Introdução
Decerto que a crise na segurança pública não é problema exclusivo de um ou outro estado da Federação, posto que se trata de questão que vêm sendo discutida a nível nacional, ante a crescente onda de criminalidade que toma conta da sociedade atual. Contudo, deve-se reconhecer que os Estados da federação ditos menos desenvolvidos, ao se debaterem com o problema da criminalidade, passam por uma situação mais grave, mormente pela dificuldade que tem o poder público de combater o crime, cada vez mais organizado, em virtude de várias questões de ordem social política, jurídica, que não convém sejam aqui debatidas.
Não se pretende que a Administração, como se dispusesse de uma vara de condão, acabe com todos os problemas relativos a segurança pública enfrentados atualmente. Entretanto, um mínimo de investimento e infra–estrutura colocada à disposição da sociedade para garantia da segurança pública deve ser exigida por parte do Estado, ante a situação de insegurança que atualmente atravessam várias cidades espalhadas pelo interior dos Estados mais pobres, situação esta que já atinge o limiar da insensatez.
Como exemplo dessa situação pode-se citar a Comarca de Santa Luzia do Paruá, no Maranhão, da qual o autor é Promotor titular, e cujos altos índices de criminalidade são conhecidos no Estado do Maranhão. Atualmente, tem-se um Delegado de Polícia Civil, titular de Santa Luzia do Paruá e que dá cobertura aos outros dois Municípios (Nova Olinda e Presidente Médice), em casos urgentes, e não existem agentes ou escrivães de polícia de carreira. O único veículo à disposição (Fiat Elba 1995) está em péssimas condições de uso, quase sempre ficando em manutenção.
A mesma situação se verifica em relação a Polícia Militar. Na realidade, em Santa Luzia do Paruá, cidade de cerca de 35 mil habitantes, o máximo que se têm observado são dois policiais militares, por dia, em atividade nesta cidade, apesar de a lotação ser um pouco maior (cerca de quatro policiais). Para Nova Olinda existem dois policiais militares em serviço e em Presidente Médice não se tem notícia de nenhum.
Este é apenas um exemplo, que se verifica em várias outras cidades dos Estados menos favorecidos do Brasil. Em casos que tais, onde não há um mínimo razoável de investimento e nem de infra-estrutura de pessoal e material_ que deveria ser providenciada pelo Estado, posto que seu dever constitucionalmente imposto_ para garantia da ordem pública, não se pode negar que fica sujeita a Administração Pública à responsabilidade civil pelos danos que sofrerem os cidadãos pela falta de oferecimento do serviço essencial da segurança pública à população.
Da obrigação Estatal em garantir a segurança pública
Na realidade, a questão da segurança pública confunde-se com a própria origem e razão de existir do Estado. Ë que segundo a Teoria do Pacto Social, de Jean Jacques Russeau, de grande aceitação no direito internacional e pátrio, o principal motivo que levou as pessoas a viverem em comunidade, abrindo mão de certas liberdades individuais em prol de um organismo que os representaria foi justamente a questão da garantia da segurança dos grupos de indivíduos.
É que nos primórdios, as pessoas viviam em grupos familiares onde prevalecia a autodefesa como meio de garantia da segurança. Vigorava assim a lei do mais forte. Com o passar do tempo, e com o crescimento desses grupos, as pessoas passaram a indicar uma pessoa ou pequeno grupo de pessoas que as representaria, e em relação as quais se submeteriam abrindo mão de parte de suas liberdades individuais, sendo que a principal obrigação destes escolhidos era cuidar da segurança e da proteção de todo o grupo, tanto em relação aos conflitos internos quanto em relação aos externos. A partir daí o Estado foi evoluindo até as formas mais modernas, mas a obrigação de proteção aos seus nacionais jamais foi retirada do Estado, em nenhum dos ordenamentos jurídicos do mundo.
Deste modo, a proteção real da sociedade é atribuição intrinsecamente ligada à própria razão de ser do Estado. E nem poderia ser diferente, posto que se o Estado não se prestasse à garantia da segurança do indivíduo, teríamos um caos social, com o império da lei do mais forte e não haveria ambiente para a vida em sociedade nos moldes atuais.
Assim o Estado não pode se afastar ou se eximir dessa sua obrigação primária de garantir a segurança de todos os que nele se encontrarem.
Nesse sentido é que a Carta Magna de 1988 estabelece cabalmente o dever do Estado em garantir a segurança pública:
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
I-polícia federal;
II-polícia rodoviária federal;
III-polícia ferroviária federal;
IV-polícias civis;
V-polícias militares e corpos de bombeiros militares.
§ 4o Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvadas a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as Militares.
§ 5o Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública...
§ 6o As policias militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do exercito, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.
Pela definição constitucional já é possível notar que a Segurança Pública destina-se a proteger a própria ordem social e os bens jurídicos mais importantes para o indivíduo, quais sejam, a vida, saúde, incolumidade física, patrimônio, entre outros, daí por que é dever do Estado e direito de todos.
E a tal conclusão chega-se não só pela leitura dos dispositivos acima transcritos, mas também pela interpretação integrativa de todo o texto Constitucional.
Assim é que a cidadania e a dignidade da pessoa humana são fundamentos da República Federativa do Brasil, que tem como objetivos fundamentais a construção de uma sociedade livre, justa e solidária além de promover o bem de todos.
Demais disso, a Constituição garante a todos os brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
E é através da política de segurança pública que o Estado tem como garantir as inviolabilidades acima mencionadas. Na realidade, a segurança pública compreende todo um conjunto de ações, tanto na esfera política, quanto na administrativa, judicial e legal. Contudo, é através do poder de polícia do estado que se concretizam de maneira mais eficiente às ações de segurança pública.
De acordo com Julio Fabbrini Mirabete, em seu Código de Processo Penal Interpretado, Atlas, nona ed. pg. 87:
"Instrumento da Administração, a Polícia é uma instituição de direito público, destinada a manter a paz pública e a segurança individual. Nos termos do ordenamento jurídico do país cabe à Polícia as funções administrativas (ou de segurança), de caráter preventivo, em que deve garantir a ordem pública e impedir o cometimento de fatos que lesem ou ponham em perigo bens individuais ou coletivos e a função judiciária, de caráter repressivo, quando deve, após a prática de uma infração penal, recolher elementos para que se possa instaurar a competente ação penal contra autores do fato".
De acordo com o texto Constitucional acima transcrito, é dos Estados da Federação a responsabilidade pelas ações relativas à Polícia Civil do Estado e também a Polícia Militar, sendo que a primeira exerce, prioritariamente, as funções de Polícia Judiciária e a segunda as funções repressivas e ostensivas.
Via de regra, as diversas Constituições Estaduais trazem em seu bojo normas de eficácia plena e imediata que atribuem ao Governo do Estado e ao órgão central do Sistema de Segurança Pública a organização e coordenação, com a finalidade de garantir a eficiência dos órgãos responsáveis pela segurança pública.
Portanto, a disponibilização de meios eficientes para garantia da segurança pública não é mera atividade discricionária do Estado, mas trata-se de atividade plenamente vinculada à determinação Constitucional.
Se hodiernamente já é difícil a garantia da segurança pública, mesmo dotando-se a polícia dos recursos humanos e materiais adequados, como acontece nos Estados do Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo, avalie-se a situação por que passam várias cidades do Brasil onde a força pública não dispõe de um mínimo aceitável de meios humanos e materiais para enfrentar o banditismo e auxiliar o Judiciário e o Ministério Público nas suas funções legais.
Desta forma, em face do previsto no art. 5o, inciso XXXV, da CF/88 que institui o princípio da inafastabilidade do judiciário, uma vez que ameaçado constantemente e já deveras lesionado, o direito coletivo à segurança pública, pela omissão do Estado em oferecer condições mínimas para desenvolvimento da atividade policial, é plenamente cabível o acionamento do Judiciário para reparar os danos causados aos cidadãos.
Da responsabilidade civil do Estado pela omissão em prestar o serviço essencial da segurança pública
Foi a jurisprudência francesa, a partir do caso "Blanco", de 1873, que encetou a elaboração de teorias sobre a responsabilidade do Estado sob o prisma do direito público, originando, assim, a chamada teoria da culpa do serviço.
Na feliz síntese de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, em sua obra Direito Administrativo, Atlas, 12 ed., p. 504:
Essa culpa do serviço público ocorre quando: o serviço público não funcionou (omissão), funcionou atrasado ou funcionou mal. Em qualquer dessas três hipóteses, ocorre a culpa (faute) do serviço ou acidente administrativo, incidindo a responsabilidade do Estado independentemente de qualquer apreciação de culpa do funcionário.
Nesse sentido, tem ampla aplicação no direito pátrio a teoria da faute du service, vale dizer, o Estado responderá se ficar caracterizada sua inércia, omissão ou falha na prestação de serviço público essencial, como é o caso da segurança pública que deveria ser garantida.
O Supremo Tribunal Federal, ainda no ano de 1968, em julgado relatado pelo Ministro Temístocles Cavalcanti, assentou:
A administração pública responde civilmente pela inércia em atender a uma situação que exigia a sua presença para evitar a ocorrência danosa. (RDA 97/177)
Ainda na lição de Maria Sylvia Zanella di Pietro, in op cit, p. 508: a culpa do serviço público, demonstrada pelo seu mau funcionamento, não funcionamento ou funcionamento tardio é suficiente para justificar a responsabilidade do Estado.
No mesmo diapasão, a lição de Rui Stoco, em sua obra Responsabilidade Civil e sua interpretação jurisprudencial, Revista dos Tribunais, 1994, pg. 270, verbis:
Por ela não se indaga da culpa do agente administrativo, mas apenas da falta objetiva do serviço em si mesmo, côo fato gerador da obrigação de indenizar o dano causado a terceiro.
Mencionado autor aponta como exemplo de jurisprudência sobre a responsabilidade do Estado decorrente de omissão do poder público, dentre outros, os seguintes julgados:
Quando provada a culpa por omissão ou falta de diligências das autoridades policias, o Estado responde civilmente pelos danos decorrentes de depredações praticadas pela multidão enfurecida (STF – 1ª T - RE – Rel Barros Barreto- j. 11.10.1951 – RT 225/581)
Quando a administração pública se abstém de praticar atos ou de tomar providências que a lei lhe impõe e de sua inércia resulta dano, a culpa se configura e sua conseqüente reparação surge como imperativo indeclinável de justiça. Não se concebe a existência de Estado que não tenha como função precípua a tutela jurídica, isto é, a garantia da ordem. (TJMG – 2ªC - Ap – Rel Gonçalves da Silva - j. 24.3.1955 – RF 165/243)
Por outro prisma, não se deve olvidar que a Carta Magna, em seu art. 37, § 6º, adotou a teoria da responsabilidade objetiva da Administração Pública (pessoas jurídicas de direito público), bem como das pessoas jurídicas de direito privado, prestadoras de serviços, desde que haja o nexo causal, ou seja, que haja um dano causado a terceiros em decorrência da prestação de serviços públicos de maneira defeituosa.
Demonstrada a viabilidade da tese acima apresentada, resta acrescentar que deve recorrer ao judiciário, para obter a reparação dos danos que porventura tiver sofrido, todo cidadão que efetivamente tiver sido lesionado pela falta de presença física do poder público na repressão aos crimes, bem como na atuação da polícia judiciária após o cometimento do delito, e cujos prejuízos poderiam ter sido evitados ou minorados com a presença e atuação da força pública no momento oportuno, segundo os critérios de razoabilidade.
Talvez assim, tendo que indenizar os cidadãos que forem prejudicados pela sua inoperância, o Estado, através de seus agentes, se conscientize da importância de não se medir esforços no sentido de aprimorar a segurança pública, em todo o território nacional.