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Apontamentos iniciais sobre o Estatuto do Idoso

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30/01/2005 às 00:00
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6- Aspectos Penais

O título VI é destinado aos crimes. O artigo 93 inicia por afirmar aplicáveis subsidiariamente as disposições da Lei nº 7.437/85, o que parece pouco provável na seara penal, visto que a lei em pauta trata da ação civil pública.

O artigo 94 determina que são aplicáveis as disposições da Lei nº 9.099/95 aos crimes previstos na nova lei e que tenham pena máxima cominada inferior a 04 anos. Significa dizer que a transação penal e a suspensão condicional do processo poderão ser aplicadas a estes delitos.

Esta ampliação poderá conduzir a interpretações analógicas que venham a estender a quaisquer outros crimes esta possibilidade, tal como ocorreu com a Lei dos Juizados Especiais Federais.

Não me parece que uma tal interpretação seja legítima, porquanto o artigo em testilha a limita aos "crimes previstos nesta lei".

Ademais, são notórios os benefícios auferidos com os JEC, porém daí não se pode inferir que as medidas de descarcerização previstas em seu rito possam servir de apanágio para o "desafogamento" dos presídios às custas da eficácia da repressão penal.

O equilíbrio parece ser a solução, e a extensão dos benefícios a delitos com penas de até quatro anos não se me antolha uma boa solução na medida que se abarca uma série de infrações com relativa gravidade.

Diante dos claros termos do dispositivo, "legem habemus", e nos crimes previstos na Lei nº 10.741/03, não há dúvidas da aplicação do rito previsto na Lei nº 9.099/95. O malefício será se esta disposição for estendida a qualquer crime.

A ação penal é sempre pública incondicionada (artigo 95), não sendo aplicáveis os artigos 181 e 182 do CP, relativos aos crimes contra o patrimônio. O primeiro refere-se às "escusas absolutórias" (10), e o segundo reporta-se à necessidade de representação quando o delito é cometido contra certas pessoas (11).

No que se refere aos tipos, a nova lei criou novas figuras e substituiu outras já previstas, como é o caso do abandono material (artigo 98), da exposição à perigo(fl 97 e 99), da desobediência (artigo 100, inc. IV), de apropriação indébita (artigo 103), e exercício arbitrário das próprias razões (artigo 104).

Recomenda-se, assim, que todas as vezes em que a vítima for idoso se faça uma prévia consulta a lei específica para proceder-se ao enquadramento legal da conduta eventualmente apurada.

A nova lei operou mudança na alínea "h" do artigo 61, inc. II, do CP, estabelecendo a incidência da agravante desde que a vítima tenha mais de 60 anos de idade, critério que antes estava a cargo da construção pretoriana e da doutrina.

Foi alterada a redação do parágrafo 4º, do artigo 121 do Código Penal, que passa a vigorar com a seguinte redação:

"§ 4º-No homicídio culposo, a pena é aumentada de 1/3 (um terço), se o crime resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, ou se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima, não procura diminuir as conseqüências do seu ato, ou foge para evitar prisão em flagrante. Sendo doloso o homicídio, a pena é aumentada de 1/3 (um terço) se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (quatorze) ou maior de 60 (sessenta) anos".

Ao artigo 133 do CP (relativo ao abandono de incapaz), parágrafo 3º, foi acrescido um inciso III, com a seguinte redação: "se a vítima é maior de 60 (sessenta) anos."

Foi alterada a redação do § 3º do artigo 140 do CP, havendo menção à utilização da idade como elemento para a injúria, que figura, inclusive, como causa de aumento de pana (artigo 141, inc. IV).

A idade superior a 60 anos também é causa de qualificação do delito de cárcere privado e seqüestro.


7- Conlusões

Após quinze anos de vigência da Constituição e Federal, foi colmatada a lacuna legislativa existente em relação ao idoso.

A nova lei apresenta, sem dúvida, equívocos, mas todos os diplomas legais os apresentam. Cumpre ao intérprete suprir estes equívocos através da inteligente interpretação da lei.

E o grande problema do Estatuto do Idoso é o mesmo de todo e qualquer diploma que cria obrigações positivas para o Estado. É que a materialização dos direitos contemplados nesta espécie de diploma acaba invariavelmente criando obrigações positivas que apresentam titulares individuais especificáveis. A violação destes direitos gera pretensões cujo exercício na prática implicam atividade estatal voltada a um indivíduo ou grupo, interferindo o Judiciário nesta determinação. Haveria neste caso invasão de competências? Há malferimento ao princípio da separação de poderes?

A rigor, o julgador efetivamente se interpõe entre o administrado e o Estado. Ocorre que a função primária do Poder Judiciário é exatamente restabelecer a legalidade, e sem dúvida que a violação de um direito contemplado em lei representa uma ilegalidade.

A questão é difícil e demanda cuidado, sob pena de indevida ingerência do Poder Judiciário em matéria de alçada administrativa, qual seja, a destinação de recursos públicos.

Neste caso, a questão traduz-se na postura que temos diante da própria Constituição, e é cediço que a hermenêutica clássica é incapaz de fornecer mecanismos aptos à resolução dos problemas da exegese constitucional.A respeito, é pertinente a lição de Gilmar Ferreira Mendes, verbis:

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"Parece hoje superada a idéia que recomendava a adoção do chamado método hermenêutico clássico no plano da interpretação constitucional. Como se sabe, esse modelo assenta-se em duas premissas básicas: (a) a Constituição, enquanto lei há de ser interpretada da mesma forma que se interpreta qualquer lei; (b) a interpretação da lei está vinculada às regras da hermenêutica jurídica clássica" (12).

A solução dos conflitos de princípios e normas constitucionais, que apresentam sob o ponto de vista formal a mesma hierarquia em vista do princípio da unidade constitucional, faz-se com o descortinar de uma dimensão que transcende à mera legalidade formal, observando as grandes diretrizes históricas, políticas e sociais.

É por isso que diante da relevância dos direitos em pauta, não resta outra alternativa viável que não seja considerar possível a intervenção do Poder Judiciário.

Como bem asseverou o Desembargador Wellington Pacheco Barros no julgamento da apelação cível nº 70008257388, do TJRS, acerca de ação que condenou Município do Rio Grande do Sul a construir abrigo para idosos:

"Com efeito, a extrema relevância do caso em questão e a omissão, para não dizer descaso, do requerido, surge para o Poder Judiciário, como manda seu ofício, determinar o cumprimento da Lei.

É obrigação do Município assegurar aos idosos carentes, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, consoante o disposto no artigo 3º, da Lei 8.842/1994, e também no artigo 230, da Constituição Federal".

Não há, na hipótese, indevida ingerência de competências, mas sim reposição da legalidade, pois como lembra o Ministro Celso de Mello:

"As situações configuradoras de omissão inconstitucional- ainda que se cuide de omissão parcial, derivada da insuficiente concretização, pelo Poder Público, do conteúdo material da norma impositiva, fundada na Carta Política, de que é destinatário- refletem comportamento estatal que deve ser repelido, pois a inércia do Estado qualifica-se, perigosamente, como um dos processos informais de mudança da Constituição, expondo-se, por isso mesmo, à censura do Poder Judiciário" (13)

Em outra oportunidade, ressaltou que:

"A inércia estatal em adimplir as imposições constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela autoridade da Constituição e configura, por isso mesmo, comportamento que deve ser evitado. É que nada se revela mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrem ajustados à conveniência e aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos" (14).

Se temos uma Constituição Cidadã, que prestigia uma visão solidarista do Direito, e que deve ser aplicada dentro de uma perspectiva vinculativa e dirigente, então há que se privilegiar uma exegese que conduza à efetiva materialização destes direitos.

Ao não admitirmos a intervenção do Poder Judiciário, estamos conduzindo a realização do direito subjetivo concretamente a um impasse.

Se alguém deixa de ter assegurado o exercício de um direito, então há uma violação à lei, devendo haver pronta intervenção do Poder Judiciário.

Dir-se-á que o exercício dos direito passará a ser uma questão de quem ingressa em juízo. A assertiva não deixa de ser correta. Todavia, uma vez que há ampla legitimidade ao Ministério Público, associações e OAB, dentre outros órgãos e entidades, fica afastada a possibilidade de que o poder econômico ou a instrução de cada indivíduo venham a se tornar os fatores decisivos de diferenciação entre aqueles para os quais a lei realmente representa uma realidade e aqueles que ficam a sua margem.

A lei não é o Direito em sua completude. É apenas o ponto de partida e um mecanismo que fornece a direção inicial. Agora dispomos de mais um mecanismo, cujo emprego mais eficaz somente será construído através da tentativa e da discussão, que apenas se inicia.


NOTAS

  1. A respeito: "DIREITO CONSTITUCIONAL. É solidária a obrigação da União, Estado e Municípios, na defesa da saúde e da vida do cidadão, aí incluído o fornecimento de remédios ao cidadão carente (inciso II, artigo 23, da CF). DIREITO PROCESSUAL CIVIL. A ilegitimidade só estará no plano da ação, quando ela for manifesta (inciso II do artigo 295 do CPC). Se a ilegitimidade não for manifesta, a questão do ter ou não a obrigação desloca-se para o mérito. Sendo a solidariedade a nível constitucional, nenhum ato infraconstitucional poderá afastá-la. Recurso conhecido, mas improvido, confirmando-se a sentença." (Apelação Cível nº 2002.001.24075, 11ª Câmara Cível do TJRJ, Rel. Des. Maurílio Passos Braga. j. 19.03.2003).
  2. Ver ad exemplum: "ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. CONCURSO PÚBLICO. BRIGADA MILITAR. LIMITE DE IDADE. LEGALIDADE DA ESTATUIÇÃO DE LIMITE MÁXIMO DE IDADE PARA ACESSO A DETERMINADOS CARGOS PÚBLICOS. Atendimento dos princípios norteadores do direito administrativo, como da legalidade, e razoabilidade. Constitucionalidade do limite de idade estabelecido para o ingresso na Brigada Militar pelo Decreto Estadual nº 37.536/97, que regulamentou os requisitos para acesso a carreira militar, conforme autorizado pela Lei Complementar Estadual nº 10.990/97 (art. 10, par. único). Mandamus improcedente. Recurso provido. Reexame necessário prejudicado. "(Apelação e Reexame Necessário nº 70004962015, 3ª Câmara Cível do TJRS, Rel. Des. Paulo de Tarso Vieira Sanseverino. j. 21.11.2002).
  3. O decreto foi alterado pelo Decreto nº 5.155/04 em vários dispositivos.
  4. Como cediço, substituto processual é aquele que litiga em nome próprio em vista de direito alheio. Aquele que litiga em nome de outrem representa
  5. Ad xemplum: "AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM. Não há legitimidade para o Ministério Público propor ação civil pública, quando postula direitos individuais conduz a ilegitimidade a propositura. Possível a propositura só na defesa de interesse difusos ou coletivos. Condenação na sucumbência só na hipótese de má-fé. Precedentes jurisprudenciais. Exegese do art. 18 da Lei nº 7347/85. Provimento parcial". (Apelação Cível nº 1999.001.10092, 9ª Câmara Cível do TJRJ, Rel. Des. Reinaldo P. Alberto Filho. j. 23.11.2000).
  6. Dispositivos semelhantes existem no CPC (artigo 461), ECA (artigo 213) e CDC (artigo 84).
  7. No CPC de 1939, havia a ação cominatória. O artigo 287 do CPC também prevê a possibilidade de cominação de multa diária.
  8. Vide o meu "Execução das Obrigações de Fazer contra a Fazenda Pública e seus meios de coerção" (http:www.ufsm.br/direito/ artigos)
  9. O Ministério Público não está sujeito, na via eleita, ao pagamento de honorários advocatícios, salvo no caso de comprovada má-fé, quando os ônus da sucumbência deverão ser carreados à Fazenda Pública (Agravo de Instrumento nº 1995.01.26895-0/GO (00105217), 3ª Turma do TRF da 1ª Região, Rel. Juiz Eustáquio Silveira. j. 14.09.2000, Publ. DJ 07.12.2000 p. 109).
  10. "Art. 181- É isento de pena quem comete qualquer dos crimes previstos neste título, em prejuízo: I - do cônjuge, na constância da sociedade de conjugal; II - de ascendente ou descendente, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, seja civil ou natural." As escusas absolutórias são causas de isenção de pena, e portanto, atuam na culpabilidade do ato.
  11. "Art. 182- Somente se procede mediante representação, se o crime previsto neste título é cometido em prejuízo: I - do cônjuge desquitado ou judicialmente separado; II - de irmão, legítimo ou ilegítimo; III - de tio ou sobrinho, com quem o agente coabita".
  12. Gilmar Ferreira Mendes. Jurisdição Constitucional. O controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha, Saraiva, 3ª edição, 1999. p. 338.
  13. ADIN 1.458/DF.
  14. ADIN 1484/DF.
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Sobre o autor
Marcelo Colombelli Mezzomo

Ex-Juiz de Direito no Rio Grande do Sul. Professor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEZZOMO, Marcelo Colombelli. Apontamentos iniciais sobre o Estatuto do Idoso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 572, 30 jan. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6233. Acesso em: 19 abr. 2024.

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