Limites de sindicabilidade da valoração de conceitos indeterminados:o controle de legalidade, legitimidade e constitucionalidade da valoração de conceitos indeterminados

05/06/2018 às 00:44
Leia nesta página:

A essência do artigo é expor os rigores metodológicos necessários para a devida intervenção judicial na análise da concretização de conceitos jurídicos indeterminados.

INTRODUçÃO

O artigo destina-se a analisar a sindicabilidade da valoração de conceitos indeterminados com intuito de definir a possibilidade e a medida de controle de atos interpretativos e os limites e parâmetros mais adequados, em termos compatíveis com os princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito. O trabalho adota como vetor, especialmente, os limites de controle da valoração realizada pelo administrador-gestor, em que pese a construção argumentativa e as conclusões apresentadas possam ser aplicada também à atividade de verificação da correção interpretativa realizada em sede judicial, quando a matéria for objeto de recurso.

Tal discussão se presta a pautar a atuação do Estado e frear abusos interpretativos na aplicação do direito, reforçando a submissão da Administração Pública, dos gestores públicos e dos aplicadores do direito vinculação aos mandamentos constitucionais.


O CONTROLE DE LEGALIDADE, LEGITIMIDADE E CONSTITUCIONALIDADE DA VALORAÇÃO DE CONCEITOS INDETERMINADOS

A questão a respeito do controle da valoração administrativa dos conceitos jurídicos indeterminados, e seus limites, passa, necessariamente, pela discussão sobre se tratar a concretização de tais conceitos de ato discricionário ou vinculado. Quanto a esse ponto, sem adentrar a polêmica existente, o melhor entendimento aponta no sentido de que o espaço de tomada de decisão conferido ao interprete não o põe diante de uma verdadeira liberdade, e sim, de um juízo de estrita vinculação, o que traz repercussões diretas no espectro de sindicabilidade.

Como é cediço, no exame de atos administrativos que digam respeito ao poder discricionário, em princípio, qualquer das opções dadas ao administrador, dentro do espaço conferido pelo legislador, será incensurável e inexaminável[1]. Nesses casos, conforme tradicional doutrina[2], o julgador somente entenderá uma medida como ilegal quando verificar a incompetência da autoridade, a irregularidade da forma empregada ou o excesso de poder[3].

Por outro lado, quando a análise se pauta em juízo vinculado o julgador realizará juízo de adequação do fato apresentado às finalidades da norma que se pretende cumprir para determinar a correção da conduta administrativa, pois não resta espaço ao administrador no seu atuar em qualquer dos elementos do ato administrativo. Assim sendo, permite-se as possibilidades de exame quanto à correção ou incorreção da escolha realizada.

Uma vez franqueada a possibilidade de controle da escolha do interprete, cumpre verificar quais os seus limites. Ou seja, é necessário determinar em que hipóteses e de que forma o juiz poderá afirmar que a interpretação conferida por terceiros se prestou a atender o comando legal, tal como, de que forma ele mesmo, ao interpretar conceitos indeterminados, deverá agir.

Em determinadas hipóteses, a verificação a respeito da regular concretização de um conceito jurídico indeterminado é facilmente aferida. O problema surge justamente nos casos em que não é possível afirmar, de imediato, que determinada aplicação é adequada aos fins que se propõe. É de se notar que, embora quem possua oito anos de idade possa se inserir no conceito de jovem e quem possua oitenta não o possa, suscitaria dúvidas definir se um indivíduo de quarenta anos se enquadraria no conceito, o que dependeria da análise de diversos aspectos, muitas vezes externos ao próprio termo, mas necessários a contextualizar o âmbito em que se empregaria a afirmativa.

É por isso que surgem os conceitos de zonas de certeza positiva, negativa e de incerteza[4], sendo esta a que traz maior dificuldade ao julgador. Isso, pois trata de hipóteses que não estão claramente incluídas ou excluídas na subsunção de uma determinada realidade ao conceito proposto.

É nessa área de penumbra que ganha importância a atuação dos órgãos de controle externo da administração, tal como dos órgãos judiciais que atuam em grau recursal, visto que aferirão, no caso concreto, se a atuação do interprete se deu de forma legítima, de acordo com as finalidades legais e em conformidade com os princípios constitucionais que regem a matéria.

Por mais tormentosa e difícil que seja a questão, em que pese o que afirma parte da doutrina[5], é majoritário o entendimento de que o julgador não pode deixar de decidir sob a alegação de inexistência de norma adequada ao caso, ante o mandamento do non liquet. Nesse sentido, ressaltam-se os dizeres de Fredie Didier Jr.:

[...] todo problema que for submetido ao Tribunal precisa ser resolvido, necessariamente. É dizer: ainda que a situação concreta não esteja prevista expressamente na legislação, caberá ao magistrado dar uma res posta ao problema, classificando-a como lícita ou ilícita, acolhendo ou negando a pretensão do demandante.[6]

Percebe-se, portanto, que, mesmo nas situações em que não seja possível extrair uma nítida resposta jurídica sobre o acerto ou desacerto da atividade interpretativa que se questiona, o julgador não pode, nem deve, se abster do dever de julgar. Nesses casos, portanto, para que se possa estabelecer critérios decisórios, deve-se observar o contexto em que está inserido o conceito indeterminado, a finalidade perseguida pela norma em que se encontra inserido e os objetivos buscados pelo interlocutor, no caso, o legislador.

O fruto de tal análise deve ser interpretado sistematicamente, à luz das normas principiológicas incidentes sobre o caso. Somente dessa forma o julgador poderá formar seu convencimento, por meio de decisão motivada, sobre a adequação da concretização aos mandamentos legais e a consequente regularidade ou irregularidade de sua atuação, como decorrência do enquadramento em uma zona positiva ou negativa.

O que se busca aqui evidenciar como parâmetro de concretização, portanto, que, diante de conteúdo periférico vago e impreciso, com alto grau de controvérsia e incerteza, deve tanto o interprete, quanto o administrador ou julgador sempre interpretar os elementos do caso concreto em consonância com vetores constitucionais que pautam a atuação estatal para guiar seu juízo, de modo que qualquer opção ilegítima seja efetivamente excluída. 

Ainda que não se possa afirmar categoricamente que a concretização inseriu-se em uma zona de certeza positiva, caso a análise realizada não o leve a aferir qualquer desconformidade com os postulados do bloco de juridicidade (zona de certeza negativa), deve-se preserva-la como legítima.

Em adição, quanto à atividade de controle, destaca-se que se a Administração ou julgador firmou uma intelecção comportada pelo conceito no caso concreto –­ ainda que outra também pudesse sê-lo –, seu ato deve, em primeira análise, ser preservado, uma vez que ele está mais perto dos problemas e, de regra, mais bem aparelhado para resolvê-los, uma vez que em contato direto com os fatos e provas que fundamentaram a escolha. Assim, caberá a eventual revisor – seja a própria Administração, o juízo de primeiro grau ou a instância jurisdicional recursal – a postura de autocontenção, deixando de intervir na decisão.

Percebe-se, portanto, que, além de desejável, é exigível que se imponha como balizas interpretativas das escolhas a submissão aos princípios constitucionais norteadores do Estado Democrático de Direito e às garantias dos jurisdicionados.

A função de controle nesse aspecto é a de fiscalizar o processo decisório e orientar o direcionamento do vetor interpretativo, valendo-se, para tanto, na esfera administrativa, dos mecanismos de revisão ou anulação dos atos e da punição dos agentes e na esfera judicial da reforma ou anulação de decisões. Tal atuação visa, sobretudo, a oferecer diretrizes para o aperfeiçoamento da atividade administrativa.


CONCLUSÃO

A solução do legislador, de empregar conceitos jurídicos indeterminados que lhe possibilitem conferir maior aplicabilidade e efetividade aos textos normativos, encontra óbices em sua aplicação. O artigo voltou-se, especialmente, à premente necessidade de se traçar parâmetros para a concretização de tais conceitos de forma a se afastar, de um lado, arbitrariedades e injustiças decorrentes de interpretações ilegais, mas, de outro, a impedir a interferência indevida na atividade do intérprete.

Para tanto, necessário se faz perceber que os conceitos fluidos, também chamados de conceitos indeterminados, podem se situar numa zona de certeza, positiva; numa zona de certeza negativa; e, por fim, na zona de incerteza em que se deve perquirir se a sua concretização, diante do caso concreto e das finalidades inerentes ao dispositivo legal, prestou-se ao atendimento do interesse público e, cumulativamente, não violou nenhum dos princípios constitucionais, mormente a isonomia; impessoalidade; moralidade; publicidade; eficiência; e a própria noção de legalidade.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Desse modo, o dever do interprete de realizar, e do julgador de aferir, a adequada concretização dos conceitos fluidos, passa pela transposição da mencionada zona de incerteza que lhe é apresentada, para a zona de certeza, seja positiva, seja negativa, uma vez que tal intervenção é necessária para que o ato praticado em desacordo com a finalidade legal cesse seus efeitos.

Nota-se, portanto, que a tarefa de interpretação legal e aplicação dos conceitos indeterminados deve ser feita com organização e rigor metodológicos, diante das balizas aferidas no caso concreto, sendo certo que determinadas matérias devem ser continuamente debatidas e aperfeiçoadas, de modo que os jurisdicionados possam conhecer e aplicar os entendimentos que melhor atendam às finalidades de interesse público perquiridas pelo legislador.

Tal noção quando aplicada ao controle sobre a concretização dos conceitos jurídicos indeterminados revela a fundamental importância de que as decisões sejam fundamentadas e que os critérios de orientação para apreciação do tema sejam conhecidos, mormente diante das diretas repercussões no interesse público e na necessidade de fortalecimento da confiança depositada nas instituições do Estado.


REFERÊNCIAS.

DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 17. ed. rev., atual. e ampl. V. 1. Salvador: Juspodivum, 2015.

ENTERRÍA, Eduardo García de; FERNANDÉZ, Tomás-Ramón. Curso de Direito Administrativo. Tradução Arnaldo Setti. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1990.

FRANÇA, Vladimir da Rocha. Vinculação e discricionariedade nos atos administrativos. Revista de Informação Legislativa. v. 38. n. 151. Senado Federal, jul./set. 2001. Disponível em <http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/703>. Acesso em: 11 out. 2017.

MEIRELLES, Hely Lopes de. Direito Administrativo Brasileiro. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2005.

SILVA, Almiro do Couto e. Poder discricionário no direito administrativo brasileiro. Revista de Direito Administrativo, n. 179/180, jan./jun. 1990.


Notas

[1] SILVA, Almiro do Couto e. Poder discricionário no direito administrativo brasileiro. Revista de Direito Administrativo, n. 179/180, jan./jun. 1990, p. 60.

[2] “Erro é considerar-se o ato discricionário imune à apreciação judicial, pois só a Justiça poderá dizer da legalidade da invocada discricionariedade e dos limites de opção do agente administrativo. O que o Judiciário não pode é, no ato discricionário, substituir o discricionarismo do administrador pelo do juiz. Não pode, assim, `invadir opções administrativas ou substituir critérios técnicos por outros que repute mais convenientes ou oportunos, pois essa valoração’ é privativa da Administração. Mas pode sempre proclamar as nulidades e coibir os abusos da Administração.” (MEIRELLES, Hely Lopes de. Direito Administrativo Brasileiro. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 120.).

[3] Destaca-se que essa tradicional visão sobre os limites do controle judicial, restrito à análise de legalidade, encontra ampliada diante do princípio da juridicidade, que amplia o espectro de controle, uma vez que leva em consideração para análise de legalidade e legitimidade dos atos administrativos, ainda que discricionários, a conformidade deles não apenas com a lei, mas também com os princípios norteadores do atuar administrativo. Sem embargo, o mérito continua indevassável ao controle pelo Poder Judiciário, mas, então, já se está em uma esfera além da legalidade e da juridicidade.

[4] “Na estrutura do conceito indeterminado, é identificável um núcleo fixo (Begriffkern) ou ‘zona de certeza’, configurado por dados prévios e seguros, uma zona intermédia ou de incerteza ou ‘halo do conceito’ (Begriffhof), mais ou menos imprecisa, e, finalmente, uma ‘zona de certeza negativa’, também certa quanto à exclusão do conceito.” (ENTERRÍA; Eduardo García de; FERNANDÉZ, Tomás-Ramón. Curso de Direito Administrativo. Tradução Arnaldo Setti. São Paulo: Revista dos Tribunais. p. 396.).

[5] Há entendimento doutrinário no sentido de que quando verificada a impossibilidade de determinar se a interpretação dada a determinado conceito atendeu ou não os fins leis, o magistrado deveria deixar de apreciar o acerto ou erro por não saber como decidir: “O exame judicial dos atos administrativos de aplicação de conceitos jurídicos indeterminados não está sujeito a um limite a priori estabelecido na lei. O próprio julgador, no instante de decidir, é que verificará se há um limite, ou não, ao controle judicial. Haverá limite se, em face da complexidade do caso, da diversidade de opiniões e pareceres, não podendo ver com clareza qual a melhor solução, não lhe couber outra alternativa senão a de pronunciar um non liquet, deixando intocada a decisão administrativa.” (SILVA, Almiro do Couto e. Poder discricionário no direito administrativo brasileiro. Revista de Direito Administrativo, n. 179/180, jan./jun. 1990. p. 58.).

[6] DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 17. ed. rev., atual. e ampl. V. 1. Salvador: Juspodivum, 2015. p. 160/161.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Renan de Freitas Ongaratto

Advogado graduado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC/RJ. Advogado. Pós-graduado em Direito Constitucional pela Faculdade Cândido Mendes e especialista em Direito Público e Privado pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos