Capa da publicação Sentença condenatória x pedido de absolvição pelo Ministério Público
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A invalidade do artigo 385 do Código de Processo Penal frente à Constituição da República de 1988

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3 INCOMPATIBILIDADE DO ARTIGO 385 DO CPP COM O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

3.1 Limitações ao Poder legislativo

O Os princípios constitucionais não limitam apenas o Judiciário, mas também as outras duas esferas de poder: o Executivo e o Legislativo. Quanto à atuação do Poder Executivo, não cabe tecer maiores comentários nesse estudo, que não pretende esgotar o tema da atuação estatal. Quanto ao poder legislativo, vejamos:

O legislador infraconstitucional não tem carta branca para livremente delimitar as condutas que devem ser penalizadas, tampouco as consequências jurídicas que dela serão derivadas na ocasião do processo penal. Ao contrário, sua atuação se subordina aos Princípios trazidos pelo poder constituinte. (Nessa seara, cumpre fazer breve menção à discussão em torno da interpretação do termo “ilimitado” quando utilizado para caracterizar o Poder Constituinte Originário. De um lado, estão os que, conferindo valor literal ao vocábulo, afirmam que eventual nova constituição, emanada de nova assembleia constituinte, não se vincularia a resguardar os atuais direitos e garantias constitucionalmente dispostos. Infelizmente, este é o atual posicionamento do Supremo Tribunal Federal. Do outro lado, está a parcela da doutrina que, de modo mais restritivo, confere interpretação diversa ao termo “ilimitado”, adotando a ideia de que, embora não esteja preso à redação do texto da constituição em vigor, o legislador responsável por elaborar nova Carta deve assegurar os direitos fundamentais anteriormente existentes, em obediência ao que denominaram “Superprincípios”.)

Além de ser subordinado aos ditames constitucionais, o legislador deve observar as diretrizes emanadas de princípios penais, tais como a Intervenção Mínima, que resulta em dois subprincípios: Fragmentariedade e a Subsidiaredade. Através deles, impõe-se a necessidade de que não estejam sob a proteção do Direito Penal toda a universalidade de bens jurídicos; ao contrário, serão objeto de tutela penal aqueles bens consagrados pelo ordenamento como sendo de maior importância. Serão assim considerados os que não podem ter sua proteção garantida através de simples sanção civil. Já que a pena é um meio extremo, o Direto Penal só atuará em caso de grave ataque a bens jurídicos importantes, considerando-se, portanto, a necessidade e a eficiência da sanção a ser cominada.

Ao lado das normas de direito material, figuram as normas de caráter processual. Essas, por obvio, também têm suas disposições subordinadas à Constituição da República, devendo estar em conformidade com os princípios dela emanados. Tal afirmação pode gerar grande paradoxo em razão da já exposta inclinação essencialmente inquisitória e autoritária do Código de Processo Penal. Diante disso, deve haver adaptação da legislação anterior a 1988 à nova realidade jurídica, pois haverá incoerência normativa – uma vez entendendo princípios como normas – sempre que o Estado atuar fora dos limites trazidos pela Constituição.

Além de traduzirem parâmetros para aferição da compatibilidade de normas anteriores à promulgação da Carta Magna, os princípios constitucionais servem como limitadores da vontade do legislador infraconstitucional, que deve atuar de modo a resguardar o Contraditório, a Ampla Defesa, a Isonomia Processual, e todos os preceitos necessários ao desenvolvimento de um processo equilibrado.

Das precedentes reflexões surge a conclusão de que não há lei capaz de se tornar juridicamente válida se confrontar com o Sistema Acusatório, que é o único compatível com o ordenamento jurídico brasileiro, conforme anteriormente anotado.

3.2 Sujeitos processuais à luz do Sistema Acusatório:

3.2.1 Papel do acusador

Um dos elementos necessários ao desenrolar de um processo legítimo é a acusação. Esta não atua apenas em prol da garantia de que ninguém será levado a juízo sem que haja uma imputação formal e prévia, mas também tem escopo de informar ao acusado o fato e todas as suas circunstâncias, de modo assegurar seu pleno exercício do direito de defesa.  Não se trata, então, de mera formalidade, mas de possibilitar o exercício do Contraditório. 

Nos crimes de ação penal pública, o Ministério Público é o único encarregado de exercer o direito de perseguir a condenação, o que não pode ser conferido a nenhum outro sujeito.[12]

Para que possa ver satisfeita sua pretensão condenatória, o Parquet moverá ação penal por meio de oferecimento de denúncia. As afirmações nela contidas deverão ser inequívocas, descrevendo, com exatidão, o fato típico e todas as suas circunstâncias. Não há espaço para imputações genéricas e abstratas, que impossibilitem o direito da defesa de impugnar objetivamente o teor das acusações. Caso contrário, não havendo exposição clara de suas razões, a peça será reputada defeituosa, e, por consequência, inapta a originar uma condenação juridicamente válida. Isto porque, uma acusação formulada de maneira vaga não permite uma contra argumentação eficiente, representando cerceamento ao exercício do Contraditório. Em resumo, uma acusação imperfeita contamina a legitimidade de todo o processo.

Assim, o julgador somente poderá debruçar-se sobre as menções fáticas do órgão acusador expostas na denúncia. Eventual sentença condenatória deve estar adstrita aos limites do que foi descrito, de modo que a acusação exercerá função de limitar o âmbito em que será exercida a jurisdição. Não serão considerados, portanto, fatos não expostos pelo Parquet. Para que isso ocorra, é necessário que haja o aditamento da denúncia.[13]

Contudo, nas situações em que a instrução não demonstra dinâmica fática diversa da descrita, mas conduz à capitulação jurídica do fato típico diversa da mencionada pelo Ministério Público, pode o julgador alterá-la sem que a denúncia seja aditada, uma vez que não gera prejuízo à defesa, pois o réu refuta os fatos a ele imputados, independentemente da descrição típica a que a conduta será subsumida.[14]

O Ministério Público se intitula “fiscal da lei desinteressado em um resultado processual favorável”, mas, claramente, não o é. Isto porque, quanto ao órgão ministerial ser uma das partes do processo penal, não há divergências doutrinárias.

O conceito de “parte” traduz o desejo por um provimento jurisdicional que lhe agrade, afastando, por obvio, a ideia de desinteresse.

Diante disso, o que se apresenta duvidoso é a ideia de que o Ministério Público seria “parte desinteressada e imparcial”, pois tal afirmação é contrária à própria essência do conceito de partes.

É inadmissível, por ser evidente antagonismo, que a mesma figura possa, simultaneamente, ser tida como parte e atuar imparcialmente.  O Ministério Público não é desinteressado; ao contrário: é parte interessada em obter um provimento judicial favorável à sua pretensão: a de ver condenado o réu nos moldes da denúncia por ele oferecida.

Utilizando-se de sua prerrogativa de fiscalizar a lei, o Ministério Público acaba por intervir no processo utilizando-se do suposto manto da imparcialidade, o que, de fato, lhe gera oportunidades superiores às da defesa de formar o convencimento judicial, de modo a macular a paridade de armas que deveria reger o caminhar processual. Isto porque, ainda que veladamente, o magistrado é levado a crer que o órgão ministerial é mais digno de credibilidade do que a posição ocupada pela defesa – quando, em realidade, ambos deveriam ser compreendidos igualmente, como partes que são. Caso contrário, uma vez que o processo esteja maculado pelas convicções pessoais do julgador, estará comprometida sua imparcialidade, e, com isso, a validade de todos os atos por ele praticados.

Assim sintetiza de Maria Lúcia Karam:

O Ministério Público não é o único que pode se apresentar como ‘fiscal da lei’. O réu e seu advogado também têm de fiscalizar, controlar, requerer, exigir que a ei seja cumprida. (...) Cumprir a lei não é apenas acusar e condenar, mas é também - e antes de tudo – garantir o respeito aos direitos fundamentais do indivíduo. (KARAM, In: PRADO; MALAN, 2009, p. 405) [15]

Embora exista o rigor da lei, é preciso que haja profissionais capazes de interpretá-las, não se deixando levar pelo desejo de castigar simplesmente. Na esfera do processo penal, o Estado não tem como único interesse a punição do culpado, mas também a tutela da liberdade do inocente. No momento de expor suas alegações finais, o Ministério Público tem o dever de atuar com objetividade, valorando a prova produzida na instrução, de modo a requerer a aplicação de uma pena consoante ao que foi demonstrado nos autos, ou, a absolvição.

Uma vez que o Ministério Público é o titular da pretensão acusatória quando a vítima não é legitimada a exercê-la, não há outro modo capaz de instituir uma condenação juridicamente válida senão por meio da atuação desse órgão. Por isso, pode-se dizer que o exercício do poder punitivo está diretamente ligado à invocação condenatória formulada pelo parquet. Eventual pedido de absolvição equivale, em seu resultado prático, ao não exercício desse ofício, de modo a não ser admissível qualquer pronunciamento judicial diverso do absolutório. Caso assim não entendêssemos, estaríamos sujeitando o réu a uma sentença que o condenará sem que tenha havido acusação - prática incompatível com o Estado Democrático de Direito.

3.2.2 Papel do julgador e os limites do livre convencimento:

A nova concepção de igualdade entre as partes exige que superemos a antiga dogmática de conferi-las tratamento igualitário. Para que a igualdade seja efetiva, transpondo a mera formalidade, é necessário dispensar tratamentos desiguais, de maneira a, verdadeiramente, equilibrar as forças dos sujeitos processuais. A igualdade material é aquela que se apresenta real, substancial.

Para isso, torna-se imprescindível a figura de um julgador que atue como garantidor da ordem constitucional no caso concreto. A essa necessidade de maior participação do juiz no processo foi atribuída a denominação “ativismo judicial”. 

A realidade jurídica atual exige que magistrado desempenhe suas atividades não mais como mero operador do direito, mas como agente capaz de suprir as lacunas geradas pela omissão do poder legislativo e promover o controle de constitucionalidade das normas a serem aplicadas. O juiz deixa de ser apenas expectador das atividades das partes, passando a ter consigo a função de aplicar a norma que melhor se harmonize com os ditames da Lei Maior.

As decisões judiciais devem ter sua direção determinada pelos Direitos Fundamentais, que apontam um núcleo a ser resguardado, do qual o magistrado não pode desviar. Figurando como principal objeto de tutela pelo Poder Judiciário está a Dignidade da Pessoa Humana, que serve de parâmetro para a compreensão dos demais institutos do ordenamento jurídico.

Uma vez que o magistrado deve atuar em prol das garantias trazidas pela Constituição Federal, por obvio, seus poderes não lhe permitem surpreender as partes com o teor de suas decisões. Isto quer dizer que os pronunciamentos judiciais não podem ser fundamentados em questões (ainda que de direito ou de ordem pública) sobre as quais as partes não foram chamadas a se manifestar. Trata-se do verdadeiro sentido do Princípio do Contraditório, que, somente quando for assim considerado, será, de fato, respeitado.

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Sob essa ótica, deve o magistrado, não apenas proporcionar o exercício do Contraditório, mas torna-lo substancial, garantindo que seja efetivamente exercido, de modo que as partes possam atuar em seu convencimento, que não estará formado antes do fim da instrução processual.  Dessa forma, para que o Contraditório não fique reduzido ao plano da formalidade, as alegações das partes devem ser consideradas na formação do conteúdo decisório. Assim, ao juiz não é facultado julgar além do que foi pedido pelas partes, sob pena da sentença extra ou ultra petita ser tida como nula.

O princípio do ne procedat iudex ex officio, é originalmente atrelado ao processo civil. Com a superação do sistema inquisitório, passou a ser também aplicável ao processo penal. Dele pode ser extraída a norma que veda ao julgador o exercício do direito de ação, cabendo-lhe apenas a função de julgar. Em outras palavras: o magistrado não pode prover sem que haja pedido formulado pelas partes, e sua atuação está a ele limitado. O papel do juiz é julgar a acusação de acordo com a fase de instrução desenvolvida no processo. Ficam à margem de sua apreciação questões não trazidas aos autos e imputações não formuladas pela acusação.

Quando o Ministério Público, em alegações finais, pugna pela absolvição do réu, está, em verdade, formulando nova pretensão – aquele resultado que deseja ver concretizado ao final do processo. Sustentar o posicionamento segundo o qual a opinião ministerial se exaure com o oferecimento da denúncia equivale a esvaziar as funções processuais de promover o convencimento, tornando o processo nada além de um procedimento inútil e meramente formal, inapto a realizar qualquer modificação na situação jurídica do réu.

Além disso, anuir com a possibilidade de condenação em razão da vontade exclusiva do magistrado é permitir o julgamento além do que foi requerido pelas partes, violando a regra da inércia da jurisdição. 

Em caso de pedido de absolvição pelo órgão acusador, o julgamento deve estar a ele vinculado. Entender que o magistrado pode, discordando da formulação ministerial, por sua própria consciência, condenar o réu, implica reconhecer que o jus accusationis não é de titularidade do Ministério Público, mas sim do Estado, passível, portanto, de se materializar na figura de qualquer de seus agentes. Essa possibilidade violaria a distinção que deve haver entre a figura da acusação e do organismo que deverá sentenciar, o que, como consequência, macularia diretamente o Princípio da Imparcialidade.

O juiz será o responsável por, na ocasião da sentença, valorar a tese apresentada pela acusação e a antítese oferecida pela defesa, sendo necessária a apreciação do que foi trazido aos autos – e somente isto, de modo que não lhe cabe o julgamento conforme seus valores pessoais e suas convicções prévias à ação penal.

Conforme nos ensina o mestre Geraldo Prado, cuja transcrição é de inteiro rigor:

Uma atividade decisionista do juiz, baseada na sua credibilidade social, mas intangível pelas partes, na medida em que se apresenta como exercício de sua potestade, máxima representação da sua vontade pessoal, não é legítima, mesmo quando parece mais eficiente porque atende às pautas de repressão penal. (PRADO, 2001, p.42.)[16]

Em síntese, as razões dos provimentos judiciais devem ser fundadas nos elementos trazidos aos autos e restritas às pretensões formuladas pelas partes. É necessário, também, que haja motivação. Em outras palavras: a decisão deve conter a exteriorização do raciocínio que conduziu o julgador a determinada conclusão.

As decisões judiciais devem ser motivadas como forma de garantir não apenas às partes, mas a toda a sociedade que o órgão julgador exerceu cognição suficiente para a prolação de uma decisão específica para o caso concreto. Trata-se do mecanismo pelo qual é assegurada a efetiva apreciação pelo juiz das questões de fato e de direito apresentadas pelas partes.

Não devem ser considerados motivados aqueles provimentos judiciais que poderiam ser aplicados genericamente para qualquer situação, como o recorrente “indefiro por ser contrário às provas nos autos.” Também não são consideradas motivações idôneas aquelas que se limitam a reproduzir texto de lei. Note-se que a falta de motivação não ocorre apenas diante da completa omissão, mas também da apresentação de argumentos vagos, de exposições que nada dizem e que são contraditórias entre si. Portanto, não só o silêncio do discurso é capaz de comprometer a ratio decidendi.

Apenas com motivações consistentes o ato judicial será dotado de validade e legalidade. Caso contrário, será reputado nulo, por ser contrário a princípio constitucional e à norma de ordem pública. A motivação não deve ser avaliada apenas sob o critério formal; ao contrário, a formação do convencimento deve ser demonstrada à luz do caso concreto, pois se trata de efetivação das garantias constitucionais.

Dessa forma pode-se dizer que a motivação das decisões judiciais exerce dupla função. Nas palavras de Geraldo Prado e Diogo Malan:

(...) de um lado, ela serve para verificar – pelo acompanhamento do raciocínio desenvolvido pelo juiz para chegar a um eventual provimento restritivo daqueles direitos – se foram efetivamente obedecidas as regras do devido processo; por outro, será igualmente por intermédio da fundamentação que será visível constatar se a decisão aplicou validamente as normas que permitiam a restrição e se foi apreciado, de maneira correta, o contexto fático que a autorizava. (PRADO; MALAN, 2009.)[17] 

O conhecimento pelas partes do mecanismo utilizado pelo julgador para a formação de seu convencimento é essencial ao Estado Democrático de Direito, devendo, também, ser objeto de controle pelos órgãos superiores em eventual recurso. Caso os interessados não soubessem claramente as razões que conduziram o magistrado a determinado provimento, restaria impossível a identificação de vícios, de modo que não poderiam, concretamente, impugnar sua decisão, tampouco o juízo ad quem poderia exercer o controle formal e material da decisão anteriormente prolatada. A consequência processual da não observância da necessidade de motivação dentro dos moldes acima apresentados é a nulidade absoluta. Isto porque, frustra o interesse público de condução de um processo segundo os ditames constitucionais, dispensando a demonstração de prejuízo às partes.

Diante do acima exposto, pode-se dizer que, muitas vezes, é adotada equivocada concepção do que seja “livre convencimento do juiz”. A liberdade para apreciação das provas consiste na não obrigatoriedade de conferi-las valor previamente estabelecido. Isso não se confunde com a possibilidade violar a legislação – quer seja material, quer seja processual. A decisão judicial está subjugada aos limites impostos pelo ordenamento jurídico, ou seja: pode o juiz decidir livremente, de acordo com seu convencimento, desde que motivando sua decisão e prolatando-as em conformidade com as provas trazidas nos autos e com as regras e princípios jurídicos.

O juiz deve analisar todo o conjunto probatório disponível nos autos, de modo a esgotar a cognição dos fatos e fundamentos discutidos no processo.  Dispor sobre o valor atribuído a cada prova, bem como sobre a admissibilidade destas é indispensável a uma decisão legítima. Embora, por obvio, nem todas as provas apresentadas pelas partes sejam essenciais ao convencimento do julgador, essas devem ser analisadas em sua totalidade, não cabendo, por parte dele, seleção arbitrária e aleatória dos elementos a serem considerados. Caso contrário, estaria sendo violado o direito ao Contraditório e à possibilidade de influência na decisão. Contudo, isso não significa uma necessidade que o julgador refute ou acolha, expressamente, todos os argumentos apresentados; e sim, que não deixe de apreciar aqueles possíveis de influenciar em seu convencimento – ou seja: aqueles que não sejam inúteis, como, por exemplo, a prova relativa a fato notório e ao que já está comprovado nos autos.

Em resumo, a motivação é instrumento de controle da efetividade das garantias constitucionais, pois a adequada justificação das operações intelectuais busca evitar o risco de arbitrariedades que imponham às partes decisão baseada unicamente em impressões pessoais. Seria inútil facultar às partes participação ativa durante o iter processual, e, em contrapartida, permitir ao magistrado que desprezasse as provas e argumentos por elas trazidos, julgando apenas conforme suas convicções e íntimo convencimento, que, diga-se, já poderia estar formado desde o início da instrução probatória.  Nesse caso, a marcha processual não passaria de mera formalidade. O Princípio do Contraditório deve ser compreendido de forma a não esgotar-se na participação das partes nos atos do processo, mas de modo que sua atividade não seja em vão, e sim, realmente capaz de influenciar na decisão de mérito a ser prolatada.

3.3 Atual disposição do artigo 385 do CPP e sua consequência prática

O artigo 385 do Código de Processo Penal contém a seguinte disposição:

Art. 385.  Nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada. (BRASIL, 1941, p. 19.688.)[18]

A controvérsia em torno do tema se propõe a discutir se o posicionamento do Ministério Público sobre a absolvição é vinculante; ou se o juízo está habilitado a proferir sentença em sentido oposto, de modo a conduzir o réu ao cumprimento de uma pena.

O Poder de punir deve apoiar-se na obra do legislador, havendo, contudo, necessidade de interpretação da lei, para que melhor de adeque aos ditamos da carta constitucional.

São máximas do direito que a sentença deve mostrar-se congruente com o pedido (sententia debet esse conformis libello), que a sentença não pode versar sobre o que não se pediu (non valetsententia lata de re non petita), e que a sentença não pode ser proferida fora dos limites do pedido (ne eat iudex ultra et extra petitum partium).

A partir de tais premissas, nota-se o necessário liame entre a sentença e a pretensão formulada pelas partes. Tais noções basilares advindas da Teoria Geral do Processo também agasalham o processo penal – e, porque não dizer, principalmente ele, que pode impor a mais grave das sanções: a perda da liberdade.

Não é possível que, através da utilização do argumento de independência, sejam cindidas as noções de acusação e sentença; ao contrário, deve ser guardada sua fidelidade estrita.

Para exprimir a referida interdependência, o direito processual consagrou o termo “correlação”, de modo que, no processo penal, seu uso expressa a vinculação que deve haver entre a voz da acusação e o disposto na sentença.

No sistema processual penal brasileiro, a violação da regra de correlação e sentença não se encontra entre as hipóteses expressamente previstas de nulidade, mas sua consequência como nulidade absoluta é obvia.

A acusação é formada pela sucessão de atos complementares que, concluídos, originam a pretensão punitiva.

Num primeiro momento, o Ministério Público elabora requerimento ao juízo, expondo a existência de indicativos capazes de instaurar a persecução penal. Trata-se do oferecimento de denúncia, que terá por base indícios mínimos de autoria e materialidade do delito. Nessa ocasião, o órgão acusador apenas aponta para a possibilidade de existência de fatos penalmente relevante. Frisa-se que se trata de mera suposição, ainda baseada em dados preliminares, obtidos em procedimento prévio à acusação com função de fundamentá-la.

Num segundo momento, após a instrução probatória, e diante das manifestações da defesa, o Ministério Público, ao apresentar suas alegações finais, requer a condenação e a aplicação da sanção cabível, caso entenda pertinente. Isto porque, após o inicio da ação penal, esta será regida pelo Contraditório, com objetivo de discutir se as razões apresentadas pela acusação são idôneas à provocação de um juízo condenatório.

Por obvio, o processo penal não pode ser reduzido a um único momento - em que o órgão acusador deva formular sua pretensão de modo definitivo e imutável. Desse modo, o oferecimento da denúncia não esgota a pretensão acusatória. O poder de punir do Estado é condicionado ao pleno exercício da pretensão punitiva pelo Ministério Público - como exercício pleno, deve ser compreendido não apenas o oferecimento da peça acusatória com descrição do fato típico e todas as suas circunstâncias, mas também o pedido final de imposição de sanção ao indivíduo.

Contudo, há quem entenda que a acusação se aperfeiçoa com a formulação da denúncia perante o juízo. Segundo esse posicionamento, o mero exercício da ação penal seria capaz de, por si só, permitir a prolação de uma sentença condenatória, de modo que a pugnação pela absolvição posteriormente formulada pelo Ministério Público não vincularia a decisão final. Isto porque o pedido do Ministério Público não estaria previsto em lei como causa determinativa da cessação da pretensão punitiva.

O que se busca nesse trabalho é desconstituir tal assertiva, apontando para um caminho que traduz a pretensão punitiva não como derivação de um único ato processual, mas de uma conclusão que somente se formará ao final do processo, como resultado de toda a fase probatória.

Após a instrução, haverá maior riqueza de elementos capazes de formar o convencimento não só do magistrado, mas também do órgão que anteriormente formulou a denúncia. A cognição, então, não terá como objeto apenas alegações iniciais advindas da fase pré-processual; mas sim vasto elemento probatório, capaz de possibilitar a avaliação de questões mais profundas não suscitadas anteriormente.

Uma vez que a cognição se dará de forma exauriente, não será mais juridicamente válido que o magistrado fundamente sua decisão em meras suposições, devendo haver o juízo de certeza que a instrução criminal proporciona.

Por assim ser, a mera formulação de pedido condenatório contida na denúncia não é apta a justificar uma condenação – que deve ser fundamentada em ampla análise probatória, o que, obviamente, não era possível no momento do início da ação penal. Em outras palavras, a denúncia tem serventia à inauguração do debate, exercendo a função de limitar o teor da decisão, não sendo instrumento legítimo a, por si só, ensejar a condenação, uma vez que para seu oferecimento e posterior recebimento, basta que haja justa causa para o início da ação penal, ou seja: indícios mínimos de autoria e materialidade.

É durante o desenrolar processual que será verificada a veracidade dos elementos inicialmente apresentados como indiciários. Para que isso ocorra, é necessário que tais elementos sejam submetidos ao Contraditório, que não se esgota na possibilidade de manifestação das partes; ao contrário, impõe a necessidade de que as alegações trazidas à baila possam influenciar no convencimento do julgador.

Diante da possibilidade de surgimento de novos dados que alterem a imputação anteriormente formulada, deve-se dar ao debate sua verdadeira importância, de modo que só é possível, tanto ao juiz quanto ao membro do Ministério Público, formularem seu convencimento após esgotadas as argumentações.

Sustentar o posicionamento segundo o qual a opinião final ministerial é a narrada na denúncia equivale a esvaziar por completo a função do processo, e, principalmente, da fase instrutória. Estar-se-ia diante de mera formalidade condenatória, com objetivo de formalizar um resultado jurídico fundado em impressões superficiais dos fatos e que já estaria previamente determinado, restando apenas definir o quantum da pena a ser aplicada.

Ao manifestar o entendimento sobre a inocência do réu, o Ministério Público se posiciona de forma contrária ao pedido formulado na denúncia, transmutando o caráter de sua pretensão de acusatória para absolutória.

Como pretensão, pode ser entendido aquele provimento que se deseja obter ao fim do processo. Se o juiz deixar de proferir sentença nos moldes da pretensão formulada pelo acusador, violará os Princípios da Correlação entre acusação e sentença e da Inércia da Jurisdição (em razão de prover além do que foi requerido pelas partes), o que tornará nulo o provimento, por error in procedendo. Diante da interposição de recurso, será necessária a prolação de nova decisão pelo órgão que prolatou a anterior, nos limites da pretensão ministerial – ou seja, absolvendo o réu.

O pedido formulado em alegações finais da acusação além de delimitar concretamente as possibilidades do pronunciamento judicial, assegura a plenitude de defesa, conforme será a seguir demonstrado.

O requerimento de condenação pelo Ministério Público é necessário para que, através de seu conteúdo, possa ser produzido um debate válido, tendo ambas as partes delimitado seu alcance. Uma vez que todos os fundamentos da sentença devem ter sido objeto do debate, pode-se dizer que a regra de correlação entre acusação e sentença emana dos Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa. Entender que o magistrado pode proferir sentença condenatória extrapolando o pedido ministerial é aceitar que a decisão se produza tendo como base fundamentos que não foram exaustivamente discutidos pelas partes.

Quando, em alegações finais, o Ministério Público pede a absolvição do acusado, por obvio, não suscita argumentos em prol da condenação. Logo, não há o que ser contraditado pela defesa. Isto quer dizer que se após a instrução criminal o Ministério Público representa pela absolvição, em resposta, a defesa não se colocará em posição de resistência, o que faz com que determinadas questões escapem ao debate. Estas, por esse motivo, não podem ser valoradas na sentença, sob pena de infringir o Princípio do Contraditório.

Eventual condenação, portanto, não terá oportunizado à parte a paridade de armas, uma vez que, não havendo imputações ministeriais às quais se opor, o réu não evidenciará argumentos concretos capazes de conduzir o magistrado à decisão que lhe seja favorável.

Ao formular suas alegações finais, o Ministério Público valora a prova (assim como o faz o magistrado) para verificar se os elementos trazidos aos autos sustentam a imputação contida na denúncia. Caso o acusador entenda pela inexistência de circunstancias que conduzam à condenação, não está o julgador habilitado a editar uma sentença em sentido diverso. Em outras palavras: diante do posicionamento da acusação pela absolvição, não há norma constitucional que permita sustentar que o magistrado tenha legitimidade para condenar, uma vez que o Ministério Público é único titular da pretensão punitiva.

Para que haja uma condenação juridicamente válida, há necessidade de um expresso pedido de condenação após a instrução criminal. Se o Ministério Público não o faz, o julgador não está autorizado a condenar. O pedido de absolvição equivale à retirada da acusação, uma vez que esta não está sendo sustentada por seu titular privativo. O juízo que, nessa situação, prolata sentença penal condenatória está agindo sem a necessária provocação ao acolher imputação não mais existente. Um julgamento condenatório sem pedido final nesse sentido estará fundado em uma pretensão punitiva que deixou de ser veiculada em juízo, sendo nulo em razão do nullum iudicium sine accusatione.

No dizer de Américo Bedê Freire Júnior,

(...) deve-se ir além. Mais do que simplesmente a separação entre acusação e julgamento há, para efetivação do jus puniendi, a necessidade de que a acusação e o julgador se entendam quanto à existência de crime. Na verdade há uma relação de prejudicialidade entre o convencimento do promotor e do magistrado, melhor explicando: entendendo o Ministério Público pela não existência de crime, não cabe ao magistrado exercer qualquer juízo de valor sobre a existência ou não do crime, uma vez que a partir desse momento o magistrado estaria atuando de ofício, ou seja, sem acusação e em flagrante desrespeito ao sistema acusatório.( FREIRE JÚNIOR, 2005, p. 19.)[19]

Portanto, pode-se dizer que diante da formulação ministerial pela absolvição, não cabe ao julgador outro acertamento senão a declaração da inocência, sob pena de nulidade da sentença. A conclusão final do Ministério Público representa sua opinião acerca da acusação, gerando efeito vinculante para o julgador.

A única conclusão compatível com as garantias constitucionais conduz à declaração de invalidade da condenação nos casos em que o Ministério Público assim não tenha requerido após a instrução processual. Caso contrário, restaria ao acusado ter como adversário não apenas o Ministério Público, mas também o julgador.

Portanto, viola o sistema acusatório constitucional a regra prevista no art. 385 do CPP, que prevê a possibilidade de condenação ainda que o Ministério Público peça a absolvição, uma vez que, substituindo-se ao acusador, o juiz faz ressurgir a pretensão por ele abandonada. A confusão entre as funções de acusar e de julgar traduz o mais claro retrocesso ao modelo inquisitório.

Diante da ausência de acusação – entendida como a pretensão final do Ministério Público, eventual decisão condenatória transformará o juiz em parte, afastando-se da missão que lhe reserva a Constituição no art. 5º, incisos XXXVII e LIII. O juiz é um garantidor, e jamais um acusador que se insurgirá contra o réu diante do convencimento do Ministério Público sobre sua inocência.

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Sobre as autoras
Karine Azevedo Egypto Rosa

Graduada em Direito, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro- UFRJ, pós-graduada pela Universidade Candido Mendes em Direito Penal e Processual Penal e aprovada nos concursos para defensor público na Defensoria Pública do Estado do Mato Grosso e Defensoria Pública do Estado da Bahia.

Renata Moura Tupinambá

Graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pós-graduada em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Candido Mendes e aprovada nos concursos para os cargos de analista do Ministério Público do Rio de Janeiro e defensor público substituto do estado da Bahia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROSA, Karine Azevedo Egypto ; TUPINAMBÁ, Renata Moura. A invalidade do artigo 385 do Código de Processo Penal frente à Constituição da República de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5187, 13 set. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59121. Acesso em: 28 abr. 2024.

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