Se tem uma coisa contra a qual sempre me insurjo é o costume arraigado de editar leis que compreendam assuntos diversos, um às vezes não tendo nada a ver com outro.
Parece até que se procura confundir, fazendo com que as pessoas concentrem sua atenção em certo tópico do texto legal, não dando a mínima para outro, que talvez seja até mesmo mais importante do que aquele de maior reflexão pessoal.
A recente Lei Federal n. 10.931, de 02 de agosto de 2004 (publicada no DOU de 03 do mesmo mês e ano), não foge à desditosa regra.
Neste sucinto comentário, farei algumas ponderações sobre apenas parte da norma em destaque, mesmo porque não pretendo esgotar o tema, deixando à comunidade jurídica local o complemento, se o caso.
PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO – I – ASPECTOS TRIBUTÁRIOS
O País todo acompanhou a agrura imposta aos mutuários vinculados a contratos referentes aos lançamentos imobiliários empreendidos pela falida Encol, compreendendo mais de 740 obras, atingindo cerca de 42.000 titulares de frações ideais.
Em razão disso, implementou-se um regime especial tributário – por opção da incorporadora – do patrimônio de afetação, através dos arts. 1º a 11, impondo condições que objetivam liberar de qualquer risco os adquirentes, de tal sorte que somente o patrimônio da incorporadora responderá pelas dívidas tributárias da incorporação afetada, escriturando-se separadamente cada empreendimento.
Tal como já se verifica com a Lei n. 9.317/96 (SIMPLES), caso a incorporadora opte pelo novo regime especial, deverá recolher 7% do valor da receita mensal recebida de cada incorporação a ele submetida, porcentagem essa que corresponde ao pagamento unificado de diversos impostos e contribuições federais.
PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO II – ASPECTOS GERAIS
Da mesma maneira, introduziu-se os arts. 31-A a 31-F e acrescentou-se o § 2º ao art. 32 e inciso VII ao art. 43, mudando-se, ainda, a redação do art. 50 e acrescentando-se-lhe o § 2º, todos da Lei n. 4.591/64 (Lei de Condomínio e Incorporação), com o fito de dar maior segurança aos adquirentes, principalmente em hipótese de falência (art. 31-F).
CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO
Instituída por meio da Medida Provisória n. 2.160-25, de 23 de agosto de 2001, a cédula de crédito bancário reveste-se de mais uma forma de contratação com instituição financeira, que objetiva, sem dúvida, maior garantia na recuperação de crédito.
A Lei em comento tratou da cédula nos arts. 26 a 45, transformando em título executivo valores que tinham sido, pouco a pouco, destituídos de força executiva.
Exemplo disso é o saldo devedor apresentado em conta corrente de crédito rotativo (cheque especial), que era reconhecido como título executivo extrajudicial, nos termos da Súmula 11 do 1º TAC/SP.
Contudo, com o passar do tempo, a referida força executiva foi sendo demovida pelo STJ que, por meio de sua Súmula 233, sacramentou a iliquidez do saldo devedor respectivo.
A partir de então, as instituições financeiras não sabiam como proceder, o que foi resolvido pelo mesmo Superior Tribunal de Justiça, via da Súmula 247, indicando a ação monitória como meio judicial cabível.
Pois bem, o art. 28 da Lei quase que reeditou a Súmula 11 do 1º TAC/SP, ao prescrever: "Art. 28. A Cédula de Crédito Bancário é título executivo extrajudicial e representa dívida em dinheiro, certa, líquida e exigível, seja pela soma nela indicada, seja pelo saldo devedor demonstrado em planilha de cálculo, ou nos extratos da conta corrente, elaborados conforme previsto no § 2º."
Conforme o art. 36, o credor poderá exigir a realização de contrato de seguro, objetivando a cobertura do bem oferecido em garantia, tendo o próprio credor como beneficiário.
Mais adiante, o art. 40 prevê especificamente a contratação de crédito rotativo (cheque especial) através de Cédula de Crédito Bancário, que poderá ser protestada (art. 41) pelo valor do saldo devedor, podendo até mesmo contar com garantia real (art. 42).
Outra novidade – alterando o art. 46 do Decreto n. 57.663/1966 – é que doravante não será mais necessário o protesto para que o credor possa cobrar o endossante da Cédula, seus avalistas (do endossante) e terceiros garantidores.
CONTRATOS DE FINANCIAMENTO DE IMÓVEIS
Desde que o contrato de aquisição imobiliária – inclusive sob o regime de arrendamento mercantil previsto no art. 11, da Resolução BACEN n. 2.309/96 e art. 57 da Lei em debate, que repetiu o § 2º do art. 5º, da Lei n. 9.514/97 – seja ajustado por prazo superior a 36 (trinta e seis) meses, será permitido o reajuste mensal do valor, conforme disciplina o art. 46.
Merece especial destaque o conteúdo do art. 48, pois, de agora em diante, não será mais permitida a contratação de mútuos com reajuste amparado no plano de equivalência salarial (PES) ou de comprometimento de renda, como vinha ocorrendo desde longa data, geralmente atrelado ao índice de reajuste por ocasião do dissídio da categoria profissional a que pertencia o mutuário, ou por ocasião da elevação do valor do salário mínimo para os mutuários sem vínculo empregatício.
Portanto, os novos contratos só podem ser pactuados por índices de preços setoriais ou gerais (IPC e outros), ou aquele idêntico à remuneração das cadernetas de poupança, o que poderá agravar a situação de desencaixe dos mutuários, tendo em vista o natural desequilíbrio entre a sua remuneração – reajustada anualmente ou nem sempre reajustada – e o valor da parcela que terá que desembolsar, este sempre atualizado mensalmente.
De acordo com o art. 50, caso o mutuário pretenda discutir o valor da parcela mensal, deverá depositar o valor que considera incontroverso, sob pena de inépcia da inicial, devendo prosseguir depositando a dita importância até o final da demanda.
Pela redação do art. 63, o mutuário não pagará taxa alguma relativa à elaboração do contrato de financiamento, aliviando-o um pouco.
ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA
O art. 55 alterou substancialmente o original art. 66 da Lei n. 4.728/65, que já houvera sido modificado pelo art. 1º do Decreto-lei n. 911/69.
Contrariando a jurisprudência já consolidada no STJ, eis que retorna a possibilidade de oferecimento de coisa fungível em garantia de alienação fiduciária, gerando dúvida sobre a sua sustentação perante aquele sodalício infraconstitucional.
Também confronta com o art. 1.361 do Código Civil: "Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível..............".
De acordo com a nova redação dada ao § 1º, do art. 3º do DL n. 911/69, no prazo de 5 (cinco) dias após cumprida a liminar de busca e apreensão, automaticamente o bem será incorporado ao patrimônio do credor, com expressa ordem para que a repartição do trânsito competente emita novo certificado de propriedade livre do ônus fiduciário.
Atenção especial merece o § 2º, do mesmo art. 3º: " § 2º. No prazo do § 1º, o devedor fiduciante poderá pagar a integralidade da dívida pendente, segundo os valores apresentados pelo credor na inicial, hipótese na qual o bem lhe será restituído livre de ônus". Ou seja, não existe mais a possibilidade de o devedor purgar a mora, conforme lhe era facultado pelo § 1º modificado. De agora em diante, o devedor terá que pagar a integralidade do débito e não somente as parcelas em atraso (mora), valor este que o credor deverá indicar na petição inicial, sob pena de indeferimento. Pagando o valor total financiado, terá o bem para si definitivamente, livre de ônus.
Não resta dúvida de que se trata de uma forma forçada e tergiversada de aquisição, restando ao devedor fiduciante a análise da viabilidade, no confronto entre o valor de mercado do bem e a dívida pendente, tendo em vista o elevadíssimo saldo devedor que será apresentado na petição inicial, fato comum em se tratando de contratação bancária.
Como alento ao devedor, preceitua o § 6º que a instituição financeira será condenada em importância equivalente a cinqüenta por cento do valor originalmente financiado, mais perdas e danos, se porventura a ação de busca e apreensão for julgada improcedente.
CONDOMÍNIO EDILÍCIO
Segundo Carlos Alberto Bittar, citado por Wilson Gianulo, in NOVO CÓDIGO CIVIL Explicado e Aplicado ao Processo. São Paulo: Jurídica Brasileira, 2003, v. III, p. 1619, "denomina-se edilício o condomínio instituído em prédios edificados sob o regime de divisão em unidades de comunhão em partes ideais ou áreas comuns".
Muito embora recentemente em vigor, foram alterados alguns artigos do Código Civil: § 3º, art. 1.331: que trata da fração ideal no solo e nas partes comuns; inciso I, do art. 1.336: trata da contribuição para as despesas do condomínio; art. 1.351: para a alteração do regimento interno é desprezada a aprovação de 2/3 dos votos dos condôminos, permanecendo somente para a alteração da convenção.
O Presidente Lula vetou a modificação prevista para o § 1º, do art. 1.331, que estabelecia a aplicação da multa diária equivalente a 0,33% do valor da contribuição mensal do condômino, até o máximo de 10,0%. Portanto, permanece em vigor a redação original do § 1º, ou seja, a multa prossegue sendo de apenas 2,0%, dando indevido contorno de relação de consumo ao instituto do condomínio, elevando, com isso, em 42,0% a inadimplência desde a entrada em vigor do Código Civil de 2002, segundo dados do SECOVI, SP.
HIPOTECA
Pelo art. 817 do Código Civil de 1916, a hipoteca poderia prorrogar-se pelo prazo de 30 (trinta) anos, o que foi modificado pelo art. 1.485 do atual Código, que diminuiu o prazo para 20 (vinte) anos. Entretanto, o prazo de 30 (trinta) anos foi reconduzido à redação do art. 1.485, nos termos do art. 58 da Lei ora comentada.
REGISTROS PÚBLICOS
Foi alterada a redação dos arts. 212 a 214, da Lei n. 6.015/73, ampliando em muito a possibilidade de realizar-se a retificação do registro ou averbação imobiliária diretamente pelo Oficial do Registro de Imóveis, muito embora seja uma opção do interessado, que poderá recorrer à via judicial, se assim entender.
Os apontamentos aqui elencados são apenas superficiais, muitos outros havendo a serem indicados, restando a conclamação para o debate, de onde surgem as idéias e as conclusões sempre produtivas para os operadores do Direito.