O fático e o jurídico no conceito de tributo

14/05/2017 às 22:03
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O tributo é um conceito jurídico-positivo. O legislador, a partir do material bruto da experiência, e segundo uma pauta axiológica, labora em normatividade jurídica aquilo que chamamos de tributo. Mas é um conceito fechado e absoluto? Saiba um pouco mais sobre isso.

O tributo é um conceito formulado pelo próprio ordenamento jurídico. Como soi acontecer, as instâncias legislativas colhem os dados da realidade empírica, valora-os e os submetem à roupagem da linguagem prescritiva e da lógica deôntica, segundo as necessidades da vontade legiferante e das  razoes comezinhas  da técnica instrumental de feituras das leis e do Direito. Do direito positivado e da sua interpretação judicial nascem as categorias e institutos jurídicos, a normatividade declarada pelo Estado, o dever-ser.

Com o conceito de tributo não poderia ser diferente. O legislador do CTN abeberou-se de dados extrajurídicos, oriundos, sobretudo, de classificações das ciências das finanças, para compor este conceito aglutinante de normas  que, ao todo, formatam o ramo do direito denominado Direito tributário.

Embora o Direito, para os fins a que se destina, modique a natureza das realidades, que é o seu material bruto de trabalho, busca, quase sempre, conservar a natureza ontológica dessa mesma realidade, e a inexorabilidade fática que acontece entre as causas e os efeitos, razão pela qual há muita semelhança entre as realidades pre-jurídicas e as realidades juridicamente positivadas.

Assim o é e justifica que, para efeitos não normativos, ou para efeitos de manuseio em outros quadrantes científicos, essas realidades possam conviver em mundos paralelos, cada qual com suas peculiaridades, intercambiantes, porém. Mas para fins de Direito, a realidade jurídica absorve e molda sempre a realidade fática subjacente, que se anula diante do novel ser, um ser jurídico, cujo atributo mais evidente é o dever-ser.

Mas o Direito não só incide sobre fatos brutos, juridicizando-os. Incide, igualmente, sobe fatos já juridicizados, porque o dever-ser – a normatividade – é também uma dimensão da existência social sobre a qual  também se debruça o legislador, seja para atribuir novos efeitos jurídicos  em uma espiral normativa  crescente, por força de uma pós modernidade que a tudo liquidifica e atomiza,  e precisa de injeções de prescrições de condutas, atualizando-as ao contexto social, seja  para reafirmar a essência do Direito que molda o fático com o que lhe é mais peculiar: o atributo da realidade deôntica, segundo os modais do proibido, do obrigatório e do permitido.

Deste modo, diante das três vertentes da atividade financeira do Estado mais evidentes ( recursos, gestão e dispêndio), o conceito de tributo, por se constituir em elemento positivamente agregador de dimensão econômica, patrimonial ou financeira do Estado, jamais poderia ser  haurido das perspectivas da gestão ou da despesa, senão dos recursos, as entradas que se agregam provisoriamente ou não ao patrimônio estatal.

Mas se a função mais manifesta do tributo é o carreamento de recursos novos às burras do Estado, seria de todo inútil, açambarcar o conceito de tributo daquelas entradas tidas pela ciência das Finanças como recursos de terceiros, posto que esses em nada acrescem o patrimônio estatal, já que são entradas com destino já comprometido pela própria natureza do ingresso, de que são exemplo os empréstimos obtidos pelo Estado.

Há, assim, uma sugestão de ordem ontológica e funcional a indicar ou a sugerir ao legislador que o conceito de tributo seja procurado nas dobras do conceito de receita pública, que é aquele tipo de recurso que incrementa o patrimônio do Estado, agregando-lhe substância nova e positiva. É neste sentido que se diz que o tributo é caso típico de receita pública.

 Em termos gerais, isto é uma verdade. Amiúde, não. O conceito de tributo é um conceito jurídico-positivo, já o dissemos em nosso Direito Tributário: Teoria e prática[1], repetindo o inesquecível Geraldo Ataliba[2]. Também José Souto Maior Borges, para quem “La caracterización de laobligación tributaria no puede ser obtenida antes de la consulta al derecho positivo de cada país, su base empírica”[3] .

De fato, para manter intacto o intercâmbio quase sempre necessário entre a realidade pre-jurídica e a realidade jurídica, é o que o legislador toma por regra a premissa de que o conceito de tributo deva coincidir com o conceito pre-juridico de receita pública, mas o faz, ao menos no ordenamento jurídico brasileiro, de forma parcimoniosa, já que atribui aos empréstimos compulsórios os contornos e a essência jurídica de uma espécie de tributo, conforme assim entende a mansa jurisprudência do STF[4].

Assim, para a Ciência das finanças, ciência de cunho especulativo e descritivo, os empréstimos não se caracterizam como receita pública, por não incrementarem positivamente o patrimônio estatal, mas isso não impediu que legislador constitucional o considerasse como espécie de tributo, referenciando-o, topograficamente, na rubrica “Do Sistema Tributário Nacional”, no Capítulo I do Título VI denominado “Da Tributação e do Orçamento”, a provar, a toda evidência, o caráter transformador do Direito:  Das realidades ônticas em realidades deônticas.

Deixando para trás essa questão dos empréstimos compulsórios, e ficando na generalidade dos casos, em que o conceito de tributo equivale, em essência, às receitas públicas, é de todo modo imperativo dizer que da mesma maneira que nem todo tributo é receita pública ( vide exemplo dos empréstimos compulsórios), nem toda receita pública é tributo.

Sim, ainda plainando pelo universo da Ciência das Finanças, a receita pública se divide em dois grandes grupos: as receitas originárias e as receitas derivadas. Aqui, mais uma vez a realidade jurídica preserva , ainda que minimamente, a ontologia da realidade subjacente, e, sintonizada com atual modelo de Estado – o estado fiscal - de quem é constructo e  construtora,  adentra no universo das receitas derivadas para buscar o conceito de tributo, vez que as receitas originárias, próprias do Estado patrimonial, estão fundamentadas no princípio da autonomia da vontade, em que a liberdade de contratar exige, sempre, a conjunção de duas vontades: a do Estado e a do particular porque, de forma direta, há algo que lhes é desejado, daí o evidente sinalagma, presente neste tipo de receita, o que provoca, por decorrência, uma relação jurídica horizontal vinculando as partes.

São exemplo de receitas originárias os ingressos decorrentes da exploração da economia pelo Estado, as compensações financeiras, como os royaties e participações especiais, os juros, os laudêmios, a “taxa” de ocupação de terrenos da Marinha. Outrossim, são originárias as tarifas cobradas pela prestação de serviço prestados por concessionárias de serviços públicos aos usuários, como a tarifa aeroportuária, criada pela lei 6.009, de 1973, cobrada pela Infraero. Há também receitas originárias assim consideradas pela própria lei, como  os direitos compensatórios ( Lei 9.019, de 1995)[5].

Nas receitas derivadas, o poder de império estatal, devidamente colmatado pela juridicidade constitucional e legal, para que assim se efetive um Estado democrático de direito, é a energia que ampara o seu fundamento. A obrigatoriedade do pagamento é, ai, evidente e esta obrigatoriedade, para conter o apetite  voraz do poder estatal, é ex lege - quer dizer, tais receitas decorrem diretamente da lei – porque manifestação do poder de império, cujo limite mais ostensivo é a necessidade também de uma vontade, mas não de uma vontade que se manifesta tête à tête, como nas receitas originárias, mas de uma vontade geral expressa pelo povo, de quem emana o poder, que o faz, em matéria de criação de tributos, utilizando-se da democracia representativa, cujo instrumento por excelência é a lei.

A receita derivada é, dessa forma, ex lege, não ex voluntate e essa obrigatoriedade é direta. A obrigatoriedade do pagamento das receitas originárias é reflexa, porque não decorre diretamente daquela vontade geral, mas de uma vontade particular que se mostra no mundo jurídico através de um pacto, de uma avença, de um acordo, de um contrato entre partes com interesses imediatos comuns.

A maioria das receitas derivadas tem como fundamento a sanção por ato ilícito. O tributo, malgrado seja um tipo de receita derivada, não. O tributo é, ou deveria ser, provocado, necessariamente, por conduta lícita do cidadão-contribuinte.

 De fato, se tomarmos como referencial o direito brasileiro, veremos que varias condutas ilícitas são pressupostos de uma sanção, de uma penalidade pecuniária, como as multas ou de outro tipo de reprimenda, como o perdimento, a expropriação e o confisco. O perdimento de bens encontra amparo no inciso XLV do artigo 5º da Constituição da República, e advém da provocação de dano ao Erário ou decorrente de condenação imposta pela prática de fato criminoso ( Arts. 32 e seguintes  e artigo 91, I, “a” e ‘b” do Código Penal); A expropriação  é cabível nos casos de glebas onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ( Art. 243, caput  da CF/88); o confisco aplica-se no caso de bens relacionados a tráfico de entorpecentes ( Parágrafo único do art. 243 da CF/88).

Ao lado do tributo, também é receita derivada não advinda da ilicitude, a desapropriação da propriedade ( Art. 5, XXIV, da CF/88), e o uso da propriedade particular no caso de iminente perigo público ( Art. 5, XXV da CF/88), razão porque essas medidas contra a propriedade ( não a pertinente ao tributo)  são indenizáveis.

Vejam ai, porque se não fosse para punir, não teria sentido o Estado buscar recursos para o seu financiamento na ilicitude. Seria uma inversão de valores manifesta e um perigo também, posto ficar sua situação fiscal a depender exclusivamente da conduta ilícita de um terceiro.

O fato de o Direito afastar a ilicitude como fundamento do tributo é mais uma prova de que a moldura jurídica abarca a ontologia das coisas e busca, na medida do possível, preserva-la, não obstante o brilho da juridicidade empregada que a transmuda em novo ser – o fato juridicizado.

É por isso que não pode o legislador, ao instituir o tributo, escolher como hipótese de incidência, determinado ato ilícito. Mas daí não se pode inferir, por exemplo, que a renda advinda de uma prática ilícita ( exemplo, tráfico de drogas) não possa ser tributada pelo imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza. É que não se pode confundir o aumento patrimonial oriundo da ilicitude, e que deve ser tributado, por enquadrar na definição legal  de renda ou proventos de qualquer natureza, com  a própria ilicitude. Neste exemplo, como reconheceu o STF, a ilicitude é mera circunstância acidental da norma de tributação. Quer dizer, pela ilicitude, ao infrator, ser-lhe-á aplicado as disposições do Direito Penal; pela ocorrência do fato gerador ( ter auferido a renda e proventos), a cobrança do Imposto sobre a renda. Diferentemente, ocorre com a importação ilícita, para a qual é aplicada a pena de perdimento ( não o pagamento do tributo), já que importar mercadorias é elemento essencial do tipo tributário[6].

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Vê-se, pois, que o Direito, para compor o conceito de tributo, fê-lo na licitude, mesmo porque a coincidência da conduta do cidadão com a conduta desejada pela lei é muito mais frequente do que a não coincidência. Pois é no bojo dos comportamentos lícitos, que o Estado se estriba para buscar seus recursos próprios, hauridos do patrimônio do cidadão-contribuinte, pelas razões previamente fixadas na lei.

Como observado, o conceito de tributo, embora tenha como material subjacente a realidade empírica ( o fato), só se perfaz com a juridicidade haurida do direito positivo (norma jurídica), construída a partir da pauta axiológica de cada sociedade e tempo histórico.

O Direito, diante do fato, e a partir dos valores do órgão legiferante, pode assumir o fato em sua inteireza, vestindo-o de juridicidade, mas sem deformá-lo em suas características ontológicas; pode, outrossim, alijá-lo de algumas de suas características, ou ainda, acrescentar outras, mas, em qualquer situação, o fato bruto, agora transmutado em fato jurídico, sempre prevalecerá mais do que o fato bruto em si mesmo, pois é da existência do Direito mostrar-se evidente, escondendo, quase sempre, a realidade subjacente, que míngua diante da juridicidade, que é mais forma do que substância, ou se quiser, uma substância moldada pelo querer da fôrma jurídica.

Na prática ou na teoria, a necessária segregação do tributo dos demais tipos de recursos públicos é de fundamental importância. Por várias razões, mas uma delas sobressai-se: o regime jurídico aplicável à espécie. Com efeito, se o tipo de recurso for caracterizado como tributo, a ele será aplicado o regime jurídico tributário, caracterizado por rígida disciplina constitucional, como as limitações constitucionais ao poder de tributar.

Caso o tipo de recurso for de natureza não tributária, é preciso buscar qual o plexo jurídico disciplina aquele tipo de recurso. Pode ser o Direito financeiro, o Direito administrativo ou algum ramo do Direito privado, mas não podemos esquecer que o Direito é uno, sendo a sua divisão em ramos apenas um recurso de ordem metodológica, epistemológica. Essa é a razão pela qual convém buscar o material empírico legislativo sobre o qual se debruça o estudioso do Direito para apreender o conceito de tributo.

São três os referenciais empíricos consubstanciados no direito positivo brasileiro para o conceito de tributo ( Constituição,  art. 9º  da Lei 5.320 e  art. 3º do Código Tributário nacional – Lei nº 5.172/66). Da sua análise acurada, encontramos espécimes de tributo  que coincidem completamente com o conceito de receita pública, tributo não caracterizado como receita pública, tributo sem caráter sancionador e tributo sancionador, a despeito do artigo 3º do CTN e também do que se falou até agora.

Isto é serio: Tributo com características sancionatórias? Sim, e este caráter de tributo-sanção é norma constitucional! Deveras, embora a Constituição não traga um conceito de tributo – e nem deveria trazê-lo -, salta aos olhos que ela fornece todos os elementos que permitem segregar o conceito de tributo dos demais recursos financiadores do Estado brasileiro. É do todo arquétipo constitucional que podemos identificar a teleologia do tributo, suas espécies, sua natureza jurídica e um perfil jurídico mínimo de cada uma das espécies tributárias e até a repartição da receita arrecada.

Há um detalhe digno de nota na Constituição de 1988. É o artigo  § 4º  do artigo 182 que prescreve:

Art. 182. (...)

§ 4º É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento,  sob pena, sucessivamente, de:

I - parcelamento ou edificação compulsórios;

II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;

III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais. ( grifos nossos)

 Ao nosso ver, este dispositivo altera profundamente a leitura que se possa fazer do artigo 3º do CTN que dissocia o tributo de sanção por ato ilícito. Ora, o Imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana (IPTU) é um tributo que poderá ser progressivo no tempo como uma penalidade ao proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado!

Este dispositivo vai de encontro frontal ao conhecido art. 3º do CTN que diz:

Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.

            Qualquer que seja a leitura do preceito constitucional não há como dissociá-lo de uma penalidade imposta ao proprietário do imóvel urbano, caso não cumprido a prescrição constitucional. Com efeito, respeitada o prévio parcelamento ou edificação compulsórios, é facultado ao Poder Público Municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado o imposto sobre a propriedade predial e territorial progressivo no tempo.

Ora, se considerarmos que o princípio da progressividade na prática legislativa de todos os tributos que adotam essa técnica de tributação tem  se revelado em percentuais crescentes de alíquotas, segundo um fator de discrinem previamente fixado, e considerando que o Estatuto da cidade - Lei nº 10.257/2001 -   adota exatamente essa técnica de alíquotas progressivas no tempo (majoração da alíquota pelo prazo de cinco anos consecutivos), no  caso de descumprimento das condições e dos prazos previstos na forma do caput do art. 5º daquela Lei, ou não sendo cumpridas as etapas previstas no § 5º do art, 5º do mesmo normativo, não há outra conclusão a ser manifestada a não ser reconhecer que, ao menos uma das facetas do tributo –  a progressividade das alíquotas do IPTU -, é forma sancionatória de conduta que não se amolda á politica urbana.

Mas essa conclusão não só advém da literalidade do dispositivo constitucional que, de forma expressa emprega  a expressão acima grifada por nós “ sob pena”, porque poder-se-ia interpretá-la, como o faz o insigne Sacha Calmon Navarro Coelho, no sentido de que a mesma “(...)significa o rol de providências a que ficará sujeito o mau proprietário pela disfunção da propriedade (...)”[7]

Ora, é verdade que no aspecto material da regra de incidência do IPTU, seja no seu arquétipo constitucional, seja nas poucas disposições do CTN acerca desse imposto, seja nas respectivas leis instituidoras, não encontramos nenhum traço sancionador nesse importante imposto municipal.

Mas se na hipótese de incidência, essa omissão é manifesta; não o é no aspecto valorativo da regra matriz de incidência, decomposto na base de cálculo e nas  alíquotas. A regra matriz de incidência tributária é um todo monolítico. Sua decomposição em seus conhecidos aspectos ( material, temporal, espacial, pessoal e valorativo) é operada  somente por questões de ordem epistemológica , conforme tão bem explicitado por Paulo de Barros Carvalho[8]. Daí que não se pode simplesmente desprezar um dos principais elementos da norma de tributação, porque se quer preservar a todo custo o artigo 3º do CTN. Este dispositivo foi sacrificado pela própria Constituição. O que fazer?

Exemplo de IPTU progressivo no tempo é instituído pela lei nº 15.234, de 1º de julho de 2010 no Município de São Paulo e que foi regulamentado recentemente pelo Decreto  nº 56.589, de 10 de novembro de 2015.

Prescreve o mencionado artigo 7º da Lei 15.234, de 1 de julho de 2010:

Art. 7º Em caso de descumprimento das condições e dos prazos estabelecidos para parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, será aplicado sobre os imóveis notificados o Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana Progressivo no Tempo – IPTU Progressivo, mediante a majoração anual e consecutiva da alíquota pelo prazo de 5 (cinco) anos, até o limite máximo de 15% (quinze por cento).

 § 1º O valor da alíquota a ser aplicado a cada ano será igual ao dobro do valor da alíquota do ano anterior.

 § 2º Será adotado o valor da alíquota de 15% (quinze por cento) a partir do ano em que o valor calculado venha a ultrapassar o limite estabelecido no “caput” deste artigo.

§ 3º Será mantida a cobrança do Imposto pela alíquota majorada até que se cumpra a obriga- ção de parcelar, edificar, utilizar o imóvel ou que ocorra a sua desapropriação.

§ 4º É vedada a concessão de isenções, anistias, incentivos ou benefícios fiscais relativos ao IPTU Progressivo de que trata esta lei.

Há quem veja a progressividade no tempo das alíquotas do IPTU como uma manifestação do caráter extrafiscal que se revela em maior ou menor monta em todo e qualquer tributo. Mesmo que construída sob o pálio de uma interpretação conforme a constituição do artigo  3º do CTN, discordamos dessa doutrina. Manifestação extrafiscal do tributo encontramo-la no § 4º do artigo 153 da Constituição, relativamente ao Imposto territorial rural ( ITR).

Talvez seja o caso de colocarmos face á face os dois dispositivos constitucionais e fazermos uma comparação em suas respectivas dicções:

Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:

(...)

VI - propriedade territorial rural;

(...)

§ 4º O imposto previsto no inciso VI do caput:  

I - será progressivo e terá suas alíquotas fixadas de forma a desestimular a manutenção de propriedades improdutivas

(...)

Art. 182. (...)

§ 4º É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento,  sob pena, sucessivamente, de:

I - parcelamento ou edificação compulsórios;

II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;

III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais. ( grifos nossos)

Observem que a dicção dos preceitos constitucionais é completamente diferente.

A progressividade do ITR é ontológica, conatural, de nascença, como se diz aqui no meu querido Nordeste. No caso do ITR, a Constituição não prescreve uma sanção, prevê apenas que aquele imposto será progressivo e terá suas alíquotas fixadas de forma a desestimular a manutenção de propriedades improdutivas, não para punir o proprietário da propriedade que não cumpre sua função social. Aqui, a extrafiscalidade é ostensiva, evidente querer do Estado em induzir um comportamento ( desestimular) e o faz através da tributação que já nasce, assim, indutora.

No caso do IPTU, também encontramos no texto constitucional uma progressividade inata, aquela fundada no princípio da capacidade contributiva pela conformação do § 1º  do artigo 145 (pessoalidade dos impostos segundo a capacidade contributiva) com o § 1º do artigo 156 ( progressividade em função do valor do imóvel).

Tanto a progressividade extrafiscal do ITR como a progressividade fiscal do IPTU encontram-se solenemente acomodadas no Título VI ( Da tributação e do orçamento), particularmente no Capítulo I( Do sistema tributário Nacional).

 Não é o que acontece com a progressividade no tempo a que se refere o § 4º  do art. 182 da Constituição. Observem que essa progressividade está prevista em um outro contexto normativo –  No Título VII, da Ordem econômica e financeira, Capítulo II, Da política urbana.

 Demais disso, essa progressividade está contida numa ordem crescente de institutos evidentemente sancionadores, estando a progressividade no tempo a meio termo, entre o parcelamento ou edificação compulsórios e a desapropriação.  Aqui a progressividade não é da ontologia da regra de incidência segundo o arquétipo constitucional e legal do IPTU, mas um plus que se agrega à incidência da tributação motivado por um comportamento do proprietário que não segue as premissas do plano diretor do Município, instrumento por excelência da ordenação urbana.

Dessa forma, conquanto a natureza das coisas repute como inapropriado à tributação o caráter punitivo, com o que o artigo 3º do CTN é expressão máxima dessa realidade, podemos dizer que o constituinte de 1988, ao menos em relação à progressividade do IPTU, tingiu esse dispositivo de uma matiz sancionadora e, doravante, jamais, aquele dispositivo será lido como antes da Constituição de 1988.

Mas tal assertiva não elimina a regra geral de que o tributo não constitui sanção por ato ilícito. Tampouco podemos pensar que o § 4º  do art. 182 da Constituição abre espaço ao legislador ordinário  para definir como hipótese de incidência uma ilicitude qualquer. Não, a Constituição não foi a tanto. O enunciado constitucional é tópico, específico e restringe-se à progressividade do IPTU nos exatos termos como ali prescrito.

Mas vencida esta questão da ilicitude no cerne do conceito de tributo, voltemos a outras características presente ali no artigo 3º do CTN. De início, salientamos que dos traços ali mencionados, dois deles são elementos meramente acidentais : a instituição através de lei e a cobrança mediante atividade da administração plenamente vinculada.

De fato, por força de enunciado constitucional e também do CTN o tributo deve ser instituído por lei ( ou por medida provisória, quando presentes os seus requisitos). Mas o dever-ser  instituído por lei entabulado no conceito legal não é da ontologia do tributo, é, porém, um específico e fundamental requisito de validade do mesmo. Isto quer dizer que se determinada exação caracterizada pelos seus requisitos essenciais como tributo não deixa de ser tributo apenas porque o veículo normativo não foi uma lei.

É, no entanto, uma exação inconstitucional. Da mesma forma, tributo legalmente instituído com as características típicas de tributo não deixa de ser tributo porque foi cobrado ao teor de normas de cobrança e fiscalização associadas a uma atividade administrativa não vinculada. A cobrança do tributo mediante atividade administrativa plenamente vinculada é, igualmente, requisito de validade da sua cobrança, ou melhor das normas reguladoras da cobrança. A cobrança do tributo feita ao arrepio do artigo 3º do CTN, tornará inválida a cobrança, mas o tributo se manterá incólume[9].

Para a continuidade de nossa análise do conceito de tributo, convém trazermos à baila o artigo 9º da Lei 4.320, de 17 de março de 1964. Trata-se de um conceito construído nas dobras do Direito financeiro, antes do CTN, que é a Lei 5.172, de 1966. Não vai de encontro ao conceito de tributo estatuído pelo art. 3º do CTN. Ao contrário, complementa-o, senão vejamos:

Art. 9º Tributo é a receita derivada instituída pelas entidades de direito publico, compreendendo os impostos, as taxas e contribuições nos termos da constituição e das leis vigentes em matéria financeira, destinado-se o seu produto ao custeio de atividades gerais ou especificas exercidas por essas entidades.

Do conceito do mencionado art. 9º, queremos enfatizar apenas a menção ao tributo com receita derivada. Isto é característica do tributo, muito embora nem toda receita derivada seja tida como tributo.  Este fato liga-se à compulsoriedade aludida no art. 3º do CTN. Há também de registrar no conceito o fato do tributo ser instituído pelas entidades de direito público – leia-se: as entidades da federação. A destinação mencionada no dispositivo é, hoje, insuficiente, já que o tributo serve ao custeio das atividades estatais, gerais ou específicas, mas também ao custeio de certas atividades prestadas por entidades parafiscais, a exemplo dos Conselhos de profissões regulamentas, financiados por contribuições sócias, do tipo corporativas.

Do artigo 3º do CTN, destaca-se uma característica fundamental. O tributo é uma prestação, o resultado de uma relação obrigacional, não a simples manifestação do poder de império. O adimplemento da prestação põe fim à obrigação, que é vínculo provisório por natureza, o que afasta a perenidade da relação fisco-contribuinte[10].

O tributo é uma prestação – objeto de uma relação jurídica obrigacional – expressa em pecúnia. É uma prestação pecuniária. Sobre a natureza pecuniária da prestação também aludida no art. 3º do CTN, o tributo, exemplo mais evidente de receitas derivadas, é o tipo de recurso estatal próprio do  atual modelo de Estado moderno – o Estado fiscal - que se fortaleceu desde que o tributo perdeu as características de entrega em bens e serviços e, por força da monetização, que iniciou-se em fins da Alta Idade Média, migrou para uma contribuição pecuniária que, por sinal, deu inicio, ao hoje aclamado princípio democrático da generalidade de tributação.

Por ser receita derivada, é uma prestação compulsória. Mas toda obrigação é exigível, as receitas originárias, também. Mas o tributo, em seu nascedouro, não há ato de vontade do contribuinte. Os tributos, desde sua gênese, são impostos, não voluntários. As receitas originárias, as tarifas, preços públicos que são, nascem por ato de vontade, uma comunhão de vontade, a do Estado e a do particular. É desse ato de vontade que perfaz o contrato e é do contrato, da avença, que nasce a obrigatoriedade de adimplemento da obrigação ex voluntate. O tributo é objeto de uma relação jurídica ex lege.


Conclusão

Apesar de o conceito de tributo ser obra do próprio legislador, o certo é que as instâncias legislativas não podem desprezar por completo a realidade natural das coisas. É certo que o Direito molda o fático, enclausurando-o com o atributo da juridicidade. O fático moldado pelo jurídico quase sempre guarda muitas das propriedades do fato bruto, daí que o conceito de tributo encastela-se por completo no âmbito dos recursos públicos.

É, de regra, recurso público caracterizado como receita pública, aquele tipo de recurso que incrementa positivamente o patrimônio estatal. Demais disso, é tipo de receita publica derivada, que se fundamenta no poder de império, devidamente submetido á legalidade. É por isso que o tributo é uma prestação – o objeto de uma relação jurídica obrigacional, de natureza transitória e instituída por lei. Uma prestação pecuniária, como marca do moderno Estado fiscal,  não caracterizada como sanção de ato ilícito, de regra.


Referências

ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária, 4 ed.re. e atual. em função da constituição de 1988,Ssão Paulo :Revista dos Tribunais, 1990.

BORGES, José Souto Maior. Obligación tributaria: una introducción metodológica. Trad. Leandro Stok et. al. Buenos Aires: Legis Argentina, 2011.

CARVALHO, Paulo de Barros.direito tributário, linguagem e método,  3 ed. São Paulo: Noeses, 2009.

COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito tributário brasileiro, 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.

DUARTE, Francisco Leite. Direito tributário: teoria e prática,2 ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, Escola Superior de Advocacia. Seccional Paraná. Código Tributário Anotado. GRILLO, Fábio Artigas e DA SILVA, Roque Sérgio D’Andrea Ribeiro ( Coordenadores), 2014.

SCHOUERI, Luis Eduardo. Direito tributário, 3 ed.São Paulo:Saraiva, 2013.


Notas

[1] DUARTE, Francisco Leite. Direito tributário: teoria e prática,2 ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p.75.

[2] Hipótese de incidência tributária, 4 ed.re. e atual. em função da constituição de 1988,São Paulo :Revista dos Tribunais, 1990, p.19.

[3] Obligación tributaria: una introducción metodológica. Trad. Leandro Stok et. al. Buenos Aires: Legis Argentina, 2011, p 188.

[4] RE 146733. Relator Min. Moreira Alves. Pleno, DJ 06.11.1992.

[5] DUARTE, Francisco Leite, Direito Tributário: Teoria e prática, op. Cit. p.66.

[6] STJ, REsp 984607/PR.2 turma, j. 07.10.2008.Relator Min. Castro Moreira Meira.

[7] Curso de Direito tributário brasileiro, 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 247.

[8] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método,  3 ed. São Paulo: Noeses, 2009, pp 609 e seguintes.

[9] ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, Escola Superior de Advocacia. Seccional Paraná. Código Tributário Anotado. GRILLO, Fábio Artigas e DA SILVA, Roque Sérgio D’Andrea Ribeiro ( Coordenadores), 2014, p. 27.

[10] SCHOUERI, Luis Eduardo. Direito tributário, 3 ed.São Paulo:Saraiva, 2013, p.138.

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Sobre o autor
Francisco Leite Duarte

Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil, Professor de Direito Tributário do Centro Universitário de João Pessoa, da Universidade Estadual da Paraíba e da Escola Superior da Magistratura-PB, um dos vencedores do Prêmio nacional de educação fiscal com o Programa de extensão Receita para a cidadania e para o desenvolvimento (UEPB), Autor de Direito Tributário: Teoria e prática ( Revista dos Tribunais, 2015, 864 páginas).

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