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A terceirização e a proteção jurídica do trabalhador.

A necessidade de um critério para definição da licitude das relações triangulares. A responsabilidade solidária da tomadora e da prestadora de serviço

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08/06/2005 às 00:00
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5 ENTES ESTATAIS E TERCEIRIZAÇÃO

Por força do art. 37, II e § 2º, da Constituição Federal, é vedado o estabelecimento de vínculo empregatício com o ente público tomador de serviços, ainda que na realidade dos fatos muitas vezes seja possível constatar a existência de típica relação de emprego entre o trabalhador "terceirizado" e o tomador de serviços.

A Administração Pública é o exemplo mais recorrente de abusos quando se fala em terceirização. Terceirizam serviços públicos intrinsecamente ligados à sua atividade-fim, de forma escancarada e indiscriminada, como a coleta do lixo urbano. Desenvolvem a relação com o "terceirizado" com acentuado poder de comando versus subordinação jurídica, renovando infinitamente aquele mesmo funcionário naquele mesmo posto de serviço "porque trabalha tão bem há tantos anos". Basta alterar a prestadora de serviços de tempos em tempos, mediante licitação, mas com a indicação do profissional para determinadas atividades.

Portanto, não-eventualidade, subordinação jurídica, pessoalidade e onerosidade não resultam em reconhecimento de vínculo empregatício com a Administração Pública porque não houve prévia aprovação em concurso público. É que a Constituição Federal de 1988 moralizou e democratizou o acesso ao serviço público, dando uma lição de ética que deve prevalecer sobre o direito fundamental ao reconhecimento da relação de emprego estampado no inciso I de seu art. 7º. É uma questão de sopesar valores, quando entram em aparente conflito duas regras constitucionais.

A responsabilidade da Administração Pública na terceirização é subsidiária, como os demais tomadores de serviços, ainda que tenha tentado esquivar-se por meio do § 1º do art. 71 da Lei 8.666/93. A Resolução 96/2000 do TST alterou o item IV do Enunciado 331 para fazer constar expressamente que a responsabilidade subsidiária estende-se "inclusive quanto aos órgãos da administração direta, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista". Deve ser ressaltado que o § 2º do referido art. 71 prevê a responsabilidade solidária da Administração Pública pelos encargos previdenciários resultantes da execução dos contratos por ela firmados [13].

Em casos de fraude à terceirização, como o desvirtuamento do instituto no intuito de esquivar-se de deveres próprios da Administração Pública, deve ser cogitada a responsabilidade solidária, principalmente diante do previsto no § 6º do art. 37, que adota a teoria do risco administrativo com a responsabilidade civil objetiva. Diz o preceito constitucional:

Art. 37, § 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.


6 CONCLUSÕES

6.1 Necessidade imperiosa de regulamentar o fenômeno – critério de licitude e responsabilidade das empresas

Por todo o exposto, conclui-se que há necessidade emergencial de um tratamento legal à terceirização em nosso ordenamento. As relações jurídicas estabelecidas por meio da terceirização já estão disseminadas em nossa sociedade e presentes em nosso quotidiano. Nesse setor, o direito não tem acompanhado a dinâmica dos fatos. E a situação fica ainda pior quando o Tribunal Superior do Trabalho tenta legislar sobre a matéria, baixando Enunciados descompassados. Primeiro (Enunciado 256) restringe ao máximo as hipóteses cabíveis, para depois escancarar as porteiras da terceirização, com o parâmetro indefinido da "atividade-meio" (Enunciado 331).

É preciso uma legislação que defina, de uma vez por todas, os limites para a prática da terceirização regular, esclarecendo quais as atividades empresariais passíveis de serem terceirizadas ou a forma pela qual deverão desenvolver-se tais relações. Além disso, urge a previsão expressa de responsabilidade solidária das empresas participantes da terceirização, para afastar o obstáculo da responsabilidade subsidiária que vem protelando a efetividade do processo de execução trabalhista. E há muito mais amparo legal para a condenação solidária das empresas do que para a subsidiária.

6.2 Uma reflexão final: quem é o terceiro?

Para encerrar esta análise da terceirização, cabe uma provocação: quem é o terceiro? Onde está o tertius? [14]

Em um primeiro momento, entendendo a terceirização como uma estratégia de administração de empresas, parece que a resposta estaria na empresa prestadora de serviços, um terceiro a quem a tomadora contrata e delega parte de suas atividades.

Do ponto de vista do contrato de trabalho, o tomador de serviços é o terceiro, estranho à relação de emprego estabelecida entre o empregado terceirizado e a empresa prestadora de serviços, sua empregadora.

Mas, considerando a realidade da terceirização em nosso país, entendemos que o terceiro é o trabalhador. O que tem merecido maior atenção nessas relações triangulares é o contrato interempresarial, de natureza civil, sendo a força de trabalho tratada como simples mercadoria. Na prática, a terceirização tem promovido a precarização do trabalho humano. Todos nós conhecemos as condições degradantes a que são submetidos os empregados terceirizados, que acabam, na prática, obedecendo a duplo poder de comando e ficam sujeitos a uma instabilidade de emprego ainda maior – como se fosse possível – do que aquela enfrentada pelos empregados com relação de emprego bilateral clássica.

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Na terceirização o trabalhador é colocado em segundo plano, um terceiro sem importância, mero instrumento ou modo pelo qual a empresa prestadora de serviços se desincumbe de sua prestação obrigacional para com a empresa tomadora de serviços. Contudo, se a terceirização é uma forma inexorável de organização dos meios de produção, deve-se ter presente que, na omissão do legislador, o julgador deve interpretar as relações triangulares de trabalho conforme aos direitos fundamentais sociais e ao valor social do trabalho humano, considerado pela Constituição Federal como um dos pilares de sustentação do Estado Democrático de Direito. Nesse caminho, parece ser possível assegurar uma proteção jurídica mínima à "pessoa humana" [15] do trabalhador, cuja dignidade constitui o fundamento do direito do trabalho.


Notas

1 DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 1ª ed. São Paulo: LTr, 2002, pág. 417.

2 CAMINO, Carmen. Direito individual do trabalho. 4ª ed. Porto Alegre: Síntese, 2003, págs. 235-6.

3 CATHARINO, José Martins. Neoliberalismo e Seqüela: privatização, desregulação, flexibilização, terceirização. São Paulo: LTr, 1997, pág. 72.

4 Obra de referência do tópico: MARTINS, Sergio Pinto. A terceirização e o direito do trabalho. 6ª ed. São Paulo: Atlas, 2003, págs. 29-37.

5"Toute opération à but lucratif de fourniture de main-d"oeuvre qui a pour effet de causer un préjudice au salarié qu''elle concerne ou d''éluder l''application des dispositions de la loi, de règlement ou de convention ou accord collectif de travail, ou "marchandage", est interdite" (Code du Travail – Article L 125-1).

6 Decreto-lei 200/67: Art. 10. A execução das atividades da Administração Federal deverá ser amplamente descentralizada. § 7º Para melhor desincumbir-se das tarefas de planejamento, coordenação, supervisão e contrôle e com o objetivo de impedir o crescimento desmesurado da máquina administrativa, a Administração procurará desobrigar-se da realização material de tarefas executivas, recorrendo, sempre que possível, à execução indireta, mediante contrato, desde que exista, na área, iniciativa privada suficientemente desenvolvida e capacitada a desempenhar os encargos de execução.

Lei 5.645/70: Art. 3º – Parágrafo único. As atividades relacionadas com transporte, conservação, custódia, operação de elevadores, limpeza e outras assemelhadas serão, de preferência, objeto de execução indireta, mediante contrato, de acôrdo com o artigo 10, § 7º, do Decreto-lei número 200, de 25 de fevereiro de 1967.

7 Ob. cit., págs. 243-4.

8Ob. cit., págs. 76-82.

9 Ob. cit., págs. 300-2.

10 Ob. cit., pág. 236.

11 VILHENA, Paulo Emílio Ribeiro de. Recursos trabalhistas e outros estudos de direito e de processo do trabalho. São Paulo: LTr, 2001, pág. 200.

12 SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Trabalho descentralizado. A terceirização sob uma perspectiva humanista. www.jusvi.com.br

13 Art. 71. O contratado é responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato. § 1º A inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis. (Redação dada pela Lei nº 9.032, de 28.4.95) § 2º A Administração Pública responde solidariamente com o contratado pelos encargos previdenciários resultantes da execução do contrato, nos termos do art. 31 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991. (Redação dada pela Lei nº 9.032, de 28.4.95)

14 como indaga Arion Sayão Romita in A Terceirização e o Direito do Trabalho, Revista LTr, São Paulo, LTr, mar./92, pág. 273.

15 Art. 1º, III, da Constituição Federal.

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Sobre o autor
Fernando Schnell

Servidor público federal do Tribunal Regional do Trabalho da 4ªRegião de Porto Alegre,Assistente administrativo no Gabinete do Juiz do Trabalho José Felipe Ledur

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SCHNELL, Fernando. A terceirização e a proteção jurídica do trabalhador.: A necessidade de um critério para definição da licitude das relações triangulares. A responsabilidade solidária da tomadora e da prestadora de serviço. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 703, 8 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6855. Acesso em: 29 mar. 2024.

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