Breve histórico
Surge no mundo jurídico, em 2001, a Lei Federal 10.267, que dentre tantas alterações, passa a vincular à necessidade de descrição georreferencial os casos que especifica. Na atividade registrária, as alterações são mais vivamente sentidas face o acréscimo dos parágrafos 3º e 4º ao artigo 176, e do parágrafo 3º ao artigo 225, ambos da Lei Federal 6.015/73 (Lei de Registros Públicos – LRP).
A introdução do ponto georreferencial esteve desde o princípio vinculada a regulamentação futura do INCRA e, nos casos de transferência de imóvel rural, a estipulação de prazos após os quais passaria a ser exigido.
De início, surgiu abarcando as seguintes hipóteses: desmembramento, parcelamento e remembramento de imóveis rurais (artigo 176, parágrafo 3º, da LRP), transferência de imóvel rural (artigo 176, parágrafo 4º, da LRP) e autos judiciais que versem sobre imóveis rurais (artigo 225, parágrafo 3º, da LRP).
Pendente que estava de regulamentação, o primeiro passo para consumação desta foi a edição e publicação do Decreto 4.449/2002, o qual em seu artigo 10 trouxe os prazos reclamados no parágrafo 4º do artigo 176 da Lei Federal 6.015/73. Eivado de impropriedades, foi publicado o Decreto no Diário Oficial da União de 31 de outubro de 2002. Dentre as incongruências patentes, desde aquele momento ganhavam relevância três aspectos:
1º) Os prazos eram somente para as situações de transferência, e não envolviam de maneira clara e inequívoca também as demais hipóteses, a saber, desmembramento, parcelamento, remembramento e autos judiciais que versem sobre imóveis rurais;
2º) Os prazos tinham como data do início a da publicação do Decreto, enquanto o artigo 9º do mesmo ato expedido pelo Executivo, em consonância com a Lei Federal 10.267/2001, vinculava o georreferenciamento a ato normativo a ser expedido pelo INCRA;
3º) O artigo 16 mencionava que "Os títulos públicos, particulares e judiciais, relativos a imóveis rurais, lavrados, outorgados ou homologados anteriormente à promulgação da Lei nº 10.267, de 2001, ...", "...poderão ser objeto de registro, acompanhados do memorial descritivo elaborados nos termos deste Decreto." (destaque nosso)
Ora, em relação a esta última, evidente a defeituosa fixação do marco temporal. Por certo, dever-se-ia ter como ponto de referência não a Lei 10.267/2001, nem mesmo o próprio Decreto. Pois quando da Lei não havia os parâmetros implementados pelo Decreto e, quando deste, não havia as normativas do INCRA que viabilizaram a certificação do memorial descritivo.
Ao assim redacionar, o Executivo colocou em xeque todos os atos registrários praticados no interregno entre a Lei e o Decreto, como a dizer, mutatis mutandis, que os atos posteriores à promulgação da Lei e anteriores ao Decreto já deviam conter o georreferenciamento. Jamais se poderia impor a condição a um período em que inexistia qualquer regulamentação, de todo necessária.
Teria agido melhor se trouxesse que os atos anteriores ao Decreto, e aí não importa quando, tivessem sujeitos a apresentação do memorial descritivo. Ainda assim permaneceria inapropriado o dispositivo, isto porque pendia o Decreto de regulamentação normativa, a ser expedida pelo INCRA, visando dar exeqüibilidade ao georreferenciamento.
Percebendo a impropriedade de redação do artigo 16 do citado Decreto, os registradores, mostrando maturidade, via de regra, não opuseram óbice aos registros e averbações de títulos envolvendo imóveis rurais que não contassem com a descrição georreferencial, no período que medeou a promulgação da Lei e a publicação do Decreto.
O início de vigência do Decreto
Porém, após a edição do Decreto regulamentador, ocorrida em 31 de outubro de 2002, nova dúvida surge. Basta o Decreto estar no mundo jurídico regulamentando a Lei para que se possa exigir o georreferenciamento?
Novamente os Oficiais de Registro, entendendo sua novel característica de Profissionais do Direito, dão a correta leitura ao sistema e, a par do artigo 16 citado e da publicação do Decreto 4.449/2002, permaneceram não exigindo para a prática dos atos imobiliários concernentes ao registro o georreferenciamento de imóveis rurais. Desta feita, por uma questão técnica.
O artigo 9º, caput, do Decreto 4.449/2002, ressaltava a necessidade de futura regulamentação normativa pelo INCRA, de tal forma que não existiam naquele momento os requisitos técnicos de ordem objetiva que permitissem a certificação do memorial descritivo. Assim sendo, outra via não restou senão aguardar a posterior normatização pelo órgão agrário.
Tal normatização veio a ocorrer somente com as edições da Norma Técnica para Georreferenciamento de Imóveis Rurais e das Instruções Normativas 12 e 13 do INCRA, de 17 de novembro de 2003.
Nesse momento, aí sim, necessária a aplicação do georreferenciamento. Digamos que, em parte, as impropriedades do Decreto restaram sanadas, após atitude razoável adotada pelos registradores, que no período que antecedeu as normativas, deram a melhor leitura ao sistema, viabilizando que a economia e as transações imobiliárias envolvendo imóveis rurais tivessem regular curso.
Mas a normatização do INCRA não pareceu o suficiente para afastar todos os obstáculos decorrentes do novo e obrigatório sistema de medição dos imóveis rurais.
Das hipóteses sujeitas ao georreferenciamento e os prazos
Em uma leitura sistemática do artigo 10 do Decreto 4.449/2002 com a Lei 10.267/2001, notadamente os parágrafos por esta acrescidos aos artigos 176 e 225 da Lei Federal 6.015/73, poder-se-ia entender que os prazos aplicavam-se tão somente às hipóteses de transferência de imóvel rural.
Isto porque o artigo 176, parágrafo 4º, da LRP, vinculava o ponto georreferencial nas transferências aos prazos que foram fixados pelo Poder Executivo mediante a edição do Decreto 4.449/2002, certo que tanto o parágrafo 3º do citado artigo, que trata das hipóteses de desmembramento, parcelamento e remembramento, quanto o parágrafo 3º do artigo 225 da LRP, que trata de autos judiciais que versem sobre imóveis rurais, silenciavam quanto a necessidade de observância dos prazos.
Duas leituras se tornaram possíveis: a primeira, de que não havia prazo para as hipóteses de desmembramento, parcelamento, remembramento e autos judiciais, o que levaria a não aplicação da Lei; a segunda, mais razoável, conquanto gravosa, de que propositadamente não havia a estipulação de prazos, levando-se a conclusão que desde sempre aquelas situações necessitariam do georreferenciamento.
Não demorou muito, e o INCRA baixou a Portaria P/Nº 1032, de 02 de dezembro de 2002, publicada no Diário Oficial da União em 09 de dezembro de 2002, que, em síntese, veio estender a aplicação dos prazos as hipóteses de desmembramento, parcelamento e remembramento de imóveis rurais.
Se por um lado resolveu, por outro complicou. Pois, ao omitir na Portaria P/Nº 1032 que os prazos se aplicavam aos autos judiciais, reforçou o INCRA o entendimento de já ser aplicado imediatamente, independentemente de observância de qualquer prazo, o georreferenciamento aos autos judiciais que envolvam imóveis rurais.
Não tardou e essa discussão ganhou vida nos átrios forenses paulistas. A primeira decisão de que temos conhecimento, foi proferida em Piedade, Estado de São Paulo. Provocada pelo culto registrador, Doutor Fábio Martins Marsiglio, decidiu em 04 de março de 2004, a MM. Juíza da Primeira Vara Cível daquela Comarca, Sua Excelência, Doutora Laís Helena Bresser Lang :
"O art. 10, do Decreto nº 4.449/2002, citado pelos autores, a fl. 158, refere-se ao art. 176, da Lei nº 6.015/73 e não ao art. 225 do referido codex, de que trata a hipótese vertente. Desta forma, em se tratando de Registros Públicos, que retratam direito indisponível e têm como uma de suas vigas mestras o princípio da especialidade, não se pode dar interpretação extensiva ao mencionado art. 10, inserto no Decreto que veio à regulamentar a Lei nº 10.267/2001, devendo ser tida a mens legis, pela aplicabilidade imediata do geo-referenciamento, nos casos de ações judiciais que envolvem imóveis rurais " (destaque nosso).
Na seqüência da mesma discussão, agora em Araçatuba, Estado de São Paulo, e com a manifestação do registrador local, Doutor Marcelo Augusto Santana de Melo, um dos expoentes do registro imobiliário brasileiro, houve por bem Sua Excelência, Doutor Fernando Augusto Fontes Rodrigues Júnior, Corregedor Permanente do Registro Imobiliário daquela Comarca, normatizar a questão, em 06 de agosto de 2004, entendendo por aplicáveis os prazos também as hipóteses de autos judiciais que versem sobre imóveis rurais. E assim o fez:
"Em princípio, existe necessidade de apresentação do memorial de georreferenciamento, como implantado pela Lei 10.267/2001 e decreto regulamentador. Esta sistemática é a que deve imperar, segundo as novas regras.
Ocorre que, como ponderado pelo registrador, houve a edição de norma adiando a entrada em vigor da exigência, fixando cronograma para sua implementação para algumas hipóteses. Ora, trata-se de reconhecimento de que os interessados e os proprietários não estavam preparados para a nova providência.
E, nessa conformidade, o legislador concedeu maior prazo, permitindo que se procedesse a transferências, desmembramento e remembramentos, sem o georreferenciamento. Todavia, omitiu o legislador casos que no gênero, merecem o mesmo tratamento, tais como retificações de área em curso, usucapião, averbação de reserva legal.
E por analogia, deve se estender a tais casos a suspensão da exigência, aplicando-se o escalonamento do art. 10, do Dec. 4449/2002, também a dispensa do georeferenciamento nos prazos que especifica.
Diante do exposto, acolho o pedido de providências administrativas, para que se faça o registro do mandado de retificação, sem a apresentação do memorial e certificação do INCRA.
A presente decisão tem efeito normativo para casos do gênero, lembrando que posteriormente a providência do georreferenciamento deverá ser cumprida de acordo com as orientações e prazos fixados pelo INCRA." (destaque nosso).
Em expediente de retificação de área envolvendo imóveis de ambas as circunscrições imobiliárias da Comarca de Araraquara, Estado de São Paulo, o Corregedor Permanente da Serventia de que este autor é Titular, requisitou prestássemos informações acerca dos prazos do Decreto 4.449/2002, face o fato de que, em momento anterior a sua decisão, havíamos, nos termos da Lei 10.267/2001, do Decreto 4.449/2002 e das Instruções Normativas 12 e 13, nos manifestado pela necessidade imediata do georreferenciamento, com o que concordou a Douta Promotoria de Justiça e, pasmem, a parte interessada.
Após, entretanto, a sentença, cuja expedição de mandado ficou vinculada ao georreferencianento e ao trânsito em julgado, a parte interessada se inteirou das dificuldades próprias da obtenção do georreferenciamento. Tratava-se, no caso em concreto, de retificação de área judicial datada de 1998, e que se encontrava em fase final. O sistema georreferencial, imposto em desatenção a tais questões temporais, impingia, em verdade, novo procedimento retificatório, agora administrativo, ao interessado.
Entretanto, a única alegação do requerente era no sentido de que os prazos do artigo 10 do Decreto 4.449/2002 não haviam se escoados para a área em questão (menos de 1.000ha).
Em nossas informações, fizemos um histórico da Lei e do Decreto e apontamos a falta de previsão quanto a aplicação dos prazos aos autos judiciais e citamos os precedentes de Piedade e Araçatuba. Tendo em vista o caso concreto, mas em mente a questão maior, de solucionar a interpretação da questão georreferencial em nossa Comarca, assim nos manifestamos:
"Resta evidente que ambos os r. juízos verificaram a necessidade da exigência do georreferenciamento, dando, contudo, tratamento diferenciado aos prazos, ora excluindo as hipóteses de autos judiciais que versem sobre imóveis rurais, ora estendendo a tais hipóteses o escalonamento de prazos.
Certo é que, se Vossa Excelência afastar a exigência imediata do geo-referenciamento, entendo-se aplicável às hipóteses de autos judiciais que versem sobre imóveis rurais, ao agasalho do precedente de Araçatuba, ainda assim restará inviável para o caso destes autos a dispensa do geo-referenciamento, posto que quando do trânsito em julgado da sentença, já será obrigatória a exibição do trabalho técnico em obediência ao comando contido nos diplomas legislativos e executivo referidos, isto porque em 31 de outubro de 2004 já incidirá o inciso III do artigo 10 do Decreto 4.449/2002, que é a hipótese dos autos.
Por sua vez, note-se que o artigo 9º do Decreto 4.449/2002, que trata propriamente da identificação do imóvel rural nos termos da nova realidade legislativa, menciona em sua parte final a necessidade de fixação de um requisito técnico, a saber, ‘...e com precisão posicional a ser estabelecida em ato normativo, inclusive em manual técnico, expedido pelo INCRA'', a exemplo do já destacado nos parágrafos 3º do artigo 176 e 3º do artigo 225 da LRP.
A abordagem deste ponto é de extrema relevância para o deslinde do caso, isso porque os prazos tiveram como dia de início para sua contagem a publicação do Decreto, ou seja, dia 31 de outubro de 2002, quando não havia ainda o ato normativo do INCRA, reclamado tanto pelos parágrafos 3º do artigo 176 e 3º do artigo 225 da LRP, quanto pelo artigo 9º do Decreto 4.449/2002, certo que Portaria nº 954, que fixou a precisão posicional, data de 13 de novembro de 2002, vinculada ao estabelecido em Normas Técnicas para Levantamentos Topográficos, o que ocorreu com a edição, somente em novembro de 2003, da Norma Técnica Para Georreferenciamento de Imóveis Rurais, juntamente com as Instruções Normativas números 12 (Roteiro de Troca de Informações entre o INCRA e os Registros de Imóveis) e 13 (Fluxo a ser observado pelas Superintendências do INCRA, com vistas à certificação e atualização cadastral), que somente surgiram no mundo jurídico em 17 de novembro de 2003."
E continuamos:
"Aceitando o r. juízo que os prazos em questão se aplicam também as hipóteses de autos judiciais, nos termos do precedente de Araçatuba, somente restará viabilizada, por ora, aceitar a descrição tal como obtida nos autos, se também se entender que tais prazos começaram a correr a partir da definitiva regulamentação da matéria pelo INCRA (17/11/2003) e que viabilizaram a elaboração dos trabalhos técnicos feitos com base no sistema georeferencial, e não a partir do Decreto, conforme previsto em seu artigo 10, parte final do caput, por absoluta impossibilidade de início da contagem dos prazos como nele previsto, tendo em vista faltar requisito expresso na LRP, com a redação dada pela Lei 10.267/2001, no Decreto 4.449/2002, e na Portaria nº 954/2002, qual seja, ato normativo expedido pelo INCRA, o que somente veio a ocorrer em novembro de 2003 ." (destaque nosso)
Pela importância da matéria e por envolver a área em questão imóvel situado em ambas as circunscrições imobiliárias de Araraquara, além de decidir sobre a questão da aplicação dos prazos aos autos judiciais e da data de início da contagem dos mesmos, requeremos fosse ouvido o nobre colega de Comarca e normatizada a matéria.
E por decisão proferida em 25 de novembro de 2004, Sua Excelência, Dr. João Battaus Neto, Corregedor Permanente dos Registros Imobiliários da Comarca de Araraquara, resolve magistralmente a questão, tanto agasalhando o precedente de Araçatuba, quanto dando inédita decisão no Brasil, entendo por dies a quo da contagem dos prazos a edição das Instruções Normativas do INCRA. E o fez nestas palavras:
"Dessarte, duas indagações se apresentam. A primeira, se a concessão do prazo deve ser estendida às hipóteses de autos judiciais ou apenas aplicáveis àquela adrede alinhavadas; a segunda, se a contagem do prazo deve iniciar a partir da promulgação do Decreto, em 31.10.02, ou a partir da edição da Portaria, em 17.11.03.
No que toca à primeira, a analogia recomenda que seja estendida também às hipóteses de autos judiciais a concessão do prazo para a implementação do novo sistema de identificação. Os casos tratados em autos judiciais, tais como retificações de área e usucapião guardam a mesma natureza e possuem similitude de efeitos em relação às transferências, desmembramentos, parcelamentos ou remembramentos. (destaque nosso)
Em relação à segunda, o bom senso impõe que se considere o início da contagem do prazo a partir da edição da Portaria expedida pelo INCRA. É que malgrado tenha sido concedido pelo Decreto o prazo para regulamentação, faltava ainda a fixação da precisão posicional pelo INCRA. Logo, não havia como dar cumprimento à norma no prazo estabelecido se os proprietários sequer sabiam a precisão posicional a ser adotada.
A boa hermenêutica força o intérprete a conciliar as disposições normativas de maneira a que não se negue vigência a nenhuma delas ou que se conduza a resultados notoriamente inexeqüíveis. (destaque nosso)
Assim, se Lei nº 10.267/01 institui o novo sistema de identificação e o Decreto nº 4.449/2002 concedeu prazo para sua implementação, somente se pode observar os prazos quando os proprietários passaram a ter condições efetivas de efetuar o georreferenciamento, ou seja, a partir da fixação da precisão posicional que ainda pendia de definição".
O precedente de Araraquara vem sendo utilizado por alguns registradores, porque está de acordo com o espírito da norma e mais apropriado a sua vigência no tempo.
Conquanto não resolva as diversas questões de ordem prática surgidas com a aplicação do georreferenciamento – e nem poderia –, reforçou a idéia de tratamento uniforme das hipóteses de transferência, desmembramento, parcelamento, remembramento e autos judiciais que envolvam imóveis rurais e deu um prazo de "respiro" para que as autoridades competentes regulamentem de maneira mais profícua a matéria.
Este precedente, assim como os demais, aliados ao prévio Encontro de Araraquara, ocorrido em julho de 2004, fez surgir um movimento totalmente inovador na classe registrária: debate jurídico franco, intenso e busca de auto-regulação da atividade.