O direito ao contraditório e ampla defesa como pré-requisito a desconsideração da pessoa jurídica no processo de execução fiscal

16/07/2018 às 14:30
Leia nesta página:

A ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa. Como forma de amenizar os riscos que envolvem a área empresarial e ao mesmo tempo fomentá-la, o legislador pátrio adotou a teoria da personalidade jurídica, segundo a qual, por uma ficção jurídica é constituído um ser dotado de personalidade própria capaz de adquirir e exercer direitos, dissociada das pessoas que lhe constituíram.

No intuito de coibir os possíveis abusos e desvios que poderiam ser cometidos por indivíduos mal intencionados se valendo do escudo da autonomia e proteção patrimonial, foi criada a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, que permite superar a separação entre os bens da empresa e dos seus sócios.

Com o propósito de entregar maior segurança aos jurisdicionados, o Código Processual de 2015 nos seus artigos 133 e 134[1] positivou o procedimento a ser observado pelo magistrado e pelas partes que pretendam obter a desconsideração da personalidade jurídica.

Primando pela observância ao devido processo legal, contraditório e ampla defesa, o legislador infraconstitucional determinou no art. 135 do CPC[2] que, uma vez requerido e instaurado o incidente de desconsideração da pessoa jurídica, serão os interessados intimados para apresentação de defesa

O princípio do contraditório é um reflexo da democracia, já que exercê-lo significa participar de forma efetiva do processo, seja ele judicial ou administrativo, em outras palavras, este princípio garante aos litigantes o direito de participar do processo e de influenciar na decisão a ser proferida, pois não há contraditório sem defesa.[3]

Como se nota, o conceito de contraditório compreende a garantia de efetiva participação das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de influírem, em igualdade de condições, no convencimento do magistrado, contribuindo na descrição dos fatos, na produção de provas e no debate das questões de direito e, nesse momento, se aproxima do princípio da isonomia.[4]

Essa dialética processual deve ser observada ao longo de todo o processo, de forma que, antes de decidir sobre a desconsideração da personalidade jurídica e determinar o redirecionamento da execução fiscal, o juiz deve instaurar o contraditório prévio, pois constitui uma necessidade inerente ao processo judicial, ostentando a natureza de uma garantia inviolável de todo cidadão.[5]

É preciso observar o contraditório prévio a fim de evitar um “julgamento surpresa”, ainda que se trate de uma questão que possa ser conhecida de ofício ou de uma presunção simples, conforme previsão dos artigos 9º e 10 do CPC.[6]

Em suma, a decisão que determina o redirecionamento da execução sem instaurar o incidente de desconsideração da pessoa jurídica viola os princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da isonomia, além do princípio processual da não surpresa.

A desconsideração da personalidade jurídica é medida anômala e excepcional, cuja hipótese de cabimento exige uma análise mais detalhada e a comprovação de uma das hipóteses previstas no art. 135 do CTN[7], a saber, prática de atos com excesso de poder, infração a lei, contrato social ou estatuto.

A mera incompetência na administração da empresa não é, por isso só, motivo suficiente para superar a personalidade jurídica e, com isso, penetrar no patrimônio dos sócios, pois a insolvência do devedor compõe o risco natural da atividade empresarial.

Igualmente, a dissolução da pessoa jurídica não é motivo suficiente para a desconsideração da personalidade jurídica, pois equivale à responsabilização dos sócios por mero inadimplemento, ocasionado pela insuficiência de bens necessários à satisfação das dívidas contraídas, o que a rigor é pressuposto para decretação da falência, e não da desconsideração da personalidade jurídica.

A simples inadimplência da obrigação não configura infração capaz de ensejar a responsabilização solidária do sócio, conforme súmula nº. 430 do STJ: “O inadimplemento da obrigação tributária pela sociedade não gera, por si só, a responsabilidade solidária do sócio-gerente”.

Pensar de forma diferente levaria a violação ao princípio do livre exercício da iniciativa privada e o princípio da função social da propriedade, talhados no art. 170 da Constituição Federal.[8]

Assim, não há dúvidas que o instituto da desconsideração da personalidade jurídica deve ser aplicado com cautela, obedecendo aos requisitos previstos em lei, com a apresentação de provas concretas de que a finalidade da pessoa jurídica foi desviada, não bastando à mera alegação genérica.

É inegável o uso do incidente de desconsideração da personalidade jurídica aos processos da seara tributária, pois o art. 1 da Lei nº. 6.830/1980[9] é claro ao prever a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil ao processo de execução.

Tal entendimento é corroborado pelo § 2º do art. 4[10], ao aduzir que se aplica a Dívida Ativa da Fazenda Pública de qualquer natureza as normas relativas à responsabilidade prevista na lei civil:

O ordenamento jurídico está em constante evolução, de forma que os operadores devem, nas lições do professor Carlos Maximiliano, interpretar o texto legislativo de maneira inteligente, não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniência ou conclusões inconsistentes e impossíveis.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Logo, entender que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica não tem aplicabilidade na seara tributária é desconsiderar por completo a evolução do direito e negá-lo na sua própria essência, além de afronta aos princípios constitucionais do devido processo legal, contraditório e da isonomia.  


NOTAS

[1] Art. 133.  O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.

§ 1o O pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará os pressupostos previstos em lei.

Art. 134.  O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial.

[2] Art. 135.  Instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 (quinze) dias.

[3] JR, FredieDidier. Curso de Direito Processual Civil,Introdução ao Direito Processual Civil e Processo de Conhecimento. 13ª Ed. Salvador: Juspodivm, 2011, p. 45, 56 e 60.

[4] CUNHA. Leonardo Carneiro da. O princípio contraditório e a cooperação no processo. Disponível em <https://www.leonardocarneirodacunha.com.br/artigos/o-principio-contraditorio-e-a-cooperacao-no-processo/>. Acesso em: 21 set. 2017.

[5]CUNHA. Leonardo Carneiro da. O princípio contraditório e a cooperação no processo. Disponível em <https://www.leonardocarneirodacunha.com.br/artigos/o-principio-contraditorio-e-a-cooperacao-no-processo/>. Acesso em: 21 set. 2017.

[6] Art. 9o Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida.

Art. 10.  O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.

[7] Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:

I - as pessoas referidas no artigo anterior;

II - os mandatários, prepostos e empregados;

III - os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.

[8] Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...]

III - função social da propriedade; [...]

Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

[9] Art. 1º - A execução judicial para cobrança da Dívida Ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e respectivas autarquias será regida por esta Lei e, subsidiariamente, pelo Código de Processo Civil

[10] Art. 4º - A execução fiscal poderá ser promovida contra: [...]

§ 2º - À Dívida Ativa da Fazenda Pública, de qualquer natureza, aplicam-se as normas relativas à responsabilidade prevista na legislação tributária, civil e comercial.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Renato Rodrigues Gomes Adv.

Advogado do núcleo de Direito Tributário no Andrade & Goiana Advogados Associados. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Christus - Unichristus. Pós-graduando em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudo Tributário – IBET. Pós-graduando em Processo Civil pela Universidade Cândido Mendes. Pós-graduando em Direito e Planejamento Tributário pelo Centro Universitário Estácio do Ceará.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos