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Deveres gerais de conduta nas obrigações civis

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16/06/2005 às 00:00

Resumo:


  • O dever de cooperação é reconhecido como um dos deveres gerais de conduta nas obrigações, substituindo a tradicional visão de antagonismo entre credor e devedor por uma relação de cooperação para a realização do fim obrigacional.

  • A boa-fé objetiva é um dever de conduta que se impõe tanto ao devedor quanto ao credor, orientando comportamentos pré e pós-contratuais, e inclui o dever de não agir contra o ato próprio, ou seja, não contradizer a própria conduta anterior.

  • O princípio da função social das obrigações exige que os interesses individuais sejam exercidos em consonância com os interesses sociais, com a justiça social prevalecendo sobre os interesses puramente individuais e privados.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Há deveres que excedem do próprio e estrito dever de prestação, especialmente nas obrigações negociais, mas que são com ele necessariamente anexos, unidos ou correlacionados.

SUMÁRIO: 1. DEVERES ANEXOS À PRESTAÇÃO E DEVERES GERAIS DE CONDUTA; 2. DEVER DE BOA-FÉ OBJETIVA NAS OBRIGAÇÕES; 2.1. Deveres pré e pós-contratuais; 2.2. Dever de não agir contra o ato próprio; 3. DEVER DE REALIZAÇÃO DA FUNÇÃO SOCIAL DAS OBRIGAÇÕES; 4. DEVER DE EQUIVALÊNCIA MATERIAL DE DIREITOS E DEVERES; 5. DEVER DE EQUIDADE; 6. DEVER DE INFORMAR; 6.1. Dever de informar e efeito jurídico da publicidade; 6.2. Dever de informar e garantia de cognoscibilidade; 7. VIOLAÇÃO POSITIVA DA OBRIGAÇÃO.


1. DEVERES ANEXOS À PRESTAÇÃO E DEVERES GERAIS DE CONDUTA

Há deveres que excedem do próprio e estrito dever de prestação, especialmente nas obrigações negociais, mas que são com ele necessariamente anexos, unidos ou correlacionados. Larenz denomina-os "deveres de conduta", que resultam do que as partes estipularam, ou do princípio da boa-fé, ou das circunstâncias, ou, finalmente, das exigências do tráfico, que podem afetar a conduta que de qualquer modo esteja em relação com a execução da obrigação. Para ele, esses deveres não podem ser demandados autonomamente, mas sua violação fundamenta obrigação de indenização ou, ante certas circunstâncias, a resolução do negócio jurídico. Esses deveres resultam naturalmente da relação jurídica obrigacional, mas se diferenciam por seu caráter secundário ou complementar do dever primário de adimplemento. Toda obrigação recebe seu caráter distintivo (sua configuração como contrato de locação, de compra e venda, de empreitada) precisamente através do dever primário de adimplemento, mas seu conteúdo total compreende ademais deveres de conduta mais ou menos amplos [1].

Sem embargo da excelência dessa construção doutrinária, que dilatou os efeitos das obrigações, no sentido da solidariedade social, e da cooperação, com positiva influência na doutrina brasileira, atente-se para duas importantes restrições que delas resultam: a) os deveres de conduta seriam imputáveis apenas ao devedor; b) seriam derivados do dever primário da prestação de adimplemento, neste sentido qualificando-se como secundários, ou complementares, ou acessórios, ou conexos, ou anexos, segundo variada terminologia adotada na doutrina.

A doutrina jurídica portuguesa opta pela denominação "deveres acessórios de conduta", conforme se vê em Antunes Varela e em Menezes Cordeiro. Antunes Varela distingue os deveres acessórios de conduta, assim entendidos os que estão dispersos no Código Civil e na legislação avulsa, a exemplo de não se vender coisa com vício, e o "dever geral de agir de boa-fé", que seria muito mais que um dever acessório. A generalidade dos deveres acessórios de conduta não daria lugar à exigibilidade da prestação ou do adimplemento, mas sua violação poderia obrigar à indenização dos danos causados à outra parte ou dar mesmo origem à resolução do contrato ou à sanção análoga [2].Para Menezes Cordeiro são deveres acessórios: a) os deveres in contrahendo, impostos aos contraentes durante as negociações que antecedem o contrato, revelados pelos deveres de proteção, de esclarecimento e de lealdade; b) deveres de eficácia protetora de terceiros; c) deveres post pactum finitum, que subsistiriam após a extinção da relação obrigacional; d) deveres que subsistem na nulidade [3]. Esses deveres remetem, de um modo ou de outro, ao princípio ou dever geral de boa-fé.

Todavia, a evolução do direito fez despontar deveres de conduta que se revestiram da dignidade de princípios normativos, de caráter constitucional e infraconstitucional, que deixaram de ter "caráter secundário, complementar, do autêntico dever de adimplemento", referido por Larenz, que tanta influência exerceu e exerce na civilística brasileira. Os deveres de conduta, convertidos em princípios normativos, não são simplesmente anexos ao dever de prestar adimplemento. A evolução do direito fê-los deveres gerais de conduta, que se impõem tanto ao devedor quanto ao credor e, em determinadas circunstâncias, a terceiros. Esses deveres não derivam da relação jurídica obrigacional, e muito menos do dever de adimplemento; estão acima de ambos, tanto como limites externos ou negativos, quanto como limites internos ou positivos. Derivam diretamente dos princípios normativos e irradiam-se sobre a relação jurídica obrigacional e seus efeitos, conformando e determinando, de modo cogente, assim o débito como o crédito. Os deveres gerais de conduta exigem interpretação de seus efeitos e alcances diretamente conjugada aos dos princípios de onde promanam. A compreensão de uns implicam a dos outros.

Os princípios são explícitos quando já positivados no ordenamento jurídico, como os referidos no art. 170 da Constituição, para a ordem econômica (justiça social, livre iniciativa, valorização do trabalho humano, função social da propriedade, defesa do consumidor etc.); são implícitos quando são extraídos dos valores consagrados no ordenamento jurídico mercê da interpretação sistemática de seus preceitos. No que respeita ao contrato em geral, o Código Civil de 2002 verteu em princípios normativos explícitos a boa-fé objetiva ou de conduta e a função social e, implicitamente, a equivalência material. Esses princípios engendram deveres gerais de conduta a qualquer obrigação e não apenas aos contratos, pois têm sede constitucional, como desdobramento dos princípios da solidariedade social e da justiça social (arts. 3º, I, e 170 da Constituição), que transformaram profundamente o paradigma individualista do Código Civil anterior.

Devemos esclarecer que é corrente no Brasil a terminologia alemã de cláusula geral, ora com significado semelhante ao de princípio, ora com significado mais restrito de valor ou conjunto de valores, cujo conteúdo se concretiza na aplicação da norma que a contém. Preferimos tratar as duas hipóteses como princípios, assumindo os riscos da generalização, como o faz Pontes de Miranda. Freqüentemente, ambas utilizam conceitos indeterminados, o que amplia a função de aplicação do direito e, consequentemente, a responsabilidade do aplicador. A preferência por princípios é crescente no direito atual, como se vê na denominação adotada na União Européia para o projeto de código unificado de direito contratual, da chamada Comissão Lando: "Princípios do Direito Contratual Europeu" [4]. Neste caso, os princípios terão natureza dispositiva ou supletiva, podendo as partes integrá-los ou não ao contrato. No direito brasileiro, os princípios têm caráter normativo cogente, com primazia sobre a convenção das partes e integração necessária ao ato ou negócio jurídico, salvo se se tratar de contrato internacional, cuja lei nacional aplicável pode ser escolhida.

No Código Civil, os princípios assumem primazia, com enunciações freqüentes no conteúdo de suas regras, às vezes ao lado de conceitos indeterminados. Os conceitos indeterminados ( e. g.: "desproporção manifesta" e "valor real da prestação", do art. 317) complementam e explicitam o conteúdo das regras jurídicas, mas não têm autonomia normativa. Já os princípios são espécies de normas jurídicas, podendo ter enunciações autônomas ou estarem contidos como expressões nas regras. No art. 187, as expressões "fim econômico e social", "boa-fé" e "bons costumes" são princípios, pois o ato jurídico que exceder os limites por eles impostos será considerado ilícito e, consequentemente, nulo. Relativamente ao contrato, o Código Civil faz menção expressa à "função social do contrato" (art. 421) e, nesse ponto, foi mais incisivo que o Código de Defesa do Consumidor. Consagrou-se, definitivamente e pela primeira vez na legislação civil brasileira, a boa-fé objetiva, exigível tanto na conclusão quanto na execução do contrato (art. 422). A referência feita ao princípio da probidade é abundante uma vez que se inclui no princípio da boa-fé, como abaixo se demonstrará. No que toca ao princípio da equivalência material o Código o incluiu, de modo indireto, nos dois importantes artigos que disciplinam o contrato de adesão (arts. 423 e 424), ao estabelecer a interpretação mais favorável ao aderente (interpretatio contra stipulatorem) e ao declarar nula a cláusula que implique renúncia antecipada do contratante aderente a direito resultante da natureza do negócio (cláusula geral aberta, a ser preenchida pela mediação concretizadora do aplicador ou intérprete, caso a caso).

O Código de Defesa do Consumidor é uma lei eminentemente principiológica, com vasta utilização não só dos princípios mas de conceitos indeterminados. De seus variados dispositivos podem ser colhidos os princípios da transparência, da harmonia das relações de consumo, da vulnerabilidade do consumidor, da boa-fé, da segurança do consumidor, da equivalência material entre consumidores e fornecedores, da informação, de modificação de prestações desproporcionais, de revisão por onerosidade excessiva, de acesso à justiça, da responsabilidade solidária dos fornecedores do produto ou do serviço, da reparação objetiva, da interpretação favorável ao consumidor, da equidade. Desses princípios defluem direitos gerais de conduta correspondentes, nas relações jurídicas de consumo.

Os deveres gerais de conduta, ainda que incidam diretamente nas relações obrigacionais, independentemente da manifestação de vontade dos participantes, necessitam de concreção de seu conteúdo, em cada relação, considerados o ambiente social e as dimensões do tempo e do espaço de sua observância ou aplicação. Essa é sua característica, razão porque são insuscetíveis ao processo tradicional de subsunção do fato à norma jurídica, porque esta determina a obrigatoriedade da incidência da norma de conduta (por exemplo, a boa-fé) sem dizer o que ela é ou sem defini-la. A situação concreta é que fornecerá ao intérprete os elementos de sua concretização. Utilizando-se uma metáfora, é uma moldura com tela em branco, para que o conteúdo (a pintura) seja necessariamente concretizado dentro dos limites e condições que objetivamente se apresentem. Não se confunde com sentimentos ou juízos de valor subjetivos do intérprete, porque o conteúdo concreto é determinável em sentido objetivo, até com uso de catálogo de opiniões e lugares comuns (topoi) consolidados na doutrina e na jurisprudência, em situações semelhantes ou equivalentes. O lugar e o tempo são determinantes, pois o intérprete deve levar em conta os valores sociais dominantes na época e no espaço da concretização do conteúdo do dever de conduta. Não deve surpreender que o mesmo texto legal, em que se insere o princípio tutelar do dever de conduta, sofra variações de sentido ao longo do tempo.


2. DEVER DE BOA-FÉ OBJETIVA NAS OBRIGAÇÕES

A boa-fé objetiva é dever de conduta dos indivíduos nas relações jurídicas obrigacionais, especialmente no contrato. Interessam as repercussões de certos comportamentos na confiança que as pessoas normalmente neles depositam. Confia-se no significado comum, usual, objetivo da conduta ou comportamento reconhecível no mundo social. A boa-fé objetiva importa conduta honesta, leal, correta. É a boa-fé de conduta. Para Menezes Cordeiro [5], a confiança exprime a situação em que uma pessoa adere, em termos de atividade ou de crença, a certas representações, passadas, presentes ou futuras, que tenha por efetivas. O princípio da confiança explicitaria o reconhecimento dessa situação e a sua tutela.

A boa-fé objetiva não é princípio dedutivo, não é argumentação dialética; é medida e diretiva para pesquisa da norma de decisão, da regra a aplicar no caso concreto, sem hipótese normativa pré-constituída [6], mas que será preenchida com a mediação concretizadora do intérprete-julgador. Cada relação obrigacional exige um juízo de valor extraído do ambiente social, considerados o momento e o lugar em que se realiza; mas esse juízo não é subjetivo, no sentido de se irradiar das convicções morais do intérprete. Como esclarece Larenz [7], deve ser tomado como módulo o pensamento de um intérprete justo e eqüitativo, isto é, "que a sentença há de ajustar-se à exigências geralmente vigentes da justiça, ao critério refletido na consciência do povo ou no setor social a que se vinculem os participantes (por exemplo, comerciantes, artesãos, agricultores)", desde que observados os valores de fidelidade e confiança.

O Código Civil estabelece, no art. 113, que "os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração". Essa regra é cogente, não podendo ser afastada pelas partes. Cada figurante (devedor ou credor) assume o dever próprio e em relação ao outro, de comportar-se com boa-fé, obrigatoriamente. Como se vê, vai além do simples dever anexo à prestação. Ao regular o abuso do direito, o art. 187 qualifica como ato ilícito, gerador de dever de indenizar, exercer o direito contrariamente à boa-fé. No art. 422 refere-se a ambos os contratantes do contrato comum civil ou mercantil, não podendo o princípio da boa-fé ser aplicado preferencialmente ao devedor, neste caso segundo a regra contida no art. 242 do Código Civil alemão. Nas relações de consumo, todavia, ainda que o inciso III do art. 4º do CDC cuide de aplicá-lo a consumidores e fornecedores, é a estes que ele se impõe, principalmente, em virtude da vulnerabilidade daqueles. Por exemplo, no que concerne à informação o princípio da boa-fé volta-se em grande medida ao dever de informar do fornecedor.

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Além dos tipos legais expressos de cláusulas abusivas o Código de Defesa do Consumidor fixou a boa-fé como cláusula geral de abertura, que permite ao aplicador ou intérprete o teste de compatibilidade das cláusulas ou condições gerais dos contratos de consumo. No inciso IV do art. 51 a boa-fé, contudo, a boa-fé está associada ou alternada com a eqüidade ("... com a boa-fé ou a eqüidade"), a merecer consideração, adiante.

Por seu turno, o art. 422 do Código Civil de 2002 associou ao princípio da boa-fé o que denominou de princípio da probidade ("... os princípios da probidade e boa-fé"). No direito público a probidade constitui princípio autônomo da Administração Pública, previsto explicitamente no art. 37 da Constituição, como "princípio da moralidade" a que se subordinam todos agentes públicos. No direito contratual privado, todavia, a probidade é qualidade exigível sempre à conduta de boa-fé. Quando muito seria princípio complementar da boa-fé objetiva ao lado dos princípios da confiança, da informação e da lealdade. Pode dizer-se que não há boa-fé sem probidade.

A boa-fé não se confunde com o dever observância dos bons costumes, os quais têm sentido mais amplo de condutas socialmente aceitas, como tradução da moral comunitária dominante ao plano jurídico, que lhe empresta juridicidade. A boa-fé objetiva oferece dimensão mais específica, como dever de conduta dos participantes da relação obrigacional segundo fundamentos e padrões éticos. Sabe-se que a moral e as normas morais, existentes em cada comunidade, não se confundem com a ética, sublimada como padrões ideais de conduta. A moral extrai-se da realidade social, com suas contingências e vicissitudes (por isso, fala-se de moral cristã, moral burguesa, por exemplo), enquanto a ética é um dever ser otimizado, ideal, que orienta a conduta humana à máxima harmonia e perfectabilidade. Com risco de simplificação, dizemos que os bons costumes estão mais próximos da moral, e a boa-fé da ética.

2.1. Deveres pré e pós-contratuais

Questão relevante é o dos limites objetivos do princípio da boa-fé nos contratos. A melhor doutrina tem ressaltado que a boa-fé não apenas é aplicável à conduta dos contratantes na execução de suas obrigações mas aos comportamentos que devem ser adotados antes da celebração (in contrahendo) ou após a extinção do contrato (post pactum finitum). Assim, para fins do princípio da boa-fé objetiva são alcançados os comportamentos do contratante antes, durante e após o contrato. O Código de Defesa do Consumidor avançou mais decisivamente nessa direção, ao incluir na oferta toda informação ou publicidade suficientemente precisa (art. 30), ao impor o dever ao fornecedor de assegurar ao consumidor cognoscibilidade e compreensibilidade prévias do conteúdo do contrato (art. 46), ao tornar vinculantes os escritos particulares, recibos e pré-contratos (art. 48) e ao exigir a continuidade da oferta de componentes e peças de reposição, após o contrato de aquisição do produto (art. 32).

O Código Civil não foi tão claro em relação aos contratos comuns, mas, quando refere amplamente (art. 422) à conclusão e à execução do contrato, admite a interpretação em conformidade com o atual estado da doutrina jurídica acerca do alcance do princípio da boa fé aos comportamentos in contrahendo e post pactum finitum. A referência à conclusão deve ser entendida como abrangente da celebração e dos comportamentos que a antecedem, porque aquela decorre destes. A referência à execução deve ser também entendida como inclusiva de todos os comportamentos resultantes da natureza do contrato. Em suma, em se tratando de boa-fé, os comportamentos formadores ou resultantes de outros não podem ser cindidos.

Independentemente do alcance da norma codificada, o princípio geral da boa-fé obriga, aos que intervierem em negociações preliminares ou tratativas, o comportamento com diligência e consideração aos interesses da outra parte, respondendo pelo prejuízo que lhes causar. A relação jurídica pré-contratual submete-se à incidência dos deveres gerais de conduta. Construiu-se, no século XIX, remontando-se ao jurista alemão Ihering, a teoria da culpa in contrahendo, para imputar a quem deu causa à frustração contratual o dever de reparar, fundando-se na relação de confiança criada pela existência das negociações preliminares; nessa época de predomínio da culpa, procurou-se arrimo na responsabilidade civil extranegocial culposa, gerando pretensão de indenização. Larenz entende que não apenas procede a indenização do dano em favor da parte que tenha confiado na validade do contrato, mas todo dano que seja conseqüência da infração de um dever de diligência contratual, segundo o estado em que se acharia a outra parte se tivesse sido cumprido o dever de proteção, informação e diligência. Ou seja, na prática, a infração de dever de conduta pré-contratual deve ser regida pelos mesmos princípios da responsabilidade por infração dos deveres de conduta contratual [8]. Nesta última direção, encaminha-se o direito positivo brasileiro, principalmente quanto aos efeitos da informação que antecede. O art. 30 do Código de Defesa do Consumidor estabelece que toda informação obriga o fornecedor e "integra o contrato que vier a ser celebrado". Portanto, os dados de informação que antecedem o contrato de consumo são partes integrantes deste, independentemente da vontade ou culpa das partes.

2.2. Dever de não agir contra o ato próprio

Entre tantas expressões derivadas do princípio da boa-fé pode ser destacado o dever de não agir contra o ato próprio. Significa dizer que a ninguém é dado valer-se de determinado ato, quando lhe for conveniente e vantajoso, e depois voltar-se contra ele quando não mais lhe interessar. Esse comportamento contraditório denota intensa má-fé, ainda que revestido de aparência de legalidade ou de exercício regular de direito. Nas obrigações revela-se, em muitos casos, como aproveitamento da própria torpeza, mas a incidência do dever não exige o requisito de intencionalidade.

Essa teoria radica no desenvolvimento do antigo aforismo venire contra factum proprium nulli conceditur, significando que a ninguém é licito fazer valer um direito em contradição com sua anterior conduta, quando esta conduta interpretada objetivamente segunda a lei, segundo os bons costumes e a boa-fé, justifica a conclusão que não se fará valer posteriormente o direito que com estes se choque. No direito anglo-americano é longa a tradição do instituto do estoppel, em razão do qual "uma parte é impedida em virtude de seus próprios atos de exigir um direito em detrimento da outra parte que confiou em tal conduta e se comportou em conformidade com ela" [9]. A teoria encontra-se consolidada na doutrina e na jurisprudência. Puig Brutau sustenta que quem deu lugar a uma situação enganosa, ainda que sem intenção, não pode pretender que seu direito prevaleça sobre o de quem confiou na aparência originada naquela situação; esta aparência, afirma-se, deu lugar à crença da "verdade" de uma situação jurídica determinada [10].

O conteúdo desse dever é também versado doutrinariamente sob a denominação de teoria dos atos próprios, "que sanciona como inadmissível toda pretensão lícita mas objetivamente contraditória com respeito ao próprio comportamento anterior efetuado pelo mesmo sujeito". O fundamento radica na confiança despertada no outro sujeito de boa-fé, em razão da primeira conduta realizada. A boa-fé restaria vulnerada se fosse admissível aceitar e dar curso à pretensão posterior e contraditória. São requisitos: a) existência de uma conduta anterior, relevante e eficaz; b) exercício de um direito subjetivo pelo mesmo sujeito que criou a situação litigiosa devida à contradição existente entre as duas condutas; c) a identidade de sujeitos que se vinculam em ambas condutas [11]. Já Anderson Schreiber, sob a ótica do direito brasileiro, considera como pressupostos de incidência da vedação de venire contra factum proprium: a) um factum proprium, isto é, uma conduta inicial; b) a legítima confiança de outrem na conservação do sentido objetivo desta conduta; c)um comportamento contraditório com este sentido objetivo; d) um dano ou, no mínimo, um potencial de dano a partir da contradição [12].

O Código Civil de 2002, nos preceitos destinados ao lugar do adimplemento, introduziu norma (art. 330) cuja natureza corresponde ao dever de não contradizer o ato próprio: "O pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir renúncia do credor relativamente ao previsto no contrato". Em outras palavras, o credor não pode fazer valer o estipulado no contrato contrariando a conduta que adotou, ao admitir que o adimplemento se fizesse em outro lugar, pois gerou a confiança do devedor que assim se manteria. Outra norma que realiza esse dever é o parágrafo único do art. 619, relativamente ao contrato de empreitada, mediante o qual o dono da obra é obrigado a pagar ao empreiteiro os aumentos e acréscimos, segundo o que for arbitrado, se, sempre presente à obra, por continuadas visitas, não podia ignorar o que se estava passando, e nunca protestou; não pode prevalecer o contrato contrariando essa conduta assim consolidada.

A aplicação da teoria é ampla em situações variadas; no direito das obrigações podem ser referidas: a) quando uma parte, intencionalmente ou não, faz crer à outra que tal forma não é necessária, incorrendo em contradição com seus próprios atos quando, mais tarde, pretende amparar-se nesse defeito formal para não cumprir sua obrigação; b) quando, apesar da nulidade, uma parte considera válido o ato, dele se beneficiando, invocando a nulidade posteriormente por deixar de interessá-la; c) quando um fornecedor oferece bonificações nas prestações ajustadas, cancelando-as sem aviso prévio; d) quando uma parte aceita receber reiteradamente as prestações com alguns dias após o vencimento, sem cobrança de acréscimos convencionados para mora, passando a exigi-los posteriormente.

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Sobre o autor
Paulo Lôbo

Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), Professor Emérito da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Foi Conselheiro do CNJ nas duas primeiras composições (2005/2009).︎ Membro fundador e dirigente nacional do IBDFAM. Membro da International Society of Family Law.︎ Professor de pós-graduação nas Universidades Federais de Alagoas, Pernambuco e Brasília. Líder do grupo de pesquisa Constitucionalização das Relações Privadas (UFPE/CNPq).︎

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo. Deveres gerais de conduta nas obrigações civis. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 711, 16 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6903. Acesso em: 22 dez. 2024.

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