Resumo
Na tentativa de controlar o crescimento da criminalidade, o legislativo direciona sua atuação em um único e simplista sentido: o da multiplicação de leis em matéria criminal. Tem sido esta, pois, a resposta estatal para o incremento das práticas delituosas. O presente trabalho, que foi aprovado e apresentado no XIII Encontro do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito, visa trazer a lume algumas considerações sobre esse fenômeno (denominado de "inflação legislativa") e sua influência na criminalidade. O objetivo da pesquisa não é esgotar o assunto, mas sim traçar alguns parâmetros que estão relacionados com o poder do Estado de punir sob ameaça de pena certos comportamentos e a influência deste fato na criminalidade. Em outras palavras, o trabalho está delimitado por duas balizas centrais: penalização de comportamentos e repercussão na criminalidade. Esse fenômeno, que pretende fazer com que a lei criminal assuma sozinha a missão de combater o crime, desvirtua e desconfigura o Direito Penal; todavia, a sociedade e o legislativo, no desejo de solucionar o problema da criminalidade, não perquirem e não avaliam as conseqüências de tal medida. Percebe-se, de pronto, que o tema em questão é amplo e complexo, desse modo, direcionamos nossos holofotes, principalmente, para: as limitações da tipificação penal; o agravamento das penas; a função da pena; os resultados desses fenômenos (inflação legislativa e severidade das penas) no combate à criminalidade; e a doutrina da "Lei e Ordem", que ganhou corpo e força na América do Norte. Desta forma, nos valemos de alguns estudos teóricos e empíricos para embasar e sustentar nossas argumentações.
1 Introdução
A resposta da indagação que forma o título do presente trabalho, sem dúvida alguma, poderia resultar em um imenso e complexo estudo. Isto porque a criminalidade envolve inúmeros fatores: político, social, econômico, jurídico etc.
A importância deste estudo se deve à "inflação legislativa". Isto é, com a crescente violência e a gritante falta de perspectiva por parte da sociedade, os políticos elegeram como solução a tipificação penal de certas condutas (e o aumento de determinadas penas), tudo na tentativa de conter os altos índices de ocorrência de delitos.
É nesse campo árido que iremos desenvolver nosso trabalho, utilizando como metodologia principal o método dedutivo, tendo como procedimento o bibliográfico e, ainda, o sistemático de organização lógica de idéias, asseverando, desde logo, que nos valemos de estudos empíricos apresentados em outros trabalhos, vez que não é esse nosso campo de atuação.
2 O Direito Penal como garantidor da convivência pacífica na sociedade
Esse tópico está relacionado com a finalidade do Direito Penal. Claus Roxin, resume bem o objetivo desse ramo do direito: "garantir os pressupostos de uma convivência pacífica, livre e igualitária entre os homens..." [1]
É cediço que nenhuma sociedade esta livre da ocorrência de delitos, como bem afirmará Durkheim. Assim, o delito é um fenômeno social normal, revestido de um caráter peculiar, pois seus efeitos são mais danosos à sociedade do que qualquer outro fato social. Quando afirmamos que o crime é um fenômeno social, deve-se entender em sentido amplo, pois, atualmente, entende-se que "o crime é um fenômeno biopsicosocial, produto de vários fatores, não de causa única." [2]
Desta forma, é vital para todas as comunidades que formulem e organizem um ramo dentro do ordenamento jurídico capaz de restabelecer e assegurar a paz social, reprimindo e evitando ilícitos considerados graves.
O penalista Heleno Cláudio Fragoso, ao comentar esse tópico, positivou que "a função básica do Direito Penal é a de defesa social." [3] Portanto, o direito penal visa resguardar sob a sua égide bens socialmente relevantes, cumprindo seu papel de mantença da paz social.
3 Limites da tipificação penal
Essa tese, que entende ser o Direito Penal assegurador da coexistência livre e pacífica dos cidadãos, deve ser compreendida com outros princípios e conceitos correlatos, que foram formulados ao longo dos anos. A idéia de um Direito Penal assegurador da paz social é nova, se considerarmos a história do Direito como um todo. Segundo Roxin, tal tese tem suas raízes na época do Iluminismo. [4]
Para garantir uma convivência pacífica, os habitantes de determinado território celebram um acordo, no qual delegam ao Estado as garantias de uma convivência harmoniosa (contratualismo). Quando essa convivência está ameaçada, os cidadãos permitem, aceitam, toleram e querem que o Estado aja no sentido de coibir e punir, para que não desgaste a harmonia social.
Mas, quando o Estado pode agir impondo penas, que implicam na limitação da liberdade do homem, ferindo a dignidade humana? A pena, sendo a sanção mais drástica e ameaçadora dos direitos fundamentais, deve ser usada apenas em situações especiais. Trabalhando de forma magnífica o tema em questão, Claus Roxin, de pronto, afirma que "os limites da faculdade estatal de punir só podem resultar da finalidade que tem o Direito Penal no âmbito do ordenamento estatal". [5]
Com efeito, o Direito Penal será "utilizado" somente quando os outros ramos do direito não forem eficazes no combate daquele fato social - subsidiariedade. Ou seja, "a finalidade do direito penal, de garantir a convivência pacífica na sociedade, está condicionada a um pressuposto limitador: a pena só pode ser cominada quando for impossível obter esse fim através de outras medidas menos gravosas. O direito penal é desnecessário quando se pode garantir segurança e a paz jurídica através do direito civil, de uma proibição de direito administrativo ou de medidas preventivas extra-jurídicas." [6]
O Princípio da Subsidiariedade está inserido em um princípio maior, que é o da Intervenção Mínima (visa, basicamente, impedir a definição arbitrária de crimes e a imposição injusta de penas), que abarca ainda o Princípio da Fragmentariedade. O Princípio da Fragmentariedade, a seu turno, sustenta que apenas as ações ou omissões mais graves endereçadas contra bens valiosos podem ser objeto de criminalização.
Note-se que, a fragmentariedade prega a intervenção do Direito Penal somente quando houver ofensas a bens fundamentais para subsistência do corpo social, já a subsidiariedade quando outros ramos não puderem atuar de maneira eficaz - os dois princípios tentam cumprir o objetivo da Intervenção Mínima.
Infere-se, com isso, que o Direito Penal não pode, e não deve, penalizar toda e qualquer conduta, mesmo que esta seja imoral ou aética, pois a sanção penal traz consigo graves ofensas aos direitos fundamentais conquistados após séculos de lutas, isto é, a pena deve ser aplicada em casos especiais, que realmente comprometam a paz social.
4 Inflação Legislativa [7]
Mesmo com esse suporte doutrinário, os legisladores acreditam, como a maioria dos cidadãos, que o Direito Penal deva atuar em diversas situações, pois é a solução para a violência criminal. Destarte, agravam suas penas e aumentam seu campo de incidência (inflação legislativa). Como bem advertiu Alberto Zacharias Toron:
É curioso perceber como no final do século, quando se acreditava no incremento do movimento despenalizador mediante a utilização de técnicas alternativas de controle social, cresce o anseio por penas mais elevadas e, de um modo geral, por uma atuação mais draconiana do sistema punitivo como um todo, com prisões provisórias decretadas amiúde, supressão da progressão do regime prisional etc. Afora isto, e por mais paradoxal que possa parecer, é exatamente sob a égide do sistema democrático que está se aumentando o espectro de incidência do Direito Penal. [8]
A realidade brasileira aponta no sentido contrário às teses doutrinárias modernas, isto é, há um "inchaço" do sistema jurídico penal. A partir da segunda década do século XIX, o número das normas penais incriminadoras cresceu desmedidamente, no mundo todo. Uma das primeiras constatações de tal fenômeno foi feita por Carl Joseph Anton Mittermeier, já em 1819, afirmando que um dos erros fundamentais do direito penal era a excessiva extensão da legislação, assim como a convicção dos legisladores de que a coação penal é o único meio de combater qualquer força hostil que se ponha em contradição com o ordenamento jurídico. Além disso, sustentou que a criação de um número avultado de crimes era uma das formas de manifestação da decadência do Direito Penal, assim como de todo o ordenamento jurídico. [9]
Com o passar do tempo, os estudiosos e pensadores foram percebendo de forma mais clara que a edição de novas leis penais, mais abrangentes ou mais severas, não era capaz de resolver o problema da criminalidade crescente. Concluíram que essa concepção dada ao Direito Penal é falsa, porque o toma como uma espécie de panacéia que logo se revela inútil diante do incremento desconcertante das cifras da estatística criminal. [10]
Precisamos, então, discorrer sobre a impotência do Direito Penal, atuando sozinho, em impedir a prática de infrações. Desta forma, é necessário analisar, para o lídimo deslinde do trabalho, as funções das normas como impositoras de penas. Iremos trazer à baila a teoria da pena, que na verdade são três: a teoria absoluta, as teorias relativas e a teoria da união.
Segundo a teoria absoluta, que teve entre seus maiores defensores Kant, a pena seria apenas uma conseqüência justa e necessária para o crime perpetrado - uma imposição imperativa. Baseava-se no simples fato da pena subsistir como uma conseqüência lógica contra aqueles que atentaram contra a lei, subsistindo sem qualquer outra necessidade e devia ser desprendida de qualquer outro fundamento; seria a vingança pura e simples, ou seja, poena absoluta ab effectu.
Observem que essa teoria "não explica ou justifica por que uma ação culpável qualquer deve ser submetida à pena. Roxin também observa que a idéia da retribuição compensadora só se faz plausível mediante um ato de fé, pois racionalmente não se compreende como se pode apagar o mal cometido, acrescentando-se um segundo mal, o sofrimento da pena." [11]
A teoria relativa traz em seu bojo a idéia de prevenção. Subdividia-se em duas espécies distintas, voltadas para: a prevenção especial e a prevenção geral.
A teoria da prevenção especial considera o fim da pena o afastamento do delinqüente na prática de futuros crimes, mediante sua correção e educação, como custódia. Seu principal representante foi Von Liszt. Para a teoria da prevenção geral, o fim da pena consiste na intimidação dos cidadãos, para que se afastem da prática de crimes. Seu principal representante foi Feurbach, que considera a pena como uma coação psicológica sobre todas as pessoas.
Fragoso critica com brilhantismo essas duas teorias relativas, vejamos:
Tanto a teoria da prevenção geral como a da prevenção especial deixam sem explicar os critérios mediante os quais deve o Estado recorrer à pena criminal. Como ocorre com as teorias absolutas, aqui também se pressupõe a necessidade da pena. A prevenção geral não estabelece os limites da reação punitiva e tende a criar um direito penal do terror. Totalmente inadmissível é, de resto, que a pena seja imposta com critérios alheios ao autor do crime, para através da punição produzir efeito sobre outras pessoas. Isso significaria, como observa Kant, misturar o homem com o direito das coisas.
A prevenção especial também não pode, por si só, constituir fundamento para a pena. Há delinqüentes que não carecem de ressocialização alguma, em relação aos quais é possível fazer um seguro prognóstico de não reincidência. A prevenção especial não permite estabelecer a pena a ser aplicada e conduz à idéia de pena indeterminada, a ser aplicada como espécie de tratamento, que deve cessar com a cura do enfermo. A experiência com a cura indeterminada é negativa. Por outro lado, parece ilusório pretender alcançar a recuperação social do delinqüente através das penas privativas de liberdade. [12]
A teoria relativa, levada ao seu limite, poderia conduzir ao terrorismo penal, onde o ser humano, mais especificamente o condenado, é utilizado como um meio para se conseguir um fim, ou seja, é a coisificação e a manipulação do homem, uma ofensa gritante à dignidade humana.
Já a teoria da união, que poderia ser chamada de mista, assume uma posição intermediária entre as duas teorias precedentes. Em suma, parte da idéia da retribuição como base, acrescentando os fins preventivos e gerais. Retribuição e prevenção convivem na mesma realidade, que se coordenam mutuamente, e não podem subordinar-se uma à outra. Na teoria da união, há funções distintas: no momento da ameaça da pena (legislador) é decisiva a prevenção geral: no momento da execução da pena, prevalece a prevenção especial, porque então se pretende a reeducação e socialização do delinqüente.
Percebe-se que a norma penal pode assumir a feição de punição e de prevenção. [13] Tendo sempre em mente que a finalidade maior do Direito Penal é assegurar a paz social, a prevenção e punição nada mais são do que derivações ou materializações utilizadas pelo Estado para fazer cumprir seu desiderato.
Ora, se a paz social é o fim primeiro do Direito Penal, sendo este acionado em ultima ratio, como alcançá-la sem uma ameaça abstrata da pena? A afirmação de que o Direito é eficaz em virtude de sua força coercitiva é velha e rasa, porém cabe perfeitamente neste ponto.
Entretanto, não podemos deduzir que para a paz ser alcançada devemos ameaçar penalmente todas as condutas ilícitas e imorais. Notem que o Direito Penal pode atuar como um instrumento preventivo, mas, não se deve supervalorizar sua aptidão nesta área. O Direito Penal não é a solução para todos os males sociais. Como bem frisou Roxin, "as penas não são de nenhuma maneira um meio adequado para lutar contra a criminalidade". [14]
Segundo o referido autor, a criminalidade se incrementa apesar de todas as penas anteriores, sendo a cota de reincidência muito alta, o que demonstra a relativa ineficácia da pena. Assim, a criminalidade sempre existirá em todas as sociedades, mas pode ser amenizada com combate, principalmente, a miséria econômica e a desestruturação familiar. [15]
O Brasil possui um mar de normas penais, no entanto os índices de violência crescem e assustam toda sociedade. Diante da desenfreada escalada da violência, a sociedade está acuada, exigindo e forçando ao Estado a utilizar o Direito como se fosse a única salvação, ou melhor, como se fosse o melhor remédio para esses males. Percebemos, então, que "existe hoje no Brasil a falsa crença de que somente se reduz a criminalidade com definição de novos tipos penais, o agravamento das penas, a supressão de garantias do réu durante o processo e a acentuação da severidade da execução das sanções. " [16]
A sociedade, desinformada, clama por elaboração de lei penal, tão logo ocorra um fato delituoso de grande repercussão. Trata-se da legislação reativa, reagente, ou de pânico. Podemos citar o exemplo o seqüestro do importante empresário (1990), que foi a mola propulsora da famosa Lei dos Crimes Hediondos [17] (8.072/90). Outros exemplos são fáceis de lembrar: o crime de homicídio qualificado foi incluído nesse rol, em função da morte de uma jovem atriz global; após o caso da "favela naval" veio a Lei Antitortura (9.455/97); o Estatuto do Desarmamento (Lei n.º 10.826/03), que foi aprovada pelo Congresso Nacional logo após uma passeata, com a presença de autoridades e artistas, veiculada na "novela das oito".
O delito é "fenômeno social complexo que não se deixa vencer totalmente por armas exclusivamente jurídico-penal." [18] Por isso é preciso um esforço conjunto dos mais variados ramos do Estado. Diante disso, é importante mencionarmos a obra de Molinae Flávio Gomes [19], que apresenta três prevenções: primária, secundária e terciária. A primeira se consubstancia, pragmaticamente falando, nas causas originárias do delito, cuidando do delinqüente antes mesmo dele assumir tal papel, ou seja, de sujeito ativo do delito, antes que este venha a suplantar sua conduta ilícita. A segunda diz respeito à política legislativa penal, assim como a ação policial, política urbana e controle dos meios de comunicação. E a última se destina aos presos, com o objetivo de evitar a reincidência.
Para os autores é necessário dar um maior enfoque a teoria da prevenção social ou primária, pois essa atua nas causas originais que levam ao delinqüente praticar sua conduta, apontando meios e dando oportunidades, que não só a criminalidade, maior empregador nos meios periféricos. Assim, a educação e socialização, bem-estar social e qualidade de vida são âmbitos essenciais para uma prevenção primária, que opera sempre a longo e médio prazos e se dirige a todos os cidadãos.
Se uma prevenção plenamente eficaz foge do âmbito da lei penal, como explicar as grandes conquistas do sistema "Janelas Quebradas" e "Tolerância Zero" implantados nos Estados Unidos, onde o papel da lei assume grande importância, a ponto de punir severamente os mendigos por pedirem dinheiro em estações de metrô?
Sucintamente, esses sistemas são apoiados na idéia de "Lei e Ordem", que prega uma punição mais severa, além de uma forte presença dos policiais nas ruas e uma maior abrangência do Direito Penal. O programa "Tolerância Zero" é uma derivação da teoria "Janelas Quebradas" criada em 1982 pelo cientista político James Q. Wilson e o psicólogo criminologista George Kelling, ambos americanos. Esses estudiosos estabeleceram, pela primeira vez, uma relação de causalidade entre desordem e criminalidade. Para explicar a teoria os autores usaram a imagem de janelas quebradas, figurando como a desordem, que cede, aos poucos, lugar para a criminalidade. [20]
Este estudo, conhecido originalmente como Broken Windows, serviu de fundamento da moderna política criminal americana - o programa de Nova Iorque denominado "Tolerância Zero". Os índices de criminalidade em Nova Iorque na década de 90 despencaram, e a maioria dos estudiosos elegeu a política implantada como a grande responsável. Todavia, inúmeras críticas foram formuladas acerca da "Lei e Ordem". O mais importante argumento dos críticos é que tal política criminal oprime apenas os pobres, os necessitados e as minorias, pois se preocupam com mendicância agressiva, lavagens de pára-brisas não solicitadas, embriaguez pública, quando a violência ganha novas feições nos grandes centros urbanos. Acaso estariam procurando bodes expiatórios para a violência?
Outra crítica é a não observância do Direito Penal Mínimo (engloba, por conseqüência, o Princípio da Subsidiariedade, entre outros), pois se começa a punir muitas condutas que não são merecedoras de penas, mas sim de outras sanções do direito. Ademais, a ocorrência de ofensa aos Direitos Humanos começa a acentuar, pois pessoas que praticam um furto de duas laranjas, serão punidas com penas desproporcionais.
Contudo, discursam os adeptos da "Lei e Ordem", que sob esta estratégia, cria-se um círculo vicioso que retroalimenta a criminalidade violenta: não se combate a desordem e os pequenos delitos porque se deve priorizar o combate à criminalidade violenta. Porém, a criminalidade violenta é justamente resultado da falta de combate à desordem e aos pequenos delitos, segundo os estudiosos da política criminal norte americana.
Essa política criminal parte de um conhecimento profano que insiste em sustentar que o endurecimento das penas diminui a criminalidade. [21] Esse modelo professa, com efeito, uma imagem intelectualizada do infrator, quase algébrica, ingênua, ao supor que a opção delitiva é produto de um balanço entre custos e benefício; de uma fria e refletida decisão racional na qual o infrator pondera a gravidade da vantagens que este lhe pode proporcionar. O infrator valora as conseqüências mais próximas e imediatas de sua conduta - risco de ser preso - que as finais e mediatas - gravidade da pena cominada. [22]
Dissertando sobre o assunto, Damásio fez a seguinte observação:
Sob outro aspecto, esse movimento faz com que o Direito Penal o Direto Processual Penal percam a forma. Quanto ao estatuto penal, os tipos incrimadores passam a ser descritos com a inclusão de normas elásticas e genéricas, enfraquecendo o princípio da legalidade e da tipicidade.
É o império do "Movimento de Lei e Ordem", responsável pela funcionalização do Direito Penal da perda da forma deste e do Direito Processual Penal. [23]
Devemos entender o sistema adotado na América do Norte em quatro partes distintas: mais leis penais, penas mais severas, menos impunidade e policiamento em grande número em ruas.
Entendemos que o que deve ser repelido são as duas primeiras premissas, pois essas sim são grandes perigos e não resultam em queda de violência. Contudo, a diminuição da impunidade, ressocializando mais criminosos (não necessariamente impondo penas restritivas de liberdade), e uma polícia preparada atuando na comunidade, é de grande valia para o controle da criminalidade.
Tratando-se de Brasil, fica claro que a política criminal denominada "Tolerância Zero" poderia vir a ser um fracasso, pois a realidade é outra. Primeiramente, o Estado não teria condições econômicas para suportar essa política, e, em segundo lugar, os policiais militares brasileiros iriam confundir "Tolerância Zero" com "Tribunal de Exceção", pois aplicariam, com mais freqüência do que hoje a pena de morte a um jovem que furtou um determinado bem, sob a "suposta" proteção da "Lei e Ordem". [24]
Agora, um policiamento extremamente treinado, que conheça e respeite a realidade da comunidade, tenha consciência dos direitos humanos, receba salários dignos, é sem dúvida uma grande medida preventiva, uma vez que inibi a atuação dos possíveis delinqüentes. Roxin dissertou sobre o assunto:
Contrariamente à suposição de nosso legislador, a dureza da ameaça penal quase não tem efeito de intimidação; porque a regra é que o autor na realidade só perpetra se ato quando pensa que não será detido. Então, a ameaça penal pode ser indiferente para ele. Mas quando o risco de ser descoberto se eleva, o potencial delinqüente abandona o delito em seu próprio interesse...a polícia faz falta na rua e não nos gabinetes públicos. O ataque a pessoas em plena rua e a destruição de instituições públicas por pleno vandalismo se evita mediante uma suficiente presença policial. [25]
A teoria "Janela Quebrada" deveria servir como projeto político de urbanística, pois hoje há vários estudos que comprovam a influência do ambiente na criminalidade [26].
Merece ser sopesado o "império da impunidade". Não estamos falando que qualquer crime deva ser punido com pena de prisão, mas aquele agente que pratica um crime que agride a paz social, merece ser punido, seja com pena de multa, seja com pena restritiva de direito. Mesmo que em se tratando de crime de violência, a exemplo do homicídio, a solução, em termos de defesa social, não é, sempre, a pena restritiva de liberdade do agente, senão quando ela se apresente como a medida imprescindível. Tanto quanto possível, devem-se aplicar as penas restritivas de direito, como forma de punição sócio-educativa.
Frise-se, mais uma vez, que o "inchaço legislativo" que tenta inibir e diminuir a criminalidade não surte o efeito desejado. Realizando um estudo superficial, chegamos ao seguinte resultado: de 1990 a 2001, foram tipificadas e modificadas mais de 330 condutas, contando todas que receberam uma sanção de caráter penal (não necessariamente pena de prisão), mais aquelas que tiveram suas penas agravadas e excluindo as condutas tipificadas anteriormente a data inicial da contagem (1990).
Todavia, a violência aumentou drasticamente. Segundo dados do Ministério da Saúde (Datasus/SIM) o número de mortes violentas aumentou de 70.212 em 1980 para 117.603 em 1998. Ademais, a taxa de homicídio por 100 mil habitantes aumentou de 11,7 em 1980 para 25,90 em 1998. [27] Os dados mais recentes também demonstram isso. De acordo com o IBGE e o Datasus em 2000 o número de homicídio no Brasil por cada 100 mil habitantes foi de 27.
Não estamos afirmando que não deva criminalizar certas condutas. Há casos em que é imprescindível a atuação do Direito Penal, mas essa não é a solução de todos os problemas da violência. É verdade que novos fatos clamam tipificação, em virtude das constantes e significativas transformações sociais, econômicas e tecnológicas, ensejando o surgimento de novos bens jurídicos que demandam a proteção penal. Mas, ao mesmo tempo, o legislador continua criminalizando condutas que carecem de relevância e que o ordenamento jurídico poderia enfrentar com outras sanções, caracterizando, claramente, uma crise do princípio da intervenção mínima.
Uma política criminal que não faça distinção entre criminalidade de alto reprovação e de baixa reprovação, taxando a severidade e amplitude das leis como uma medida eficaz, não pode lograr êxito. Não podemos aceitar que uma pessoa fique um ano e meio presa, por ter furtado três canários belgas. [28] Isto, não reprime e nem previne o crime, apenas revolta.
A aplicação irrestrita da pena de prisão e seu agravamento, como vem acontecendo no Brasil, não reduzem a criminalidade, como bem observou Damásio E. de Jesus. Prova disso, continua o autor, é que não conseguimos diminuí-la após o advento da Lei dos Crimes Hediondos e da Lei 8.930/94, que inclui algumas formas de homicídio no rol da Lei 8.072/90. Ao contrário, na Grande São Paulo, só no primeiro semestre de 1995 os crimes de homicídio cresceram 21% em relação ao anterior. [29]
Roberto Carvalho Veloso, afirma que "está comprovado estatisticamente que a Lei dos Crimes Hediondos não diminuiu o número de delitos, basta ver o resultado do Censo Penitenciário de 1995, quando havia 148.760 presos, e o censo de 2002 registrou 235.085 presos. Ao contrário, tudo indica que uma das causas para as constantes rebeliões seja a desesperança dos condenados que não têm direito à progressão do regime prisional, obrigados que são a cumprir pena em regime integralmente fechado." [30]
O jurista Alberto Silva Franco, com bastante propriedade assim descreveu a mencionada lei quando esta chegou como solução no início da década passada:
Na linha desse entendimento, o legislador constituinte, sob o impacto dos meios de comunicação de massa, dramatizou a realidade, esquecido de que a violência é cíclica e de que, enquanto o mundo for mundo, sempre haverá, a sacudi-lo, ondas maiores e menores, de violência. Assim, em nome do movimento da "Lei e da Ordem", além de criar uma categoria nova de delitos (os crimes hediondos), equiparou-a a outras espécies criminosas(tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e terrorismo), eliminou garantia processual de alta valia (fiança), vedou causas extintivas de punibilidade expressivas (anistia e graça) e, afinal, atribuiu ao legislador ordinário a incumbência de formular tipos e cominar penas, numa luta contra o crime, sem descanso, mas fadada ao insucesso, por seu irracionalismo, passionalidade e unilateralidade. [31]
Merece ser transcrito um trecho da obra de Assis de Toledo, que corrobora todo nosso posicionamento até aqui lançado:
Não percebem os que pretendem combater o crime com a só edição de leis que desconsideram o fenômeno criminal como efeito de muitas causas e penetram em um círculo vicioso invencível, no qual a própria lei penal passa, freqüentemente, a operar ou como importante fator criminógeno, ou como intolerável meio de opressão. [32]
Muitos autores apontam a solução para a educação [33]. Educação no sentido de formar o cidadão cônscio das realidades sociais, embasado de valores éticos que lhe propiciarão caminhar dentro dos parâmetros normativos concebidos pela sociedade, não só na formação profissional. O ser racional na essência da palavra.
As palavras de Walter Nunes se enquadram nessa linha de pensamento:
A avaliação de uma sociedade passa, necessariamente, pela avaliação de suas escolas, pois se a educação funciona, as pessoas possuem senso de cidadania, de civilidade, não são, apenas, desculpem a expressão, adestradas para ler e escrever. A esse respeito, deve-se mencionar passagem imortalizada por Víctor Hugo, em sua obra Os Miseráveis, no asseverar que: Construir uma escola é destruir uma prisão. [34]
Devemos lembrar que, segundo o censo presidiário [35] do Estado de São Paulo de 2002, realizado pela FUNAP (Fundação Prof. Dr. Manoel Pedro Pimentel) e a Secretaria de Administração Penitenciária do Estado, a escolaridade de 75,1% dos presos era fundamental incompleto, e somente 0,4% possuía nível superior completo, o que sacramenta a importância da educação.