas tramitando tanto no Senado quanto na Câmara Federal, sendo estes originárias de diversos estados do País (RS, GO, RJ e MG). Igualmente, podemos verificar uma total pluralidade partidária na apresentação dos projetos, sendo cada um de um partido diverso (PSD, PTN, PT e PRB). Notamos, pois, que existe um grande coro no Congresso Nacional, que reflete os anseios das ruas para que a perenidade desta tão importante atividade seja garantida.

Na data de 13/07/2016, foi formada na Câmara Federal a Frente Parlamentar para Defesa do Associativismo, por iniciativa do Deputado Federal Ezequiel Teixeira, autor do Projeto de Lei 5523/2016. No lançamento da frente, foram obtidas as assinaturas de nada menos que 214 (duzentos e quatorze) deputados em apoio à demanda.

A comissão realizou, ainda, uma audiência pública no dia 08/11/2016, no auditório Freitas Nobre, na Câmara dos Deputados em Brasília/DF, que contou com a presença de diversas autoridades legislativas e do segmento de Proteção Veicular, sendo amplamente debatidos os aspectos legais que permeiam a atuação das entidades associativas que atual na área.   

Constata-se, pois, que o Poder Legislativo, na qualidade de representante dos interesses do povo, já vem se mobilizando desde o ano de 2012 e com maior intensidade nos últimos anos e meses, no sentido de prever em lei a atuação das associações de Proteção Veicular, cessando de vez com as insistentes ofensivas da SUSEP contra as entidades.

Em resumo, tudo indica que a atividade em questão será especificamente regulamentada num futuro bem próximo, seja através dos Projetos de Lei aqui citados, ou por qualquer outro meio. Dizemos regulamentada não para que saia da esteira da ilegalidade, mas sim, para que cessem os questionamentos acerca da ilegalidade e se estabeleçam regras sólidas para o negócio.

Assim, até que tal regulamentação ocorra, nenhuma restrição existe ao seu LIVRE EXERCÍCIO que, ao contrário do sustentado pela SUSEP e seus correligionários, não está condicionado à autorização, ou mesmo à fiscalização, da referida autarquia, por absolutamente não se tratar de seguros privados.

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