Uma análise pontual da intervenção estatal como meio de obtenção dos direitos fundamentais ante a realidade atual do Estado brasileiro

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16/03/2018 às 11:08
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Os Direitos Fundamentais e os Serviços Públicos no Estado Democrático de Direito

A discussão sobre os novos papéis do Estado e de suas estruturas administrativas resultaram em doutrina nacional decorrente dos valores estabelecidos na Constituição Federal de 1988, que traz consigo princípios de verdadeiro exercício de democracia. Nesse sentido, Celso Lafer[43], citado por Vicente Bagnoli,[44] escreve que “os valores fundantes da democracia provêm de ‘um processo histórico incessante de integração de valores de convivência’, composto de vários legados.”

Mais que isso, Bagnoli,[45] a pretexto dessa evolução histórica observa:

A Constituição Federal de 1988, como a maioria das cartas que seguem a da República de Weimar, influenciada por sua vez pela Encíclica Rerum novarum de 1891 e por dois acontecimentos de 1917, a Constituição Mexicana e a Revolução Russa, tem em eu corpo a preocupação com o econômico e o social, elevando esses dois conceitos a preceitos constitucionais observados e garantidos pelo Estado.[46]

Neste diapasão, Ana Paula de Barcellos,[47] ao analisar o neoconstitucionalismo, os direitos fundamentais e o controle das políticas públicas, em obra sobre os direitos fundamentais, em homenagem ao Professor Ricardo Lobo Torres, reconhecendo o fim essencial da promoção dos direitos fundamentais no texto constitucional brasileiro, entende que “as políticas públicas constituem o meio pelo qual os fins constitucionais podem ser realizadas de forma sistemática e abrangente, mas envolvem gasto de direito público”, observando ainda a escassez dos recursos públicos e da importância das escolhas de gastos e políticas públicas.

No entendimento de Paulo Augusto de Oliveira,[48] evoluímos de um Estado executor (prestador) para um Estado de regulação justamente em função da escassez, buscando-se um aperfeiçoamento no modelo de governança pública, uma espécie de “renew deal”[49] devendo haver mútua colaboração entre Estado e mercado, dispondo o tema da seguinte forma:

O atual contexto de escassez vai acarretar uma substancial alteração comportamental do Estado Administrativo, em uma reforma/aperfeiçoamento da Administração Pública, do direito administrativo.

Emerge, assim, da atual conjuntura política, econômica e social, o direito administrativo da escassez, que enxerga notadamente no direito administrativo da regulação (Regulierungsverwaltungsrecht) um viés para alcançar os fins objetivados pelo Estado Regulador e Garantidor.

Ao se observar as dificuldades de cumprir com o seu papel constitucional até mesmo para atender os mais básicos direitos, o cidadão se vê diante de situação que afeta à sua própria dignidade como outrora comentado, mas o que se quer observar aqui é a amplitude dos serviços habituais oferecidos pelo Estado, que também tem sido relegados e desatendidos.

No contexto de serviço público, valemo-nos do conceito adotado por boa parte da doutrina, entre eles Maria Sylvia Zanella Di Pietro,[50] que os classifica como sendo de sentido amplo e de sentido restrito.

A autora, comentando os serviços em sentido amplo, toma por referência os pensamentos de José Cretella Júnior[51] e Hely Lopes Meirelles,[52] observa ser o primeiro mais amplo, porque o último faz referência ao Estado, enquanto que o primeiro estabelece aqueles serviços prestados pela administração, excluindo as atividades legislativa e jurisdicional.

Já para os serviços públicos em sentido restrito, Maria Sylvia[53] guarda aqueles exercidos pela Administração Pública, com exclusão das funções legislativa e jurisdicional, assim complementando: “[...] e, além disso, o consideram como uma das atividades administrativas, perfeitamente distintas do poder de polícia do Estado. Parte-se da distinção entre atividade jurídica e atividade social.”

Associa a primeira ao poder de polícia, enquadrando no contexto da atividade social os assuntos de interesse coletivo, que visem ao bem-estar e ao progresso social, mediante o fornecimento de serviços aos particulares, equivalendo, portanto, aos serviços púbicos propriamente ditos.

Adriana da Costa Ricardo Schier,[54] ao estabelecer a “noção” de serviço público, dentro de um contexto histórico-político, o faz, partindo da ideia de Eros Roberto Grau[55], segundo o qual o conceito seria atemporal, por isso mais adequado tratar como noção e não como conceito, notadamente porque, segundo o referenciado autor, considerando a temporalidade, o conceito se modifica.

Paulo Eduardo Garrido Modesto,[56] por sua vez, ao citar Roberto DROMI[57] e suas duas interpretações básicas, entende que poucos ainda sustentam a ideia do conceito amplíssimo ou máximo de serviço público como designação da atividade do Estado ou da Administração Pública.

Segundo ele,[58] na doutrina brasileira o conceito de serviço público é apresentado sob diversos critérios e ao se perceber que um conceito amplo do serviço reunia toda a atividade administrativa caiu em decadência, não podendo o conceito jurídico ser naturalístico ou essencialista, pressupondo a conjugação de diversos elementos de caracterização[59], sendo um conceito objetivo, mas também formal e material.

Paulo Modesto,[60] também apresenta um conceito mais amplo estabelecendo o que seria um serviço de relevância pública, nos seguintes termos:

São atividades de relevância pública as atividades consideradas essenciais ou prioritárias à comunidade, não titularizadas pelo Estado, cuja regularidade, acessibilidade e disciplina transcendem necessariamente à dimensão individual, obrigando o Poder Público a controlá-las, fiscalizá-las e incentivá-las de modo particularmente intenso. Não há aqui exigência de aplicação obrigatória de todas as obrigações de serviço público tradicionalmente reconhecidas na legislação. Nem titularidade exclusiva desses interesses pelo Estado, admitindo-se a livre atuação privada. Mas a lei ordinariamente impõe que a fiscalização e regulação dessas atividades pelo Poder Público seja minudente e tutelar, sendo assegurando ainda o respeito a princípios constitucionais, em especial o princípio da dignidade da pessoa humana.


A Ação Interventiva do Estado e a sua Atuação Sancionatória

Neste instante começa a despontar a importância da ação interventiva do Estado na ordem econômica, vindo a regular a atividade (na condição sancionatória), ganhando, nas palavras de Marçal Justen Filho,[61] especial relevância, entendendo ele, com base na CF/88, a intervenção estatal como sendo indireta[62] e direta (onde enquadra o serviço público[63] e a atividade econômica em sentido próprio[64],[65]).

Marçal Justen Filho,[66] de forma pontual, assim define a regulação econômico-social:

A regulação econômico-social consiste na atividade estatal de intervenção indireta sobre a conduta dos sujeitos públicos e privados, de modo permanente e sistemático, para implementar as políticas de governo e a realização dos direitos fundamentais.

Ou seja, tanto no cotidiano em ações comuns ao Estado deve haver a preocupação no atendimento dos direitos fundamentais, como nas ações interventivas pontuais de forma a regular as atividades se não puder exercê-las diretamente e lançando mão, muitas vezes de agentes regulatórios criados para tais fins.

Referentemente ao vocábulo “regulação”, aliás, o autor continua, afirmando que a sua utilização não é casual, diferenciando-se da expressão “regulamentação”, assim dispondo:

Na terminologia consagrada entre nós, a expressão “regulamentação” corresponde ao desempenho de função normativa infraordenada, pela qual se detalham as condições de aplicação de uma norma de cunho abstrato e geral[67], tal como dispõe o art. 84, IV da Constituição.

O conceito de regulação é muito mais amplo e qualitativamente distinto. Eventualmente, a regulação pode se traduzir em atos de regulamentação.

No entendimento de Egon Bockmann Moreira[68] há muita diferença entre a CF atual e as pretéritas, pois o Estado brasileiro é definido como um “agente normativo e regulador”, sendo o atual Direito brasileiro de regulação econômica considerado inédito. Para o autor, a CF atual começou a mudar, não permanecendo imune à ordem econômica, e tendo como eixo central os seus artigos 173 e 174.

E para que tenhamos o desenvolvimento esperado, é necessário que se tenha um Estado eficiente, pois instituições fortes e desenvolvidas produzem resultados que voltam ao próprio mercado como já pregava Amartya Sen,[69] quando tratava de mercados, Estado e oportunidade social em suas observações finais da Economia do Desenvolvimento:

Os indivíduos vivem e atuam em um mundo de instituições. Nossas oportunidades e perspectivas dependem crucialmente de que instituições existem e do modo como elas funcionam. Não só as instituições contribuem para nossas liberdades, como também seus papéis podem ser sensivelmente avaliados à luz de suas contribuições para nossa liberdade.

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Mais que isso, segundo Adriana da Costa Ricardo Schier,[70] há necessidade que, para o atendimento desta missão, o Estado tenha delimitado os vetores de atuação e neste sentido,[71]

[...] o art. 37, da Carta Magna estabeleceu como vetores da Administração Pública a observância dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade. Mais tarde, com a EC 19/98, seria acrescentado, ainda, o princípio da eficiência.

Evidentemente que a intervenção estatal, mesmo que represente uma orientação constitucional e seja respaldada nos Direitos Fundamentais, nem sempre é vista com bons olhos, pois a intervenção e a sanção administrativa[72],[73] representam, antes de tudo, a exteriorização de uma política repressiva típica do século XIX, como assevera Alejandro Nieto ao tratar da relação dos particulares em caso pontual:[74]

Los particulares suelen protestar por el excesso de intervencionismo administrativo, por la multitud de reglamentos que predeterminan hasta las más mínimas actividades de la vida cotidiana; pero luego, cuando sucede un accidente (incendio em una discoteca, envenenamientos masivos) reprochan a la Administración su negligencia o tolerancia, es decir, el no haber controlado lo suficiente al causante. Con la tecnología moderna, la vida colectiva es un “estado de riesgo” que resulta forzoso admitir si no queremos volver al siglo XIX. Assunción que implica la intervención pública, puesto que ni los particulares están em condiciones técnicas de percatarse de la calidad de los bienes y servicios que consumen y usan, ni el mercado puede regularia por sí mismo. Pues bien, si se acepta la regulación pública, hay que aceptar la sanción por su incumplimiento. Lo que significa que no podemos pedir la protección del Estado contra las manipulaciones peligrosas de alimentos y luego quejamos de que se sancione a quien há alterado la proporción de unos aditivos de nombre enrevesado. No podemos exigir que al Estado que nos garantisse la seguridade del tráfico y luego quejamos de las multas que se imponem por no respetar las señales de um semáforo. Hay que ser congruentes.

Essa intervenção estatal no domínio econômico é conceituada por Diógenes Gasparini,[75] como sendo “todo ato ou medida legal que restringe, condiciona ou suprime a iniciativa privada em dada área econômica, em benefício do desenvolvimento nacional e da justiça social, assegurados os direitos e garantias individuais.”

Já Marcus Vinicius Corrêa Bittencourt,[76] ao tratar dos princípios que devem reger esta intervenção, tendo o texto constitucional por parâmetro, assim dispõe:

A ordem econômica consiste no conjunto de normas constitucionais que definem os objetivos de um modelo para a economia e as modalidades de intervenção do Estado nessa área.

No art. 170 da Constituição Federal, encontra-se estabelecido um conjunto de princípios constitucionais de como a ordem econômica deve se pautar: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente; VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas, sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no país”.

Para Emerson Gabardo,[77] a intervenção estatal na atividade privada se daria por expressa previsão do texto constitucional ou mesmo pela lei e não por insuficiência da atividade privada, tendo como fundamento o próprio processo de desenvolvimento e não a da subsidiariedade.[78]

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Sobre o autor
José Julberto Meira Junior

Advogado; Mestre em Direito Empresarial pelo Programa de Pós-Graduação do Centro Universitário Curitiba (2018) e especialista em Direito Tributário (1999) pelo IBEJ/FESP; Professor Universitário nos cursos de especialização da UNICENP, FAE BUSINESS, FESP, ABDCONST (Curitiba), FAG (Cascavel e Toledo), CTESOP (Assis Chateaubriand); UniOPET EAD (Curitiba); Instituto Navigare / Faculdade Stª Fé (São Luis – Maranhão), UFPR/Ciências Contábeis (Curitiba), PUC (Curitiba); com estágio docente realizado na Universidade de Santiago de Compostela (USC/Espanha); Membro do Comitê Tributário da OAB/PR; membro honorário do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT); membro do Instituto de Direito Tributário do Paraná (IDT); membro do Comitê de Estudos Tributários, Fiscais e Contábeis do CRC/PR e do Conselho Temático Tributário da Federação das Indústrias do Paraná (FIEP). Lattes: http://lattes.cnpq.br/2581196308704093 E-mail: [email protected]

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