Análise do Recurso Especial nº 1.454.643 – RJ (2014/0067781-5) para diferenciação do namoro qualificado da união estável

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Através do Recurso Especial nº 1.454.643, objetiva diferenciar as uniões afetivas formadas pela união estável e pelo namoro qualificado, haja vista que elas não detém o mesmo conteúdo, por mais semelhanças que as referidas uniões guardem entre si.

1 INTRODUÇÃO

A pós-modernidade trouxe visibilidade à existência de inúmeras formas de união afetiva. Contudo, a definição do que caracteriza uma entidade familiar ainda é um tema pendente de consolidação no direito civil.

Considerando a evolução da família brasileira, que pode se formar de maneiras alternativas às regras estabelecidas em Lei (IBGE, 2010), uma relação afetiva entre duas pessoas, por mais similaridade que guarde com a compreensão contemporânea de família, não pode ser taxativamente enquadrada como tal, tendo em vista a existência ou não do ânimo de estabelecê-la.

Com isso, através do julgamento do Recurso Especial (REsp) nº 1.454.643 - RJ (2014/0067781-5), que analisou a comunicação ou não de bens de um casal em um procedimento de reconhecimento e dissolução de união estável cumulado com partilha de bens, buscar-se-á apontar as diferenças entre o namoro qualificado e a união estável. Para tanto, utilizar-se-á da Metodologia de Análise de Decisões (MAD) - Método específico do Direito pelo qual se aprecia uma decisão judicial (FREITAS FILHO; LIMA, 2010), da revisão doutrinária e da legislação pátria, com a finalidade de reconstruir, por meio da análise da jurisprudência em questão, os argumentos adotados pelo Judiciário na compreensão do namoro qualificado como forma plenamente válida de união afetiva. 


2 BREVE RELATO DO CASO JULGADO

A discussão levada ao Tribunal do estado do Rio de Janeiro (TJRJ), no procedimento judicial de reconhecimento e dissolução de união estável cumulado com partilha de bens, objetivou verificar se antes do matrimônio, os bens constituídos pelo casal era fruto de partilha. (BRASIL, 2015). 

Visto que, antes de contraírem núpcias nas formas legais, o casal teve um estreitamento de vidas e, em conformidade com as alegações feitas pela autora do procedimento em instância ordinária, tal relação correspondia a uma união estável (BRASIL, 2015).

O referido pleito, após apreciação do poder judiciário em primeira instância, foi julgado procedente e reconheceu a existência da união estável entre o casal e determinou a partilha, em partes iguais, do bem adquirido nesse período por eles (BRASIL, 2015).

Com efeito, fora interposto Recurso de Apelação e Apelação adesiva pelo demandado e pela demandante, respectivamente. Assim, o TJRJ, por maioria de votos, conferiu provimento ao apelo do demandado, para julgar improcedente o pedido de reconhecimento e dissolução de união estável; e reputou prejudicada a insurgência manifestada pela demandante (BRASIL, 2015).

Posteriormente, a demandante manejou Recurso de Embargos Infringentes para que fosse mantida a primeira decisão, à medida que se obteve provimento do referido recurso e manteve-se a decisão proferida pelo Juízo de 1º grau (BRASIL, 2015).

Nesse interim, o demandado recorreu a via extraordinária, interpondo REsp para que o Superior Tribunal de Justiça (SJT) reexaminasse a decisão do TJRJ. Desde modo, por unanimidade, o aludido recurso foi conhecido e provido, sendo afastada o reconhecimento da união estável entre os recorrentes, firmando-se a tese de que a relação que os recorrentes mantiveram antes do casamento se configura como como namoro qualificado (BRASIL, 2015). 


3 A DECISÃO PROFERIDA PELO STJ

No julgamento do REsp nº 1.454.643 - RJ (2014/0067781-5), em decisão de relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze, a 3ª Turma do STJ empreendeu séria análise do instituto namoro qualificado em face da união estável.

Nesse exame, o STJ aferiu se uma união afetiva que, superficialmente, mostra-se como família já constituída pela união estável, deveria ser compreendida como tal e, por conseguinte, suportar os deveres e direitos impostos pela legislação brasileira. O julgamento a que se alude teve a seguinte ementa: 

RECURSO ESPECIAL E RECURSO ESPECIAL ADESIVO. AÇÃO DE RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL, ALEGADAMENTE COMPREENDIDA NOS DOIS ANOS ANTERIORES AO CASAMENTO, C.C. PARTILHA DO IMÓVEL ADQUIRIDO NESSE PERÍODO. 1. ALEGAÇÃO DE NÃO COMPROVAÇÃO DO FATO CONSTITUTIVO DO DIREITO DA AUTORA. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. 2. UNIÃO ESTÁVEL. NÃO CONFIGURAÇÃO. NAMORADOS QUE, EM VIRTUDE DE CONTINGÊNCIAS E INTERESSES PARTICULARES (TRABALHO E ESTUDO) NO EXTERIOR, PASSARAM A COABITAR. ESTREITAMENTO DO RELACIONAMENTO, CULMINANDO EM NOIVADO E, POSTERIORMENTE, EM CASAMENTO. 3. NAMORO QUALIFICADO. VERIFICAÇÃO. REPERCUSSÃO PATRIMONIAL. INEXISTÊNCIA. 4.CELEBRAÇÃO DE CASAMENTO, COM ELEIÇÃO DO REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL DE BENS. TERMO A PARTIR DO QUAL OS ENTÃO NAMORADOS/NOIVOS, MADUROS QUE ERAM, ENTENDERAM POR BEM CONSOLIDAR, CONSCIENTE E VOLUNTARIAMENTE, A RELAÇÃO AMOROSA VIVENCIADA, PARA CONSTITUIR, EFETIVAMENTE, UM NÚCLEO FAMILIAR, BEM COMO COMUNICAR O PATRIMÔNIO HAURIDO. OBSERVÂNCIA. NECESSIDADE. 5. RECURSO ESPECIAL PROVIDO, NA PARTE CONHECIDA; E RECURSO ADESIVO PREJUDICADO. (BRASIL, 2015). 

À vista disso, para o Ministro relator da decisão, não houve união estável, “mas sim namoro qualificado, em que, em virtude do estreitamento do relacionamento projetaram, para o futuro, e não para o presente, o propósito de constituir entidade familiar” (BRASIL, 2015). 

Vislumbra-se, portanto, que a mera expectativa de constituir família, por mais que os outros elementos caraterizadores da união estável estejam presentes, não representa uma família já constituída e, por isso, carente de total proteção estatal. 


4 OS VOTOS DA DECISÃO DO STJ

O Ministro Marco Aurélio Bellizze, ao relatar o REsp em comento, em linhas gerais, sustentou os principais pontos no relatório: 

[...] O propósito de constituir família, alçado pela lei de regência como requisito essencial à constituição da união estável – a distinguir, inclusive, esta entidade familiar do denominado "namoro qualificado" –, não consubstancia mera proclamação, para o futuro, da intenção de constituir uma família. É mais abrangente. Esta deve se afigurar presente durante toda a convivência, a partir do efetivo compartilhamento de vida, com irrestrito apoio moral e material entre os companheiros. É dizer: a família deve, de fato, restar constituída. [...] Na hipótese, da análise acurada dos autos, tem-se que as partes litigantes, no período imediatamente anterior à celebração de seu matrimônio [...] não vivenciaramuma união estável, mas sim um namoro qualificado, em que, em virtude do estreitamento do relacionamento projetaram, para o futuro – e não para o presente, ressalta-se –, o propósito de constituir uma entidade familiar [...] Nesse contexto, é de se reconhecer a configuração, na verdade, de um namoro qualificado, que tem, no mais das vezes, como único traço distintivo da união estável, a ausência da intenção presente de constituir uma família. Quando muito há, nessa espécie de relacionamento amoroso, o planejamento, a projeção de, no futuro, constituir um núcleo familiar. [...] Nessa (na união estável), diversamente do casamento, por se tratar de um estado de fato, demanda, para a sua conformação e verificação, a reiteração do comportamento do casal que revele, a um só tempo e de parte à parte, a comunhão integral e irrestrita de vidas e de esforços, de modo público e por lapso significativo. (BRASIL, 2015). 

Isto posto, após serem vistos, relatados e discutidos os autos, acordaram os Ministros Moura Ribeiro, João Otávio de Noronha Moura Ribeiro, João Otávio de Noronha, Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva, da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, acompanhar o Ministro Relator e dar provimento ao Recurso Especial (BRASIL, 2015).

Nesse viés, não foi conhecida como união estável o período que as partes viveram juntas antes de contrair matrimônio, o que afastou a possibilidade da comunicação dos bens adquiridos pelo casal nesse tempo, porque, em verdade, tal união consistia em namoro qualificado.


5 ANÁLISE E COMENTÁRIO AOS VOTOS DA JURISPRUDÊNCIA

Através da MAD, objetiva-se entender o processo de construção do discurso, embasado em aspectos teóricos compreender o sentido, carga valorativa, relação de poder político, social e a ligação com a sociedade da decisão judicial analisada (FREITAS FILHO; LIMA, 2010).

Assim sendo, no que diz respeito aos votos do REsp em questão, de imediato o julgador diz que o pedido não procede, adiantando assim o voto e utilizando a seguir todo um discurso meramente justificativo.

O Ministro Relator em seu voto opta por condicionar a sua decisão contrária ao entendimento do juízo da primeira e segunda instância, demonstrando não concordar com seus posicionamentos pela real situação dos autos em apreço.

Continua seu voto e afirma que a união do casal antes de contraírem matrimônio, por mais que se manteve de forma pública, contínua e duradoura, estava desprovida do principal fator para a caracterização da união estável, qual seja, o elemento subjetivo de constituir família nopresente.

A utilização do argumento que a união dos recorrentes restava desprovida da affectio maritalis, ou seja, sem ânimo presente de constituir família, demonstra a ideia de que as relações interpessoais são de difícil enquadramento em uma dogmática exata.

O relatório do Ministro tem como finalidade o convencimento dos outros membros do colegiado. Para tanto, usa-se um discurso direcionado ao recorrente, mas também para convencer os outros julgadores a seguir seu entendimento.

O fragmento da decisão final do colegiado demonstra concordância como voto do relator e seu entendimento pelos outros membros, o que se caracteriza como consentimento da atitude do relator em não conhecer a união estável pleiteada, bem como, por conseguinte, não ensejar meação dos bens auferidos no período vivenciado antes do casamento formal.

Por fim, foi utilizado da doutrina brasileira para fundamentar a decisão, demonstrando que o namoro qualificado é um instituto novo, carente de estudos e explicações mais profundas para nortear o entendimento da academia jurídica e da sociedade desse novo seguimento de relação afetiva.


6 A CONCEITUAÇÃO DO NAMORO QUALIFICADO CONFORME A JURISPRUDÊNCIA ANALISADA

Como se pôde notar nas disposições acima sobre o voto do Relator do REsp, as duas modalidades relacionais estudadas se manifestam de formas diferentes, e, por isso, a argumentação para o enquadramento de uma união afetiva em uma forma específica de família, torna-se papel aflitivo para os magistrados e doutrinadores, à medida que a aludida questão não corrobora com a ideia de correlacionar o caso concreto a uma dogmática exata.

Assim sendo, a união estável é família constituída no momento atual, de forma plena, que transmite a imagem externa de um casamento. No que se refere ao namoro qualificado, esse é um relacionamento em que os namorados meramente alimentam uma expectativa de constituição de uma família no futuro, desprovido da affectiomaritalis (DIAS, 2016).

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Ainda nesse respeito, em consonância com o ordenamento civil, a união estável consiste em uma situação de fato existente entre duas pessoas e desimpedidas de contrair matrimônio, que compartilham suas vidas, como se casadas fossem, o que se denomina de convivência more uxório - convivência como marido e mulher -, o que não se confunde de forma alguma com o namoro, independentemente de sua intensidade (FARIAS; ROSENVALD, 2017).

Por certo, malgrado a existência de uma união afetiva que se estabeleça de maneira pública, contínua e duradoura, está ausente o elemento subjetivo, que se revela pela conduta: constituir família no presente (LÔBO, 2009).

À vista disso, significativo registrar que para a constituição da união estável o casal, obrigatoriamente, tem que demonstrar a vontade de constituir família no presente, ou seja, “significa dizer que deve haver assistência moral e material recíproca irrestrita, esforço conjunto para concretizar sonhos em comum, participação real nos problemas e desejos do outro, entre outros” (MALUF; MALUF, 2016, p. 9). 

Em contrapartida, no namoro qualificado, “embora possa existir um objetivo futuro de constituir família, não há ainda essa comunhão de vida. Apesar de se estabelecer uma convivência amorosa pública, contínua e duradoura, um dos namorados, ou os dois, ainda preserva sua vida pessoal e sua liberdade” (MALUF; MALUF, 2013, p. 371). 

Além disso, cumpre ressaltar que na união estável, diferentemente do namoro qualificado, faz-se “absolutamente necessário que entre os conviventes, emoldurando sua relação de afeto, haja esse elemento espiritual, essa ‘affectio maritalis’, a deliberação, a vontade, a determinação, o propósito, enfim, o compromisso pessoal e mútuo de constituir família" (VELOSO apud BRASIL, 2015).

Destarte, resta claro que o namoro qualificado não se caracteriza como entidade familiar devidamente constituída em consonância com o ordenamento jurídico nacional, tendo em vista a ausência do aspecto subjetivo da vontade eminente de constituir família.


7 CONCLUSÃO

Embora de sutil diferença, união estável e namoro qualificado não são termos sinônimos, nem congregam a mesma estrutura relacional. Assim, em muitos casos, os envolventes de uma união afetiva não vivenciam uma família constituída pela união estável, mas sim, um namoro qualificado, no qual, em virtude do estreitamento do relacionamento, projetaram para o futuro o propósito de constituir uma entidadefamiliar.

Portanto, considerando a diferença dos relacionamentos formados pelo namoro qualificado e pela união estável, os deveres desta não devem ser impostos aos amantes que não ostentam uma situação de família devidamente constituída, razão pela qual se deve realizar uma análise pormenorizada do caso levado à apreciação do Judiciário para que se garante a real vontade dos indivíduos.


REFERÊNCIAS

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.454.643 - RJ (2014/0067781-5). Revista Eletrônica de Jurisprudência, Brasília, 03 mar. 2015. Disponível em: . Acesso em: 20 set. 2018.

DIAS, M.B. Manual de Direito das Famílias. 5. ed. São Paulo: RT, 2016.

FARIAS, C.C.; ROSENVALD, N. Curso de Direito Civil. 9. ed. Salvador: JusPODIVM, 2017.

FREITAS FILHO, R.; LIMA, T. M. Metodologia de Análise de Decisões - MAD. In: Univ. JUS, Brasília, n. 21, p. 1-17, jul./dez. 2010. Disponível em: . Acesso em: 21 set. 2018.

IBGE. Censo Demográfico 2010. Diário Oficial da União, Brasília, 04 nov. 2010.

LÔBO, P. Direito Civil: família. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

MALUF, C.A.D.; MALUF, A.C.R.F.D. A união estável e o namoro qualificado. São Paulo, 2016.

MALUF, C.A.D; MALUF, A.C.R.F.D. Curso de Direito de Família. SP: Saraiva, 2013.

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Sobre os autores
Weverton Fernandes Bento Alves

Mestrando em Famílias, Políticas Públicas e Desenvolvimento Humano e Social no programa de Pós-Graduação em Economia Doméstica (PPGED) da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Especialista em Direito da Família e em Direito Processual Civil pela Universidade Candido Mendes (UCAM). Bacharel em Direito pela Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), onde atuou como pesquisador junto ao CNPq (2016-2017), com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG). Foi Professor orientador do Núcleo de Estudos Avançados em Direito Civil da Liga Acadêmica Jurídica de Minas Gerais (LAJUMG), vinculada à PUC Minas, nos anos de 2018 e 2019. Mediador formado pela Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes (Ejef) do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). Revisor de Periódicos. Advogado, Mediador, Parecerista e Consultor Jurídico em Minas Gerais.

Ronaly Cajueiro de Melo da Matta

Doutoranda em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Mestra em Direito Privado pela PUC Minas (2004). Especialista em Negócios e Contratos pela Universidade Gama Filho (2001). Especialista em Docência no Ensino Superior pela PUC Minas (2006). Bacharel em Direito pela PUC Minas (1998). Bacharel em Psicologia pela PUC Minas (2011). Atualmente é Professora Assistente IV da PUC Minas. Advogada. Psicóloga. Tem experiência na área de Direito Civil e Processual Civil.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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