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Mobbing no hospital: quando a vítima é o médico.

A condenação judicial da racionalidade perversa

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02/12/2004 às 00:00
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5. Construir uma outra racionalidade para o Direito do Trabalho

Retornando ao Veneto, a análise da hipótese fática apresentada é de nossa inteira responsbilidade. Ela contraria, inclusive, para ficarmos na linguagem médica, o diagnóstico formulado por diretores de importantes Unidades hospitalares. Segundo eles, a razão do mobbing estaria na cultura européia, que, à diferença da anglossaxônica, não privilegia o trabalho em equipe, mas o individualismo, berço de rivalidades e inveja. Ora, sabe-se que a Inglaterra é hoje o país da Europa com o maior índice de mobbing e o modelo de gestão inglês é conhecido no mundo como bullying, adjetivo de bully. Mobbing, bullying e violência é a dura lei que impera na City de Londres. [5]

Por outro lado, a afirmação do diretor Piero Gonella [veja-se item 2] contém uma meia-verdade. O mobbing é uma perseguição tão cruel que a pessoa que o sofre, não se agüenta e seu desespero é visível. Enxergar ou não enxergar o mobbing no ambiente de trabalho é questão afeta ao modo como se exerce o poder diretivo e seu corolário direto, o poder disciplinar. Quanto mais democrática, participativa e transparente a gestão, maior a responsabilidade individual e menores as chances de desenvolvimento de normopatias. [6]

Note-se que a eficácia do processo de desregulamentação da saúde nos hospitais do Veneto não exigiu a efetividade de um modelo de gestão democrático com respeito à dignidade profissional, autonomia e participação dos médicos no governo clínico. Ao contrário, o novo modelo foi implantado aproveitando-se da estrutura "totalitária" pré-existente, o que denota uma característica singular da nova racionalidade __ a aparência vale mais do que os fatos.

A nova racionalidade econômico-social caracteriza-se, essencialmente, pela ausência de viscosidade. Em relações escorregadias, a noção de responsabilidade tende a se dissolver diante do determinismo econômico e técnico-científico. Daí porque, quando levada às últimas conseqüências, na aplicação dos procedimentos de modernização eleitos, inclusive na desorganização dos serviços sociais anteriormente a cargo do "estado providência", essa racionalidade encara o mobbing e outras formas perversas de gestão como medidas fisiológicas para selecionar pessoas e excluí-las do mundo do trabalho. Ressalte-se, porém, que o mobbing não é uma simples anomalia transitória do novo "realismo econômico", mas um aspecto do modelo de civilização em andamento, que está empregando, sem culpa, o psicoterror como forma de descartar trabalhadores.

Essa racionalidade não apenas revela a ruptura com a tradição filosófica, assentada na idéia de que o homem é o centro e a medida dos valores que legitimam e dão sentido à ordem jurídica e à ordem econômico-social, como também rompe com os princípios substanciais do Direito do Trabalho. Isso se evidencia nos fenômenos legislativos da diferenciação e desregulamentação, acolhidos e legitimados por amplas fatias da jurisprudência e protagonizados por generosa camada de juristas.

Se por um lado é evidente a insuficiência dos paradigmas metodológicos do positivismo legalista e seus corolários [normativismo, utilitarismo e superioridade do raciocínio lógico-inferencial na atividade interpretativa] para dar conta do ineditismo dessa situação e compreender inúmeros outros fenômenos jurídicos, por outro lado, considerando as fontes do Direito do Trabalho e sua singular capacidade de adesão à flexibilidade, menos evidentes são os riscos e desafios a serem enfrentados por uma jurisprudência que pretenda verdadeiramente tornar-se livre do positivismo legalista e do monismo dogmático, sem, contudo, aderir à instrumentalidade flexível criada pela racionalidade da nova ordem econômica em nome de objetivos socio-políticos sabidamente irrealizáveis, ao menos nos moldes propostos.

Construir uma outra racionalidade, ou, quando menos, acompanhar sua emergência e trazê-la para o "chão do foro" está na ordem do dia dos juslaboralistas que não se entregraram.


Notas

1 Para uma melhor compreensão do fenômeno mobbing, assédio moral no trabalho, aconselha-se a leitura do nosso livro Terror Psicológico no Trabalho. São Paulo: LTr, 2004.

2"Contribuiamo inconsapevolmente, perchè siamo talmente oberati di lavoro da non riuscire a vedere tutto quello che ci accade attorno. La nostra attenzione è focalizzata sugli aspetti gestionali e in particolare sull’emergenza finanziaria, che purtroppo sta sostituendo il primo obiettivo della sanità pubblica, cioè la salute della gente". Corriere del Veneto, 25/07/04, p. 5.

3 Corriere del Veneto, 25 de junho de 2004.

4 Leonardo V. Wandelli é juiz da 1ª Vara de Curitiba, professor e autor de várias publicações; dentre estas destaca-se o livro Despedida Abusiva _ o direito (do trabalho) em busca de uma nova racionalidade. São Paulo: LTr, 2004.

5 Veja-se alguns casos denunciados pela BBC de Londres no livro Terror Psicológico no Trabalho, LTr, 2004.

6 Veja-se in Terror Psicológico no Trabalho no capítulo Mal-Estar na Ideologia flexível, item normopatia e pós-modernidade e capítulo XIV Defesa e Prevenção.

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Sobre a autora
Márcia Novaes Guedes

juíza do trabalho na Bahia

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUEDES, Márcia Novaes. Mobbing no hospital: quando a vítima é o médico.: A condenação judicial da racionalidade perversa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 513, 2 dez. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5999. Acesso em: 4 mai. 2024.

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