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A construção dos direitos humanos por meio do diálogo intercultural

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07/06/2017 às 11:10
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4 A COERÇÃO E A DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS

A formação de um sistema de direitos humanos, construído com base no respeito cultural, não nos parece algo impossível. Existem valores que são compartilhados por todas as culturas, como por exemplo o respeito à vida, a valorização da família, o espírito de compaixão em face do sofrimento alheio. É necessário, apenas, dialogar interculturalmente, sem a arrogante pretensão de impor pontos de vista predefinidos.

Marsilac (2010, p. 33-50), por exemplo, defende que não é possível fundamentar os direitos humanos em conceitos metafísicos. Por outro lado, sustenta que um discurso pragmático, voltado à uma argumentação tópica, viabiliza o lançamento das bases dos direitos humanos, haja vista que existem máximas socialmente aceitas em todas as culturas que dispensam fundamentação argumentativa, podendo, por consequência, serem utilizadas para a defesa dos direitos humanos.

No entanto, acreditamos que uma argumentação pragmática não pode servir para defender direitos humanos já predeterminados, sem ofertar espaço para uma efetiva participação intercultural. Essa via somente será legítima se o pragmatismo oportunizar uma construção da qual participem todos os povos, com as suas mais diferentes visões de mundo.

Após a formação de um arcabouço consensual em torno de direitos humanos a serem observados por todos os povos, ainda que mínimo, é necessário sair do âmbito da mera formulação de declarações-promessas, sendo imprescindível a construção de um sistema jurídico capaz de assegurar a plena observância desses direitos.

Isso implica a formação de um sistema de aplicação compulsória dos direitos humanos formulados dialogicamente, mediante a incidência de força coercitiva contra os violadores. Essa proteção, pelo menos no contexto das relações internacionais na atualidade, ainda vinculadas firmemente a conceito de soberania estatal, somente parece ter alguma eficácia, caso tais direitos sejam positivados na ordem jurídica interna de cada país ou, pelo menos, que a ordem normativa local recepcione com a mesma força vinculante de sua legislação interna, os documentos internacionais que versarem sobre direitos humanos, aos quais o Estado tenha manifestado a sua adesão.

Isso ocorre por que, como lembra Perelman (2005, p. 404),

Apenas numa comunidade suficientemente homogênea, em que existe um consenso suficiente sobre o que é razoável ou desarrazoado, é que pode funcionar de modo satisfatório um sistema de direito democrático. Na falta de tal consenso sobre as questões essenciais que se colocam à comunidade, o sistema de direito e os órgãos encarregados de aplicá-lo carecerão da autoridade necessária para impor-se de outro modo que não seja a força. Aliás, é por isso que a existência de uma ordem jurídica internacional pertence à utopia quando não há uma comunidade internacional suficientemente homogênea do ponto de vista cultural e moral.

A formação de um sistema protetivo de direitos humanos, objeto de negociação entre todos os povos, demanda, após a sua estruturação, que uma ordem coativa seja construída, para viabilizar a aplicação de sanções aos potenciais infratores, uma vez que o direito desprovido de punições em potencial, em nada se diferencia de uma proclamação de princípios morais, sem força de imposição no mundo dos fatos[8].

Dadas as dificuldades de formação de uma ordem jurídica internacional voltada à defesa dos direitos humanos, provida de capacidade sancionatória contra eventuais infratores, enxergamos como caminho mais seguro para a proteção dos direitos humanos produzidos a partir de um consenso universal, a incorporação deles à ordem interna de cada país, na qual eles poderão se valer dos mecanismos jurídicos estatais de proteção como forma de desestimular violações e assegurar a punição de eventuais infratores.

Sem a interferência da coerção, os direitos humanos, ainda que sejam construídos a partir de um consenso universal a respeito de valores a serem protegidos, continuarão destinados a permanecer como declarações de boas intenções, sem capacidade de assegurar a existência de um mundo no qual os seres humanos possam ser, em sua totalidade, tratados como humanos.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Formular direitos humanos com pretensão universal a partir de valores que contemplam apenas uma parcela da humanidade não é uma postura adequada, pois não se pode considerar um bloco axiológico como superior aos demais.

Direitos humanos universais precisam ser construídos a partir de um diálogo intercultural, no qual cada uma das partes dialogantes esteja disposta a se deixar influenciar pelas demais, viabilizando, dessa forma, a construção de consenso em torno de valores comuns a serem protegidos.

Após a formação do consenso em torno dos valores comuns a serem tutelados como direito de todo homem, que viva em qualquer lugar do planeta, é necessária a construção de um aparelho de proteção com força coercitiva, capaz de sancionar todos os potenciais violadores dos direitos humanos, pois, sem isso, tal classe de direito, independente da sua forma de construção, persistirá como um mero conjunto de boas intenções, sem efetividade.

Considerando que ainda persiste na atualidade uma forte prevalência, no âmbito internacional, do conceito de inviolabilidade da soberania de cada Estado, consideramos como forma mais segura de proteção aos direitos humanos construídos a partir de um consenso universal, a incorporação deles ao arcabouço normativo interno ou, pelo menos, que o sistema jurídico dos países passem a conceder aos documentos internacionais aos quais tenham manifestado adesão a mesma proteção outorgada a produção legislativa local.

 Do contrário, os direitos humanos, ainda que produzidos com base consenso universal, permanecerão desprovidos da força necessária para se impor em face de potenciais violadores. 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

ARISTÓTELES. Retórica; tradução e notas Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2005.

COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

JULLIEN, François. O diálogo entre as culturas: do universal ao multiculturalismo; tradução André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2009.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito; tradução João Batista Machado, 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

MARSILLAC, Narbal de. Direitos humanos na perspectiva tópico-retórica e pragmatista: uma ética Pós-Humanista. Prima Facie – Revista de Ética, Faro, n. 6, 2º semestre 2010, p. 33-50.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos do Homem. Disponível em: < http://www.amnistia-internacional.pt/dmdocuments/DUDH.doc>. Acesso em: 26 ago. 2014.

PERELMAN, Chaim; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação; tradução Maria Ermantina Galvão.  São Paulo: Martins Fontes, 1996.

______. Ética e direito; tradução Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2. ed.  São Paulo: Martins Fontes, 2005.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos. São Paulo: Cortez, 2013.

______. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática, 8. ed. São Paulo: Cortez, 2011.


Notas

[1] Comparato (2008, p. 237-253), ao traçar o histórico do ambiente de construção do documento internacional que ficou conhecido como Declaração Universal dos Direitos Humanos, informa que a intenção inicial era produzir um documento vinculante, capaz de obrigar todos os povos a observarem os seus preceitos. No entanto, em decorrência das acesas divergências existentes entre os representantes dos países participantes de sua elaboração, optou-se pela edição, apenas, de uma Recomendação da Assembleia Geral das Nações Unidas aos seus membros. O mesmo autor ainda noticia que o núcleo central da Declaração foi extraído do discurso do presidente americano Franklin D. Roosevelt, proferido em 06 de janeiro de 1941, durante o qual ele sustentou que as quatro liberdades a serem defendidas seriam a liberdade de palavra, de crença, bem como de convivência a salvo do temor e da necessidade. Isso demonstra que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, apesar de sua ambição universalista, encontra-se fortemente inspirada por valores ocidentais, em especial dos vencedores da Segunda Guerra Mundial.

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[2] Os países do bloco socialista, por exemplo, liderados pela União Soviética, optaram pela abstenção.

[3] “Preâmbulo: Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo; Considerando que o desconhecimento e o desprezo dos direitos do homem conduziram a atos de barbárie que revoltam a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os seres humanos sejam livres de falar e de crer, libertos do terror e da miséria, foi proclamado como a mais alta inspiração do homem; Considerando que é essencial a proteção dos direitos do homem através de um regime de direito, para que o homem não seja compelido, em supremo recurso, à revolta contra a tirania e a opressão; Considerando que é essencial encorajar o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações; Considerando que, na Carta, os povos das Nações Unidas proclamam, de novo, a sua fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres e se declararam resolvidos a favorecer o progresso social e a instaurar melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla; Considerando que os Estados membros se comprometeram a promover, em cooperação com a Organização das Nações Unidas, o respeito universal e efetivo dos direitos do homem e das liberdades fundamentais; Considerando que uma concepção comum destes direitos e liberdades é da mais alta importância para dar plena satisfação a tal compromisso:”

[4] A título de ilustração podem ser citados os seguintes documentos ocidentais: a Carta Magna Inglesa de 1215; a Declaração de Direitos inglesa (Bill of Rights), de 1689; a Declaração de Independência e a Constituição dos Estados Unidos da América, de 1776 e as Declarações de Direitos da Revolução Francesa, de 1789.

[5] Segundo Santos (2013, p. 18), “a vitória histórica dos direitos humanos traduziu-se muitas vezes num ato de violenta reconfiguração histórica: as mesmas ações que, vistas da perspectiva de outras concepções de dignidade humana, eram ações de opressão ou dominação, foram reconfiguradas como ações emancipatórias e libertadoras, se levadas a cabo em nome dos direitos humanos.”

[6]Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.

[7] A argumentação na Nova Retórica tem como ponto de partida um elemento argumentativo provido de razoabilidade, uma vez que, segundo os seus adeptos, todo discurso é dirigido a um auditório particular.

[8] Kelsen (1998, p. 35), lembra que o direito constitui uma ordem essencialmente coativa, o que evidencia que sem a capacidade de imposição de suas prescrições, ainda que pela força estatal, o direito se descaracteriza como ordem social normativa.

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Sobre o autor
Gilvânklim Marques de Lima

Doutor e mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Juiz Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Gilvânklim Marques. A construção dos direitos humanos por meio do diálogo intercultural. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5089, 7 jun. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58279. Acesso em: 7 mai. 2024.

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