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Reflexões acerca da equiparação da anencefalia à morte encefálica como justificativa para a interrupção da gestação de fetos anencefálicos

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03/08/2005 às 00:00
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Da análise dos procedimentos de verificação da morte encefálica, e considerando que a identificação da morte encefálica pressupõe ter havido vida, não se pode compará-la com a situação do anencéfalo.

SUMÁRIO. I – INTRODUÇÃO. II – A IMPORTÂNCIA DA BIOÉTICA PARA O DIREITO. III – O CONCEITO DE ANENCEFALIA. IV – O CONCEITO DE MORTE ENCEFÁLICA. V – O NÃO CABIMENTO DO ARGUMENTO DE QUE A ANENCEFALIA SE EQUIPARARIA À MORTE ENCEFÁLICA. VI – CONCLUSÕES. REFERÊNCIAS.


I - INTRODUÇÃO.

Em recente decisão proferida nos autos da argüição de descumprimento de preceito fundamental n° 54, ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde – CNTS, o Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, deferiu medida liminar para reconhecer "o direito constitucional da gestante de submeter-se à operação terapêutica de parto de fetos anencefálicos, a partir de laudo médico atestando a deformidade" [1].

Tal decisão foi proferida a partir da aludida medida judicial, que teve como objetivo resguardar a segurança jurídica dos profissionais da área de saúde, eis que supostamente ameaçados de serem responsabilizados pelo cometimento do crime de aborto nas hipóteses de "antecipação terapêutica do parto" de fetos anencefálicos [2].

Sustentou o Ministro Marco Aurélio que a medida postulada mereceria guarida imediata porque se estaria diante de seres cuja chance de sobrevivência é mínima e, por outro lado, diante do direito à saúde, do direito à liberdade, do direito à preservação da autonomia da vontade e do direito à dignidade da pessoa humana titularizados pelas gestantes. Assim, para que provisoriamente se dissipasse a nuvem de insegurança jurídica, e para que os profissionais da saúde também não se vissem ameaçados de responder pelo cometimento de crimes, entendeu S. Exa. de conceder a medida liminar já mencionada, em 1° de julho de 2004 [3].

No dia 20 de outubro de 2004, todavia, o Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, por maioria de votos, revogou parcialmente a aludida medida liminar, para afastar o reconhecimento do direito constitucional das gestantes de se submeterem à operação terapêutica de parto de fetos anencefálicos, mas para mantê-la no que tange ao sobrestamento de processos e decisões não transitadas em julgado envolvendo a imputação de crime de aborto por conta de tal operação, até prosseguimento do julgamento para apreciação de questão de ordem acerca do cabimento da argüição de descumprimento de preceito fundamental no caso e, em seguida, do mérito [4].

O pronunciamento judicial que se pleiteou nos autos da argüição de descumprimento fundamental n° 54 e seus fundamentos suscitam fecundas discussões e controvérsias [5], merecendo ser objeto de algumas reflexões do ponto de vista bioético e jurídico.

O teor da medida liminar então concedida pelo Ministro Marco Aurélio bem resume os fundamentos principais da argüição de descumprimento de preceito fundamental com vistas ao reconhecimento de que a interrupção da gravidez de fetos anencefálicos não constitui crime: direito à saúde, direito à liberdade, direito à preservação da autonomia da vontade e direito à dignidade da pessoa humana cabentes às gestantes.

Mas a par de tais fundamentos, a discussão que tem sido travada acerca do tema também envolve o argumento de que a situação do feto anencefálico seria equivalente à da morte encefálica, razão pela qual não haveria vida a ser protegida que não fosse a da própria gestante [6].

Sem desconhecer a relevância dos fundamentos invocados pelos defensores da tese da viabilidade da interrupção da gestação de fetos anencefálicos a partir dos direitos titularizados pelas gestantes, afigura-se relevante, também, pensar a questão levando em conta os direitos porventura cabentes aos fetos anencefálicos enquanto seres humanos, e, neste particular, assume papel importantíssimo a detida análise, à luz da bioética, do argumento fulcrado na equiparação da anencefalia à morte encefálica [7].

É, pois, o que se pretende discutir com este trabalho.


II - A IMPORTÂNCIA DA BIOÉTICA PARA O DIREITO.

Com o passar do tempo os conceitos tradicionais da ciência jurídica se tornam insuficientes à solução das controvérsias sociais. É o que se dá, por exemplo, por conta da evolução da ciência médica.

Se em 1916, quando da edição do antigo Código Civil, pouco ou quase nada se sabia acerca da vida intra-uterina, hoje em dia já é possível controlá-la do ponto de vista médico. Veja-se, por exemplo, o que disse o médico e pesquisador JÚLIO CÉZAR MEIRELLES GOMES em simpósio realizado durante o II Encontro Luso-Brasileiro de Bioética, no dia 30 de outubro de 2002, a respeito do diagnóstico pré-natal:

"Bem, o diagnóstico pré-natal vem a ser o conjunto de procedimentos que vai buscar elementos de convicção ou evidências sobre anomalias cromossomiais ou defeitos congênitos no embrião. Esse é o objetivo do diagnóstico pré-natal. (...) O impacto epidemiológico dessa questão de diagnóstico vai incidir sobre 3% de neonatos portadores de anomalia e aí sobrevêm a utilidade da aparente técnica de diagnóstico pré-natal: detectar essas anomalias, vislumbrá-las precocemente e, se possível, corrigi-las toda vez que o benefício for superior ao risco do procedimento diagnóstico." [8]

Admitida a possibilidade científica da intervenção médica junto ao nascituro, inclusive para que se possam detectar malformações como, por exemplo, a anencefalia, como deve o direito responder a esta nova realidade?

A resposta a esta indagação passa pelo debate de idéias no âmbito da chamada bioética, como sustenta VICENTE BARRETO:

"O progresso científico e suas aplicações tecnológicas provocaram o surgimento de um complexo e intrincado conjunto de relações sociais e jurídicas, que envolvem valores religiosos, culturais e políticos diferenciados e, também, a construção em torno dessas pesquisas de poderosos interesses econômicos que se refletem na formulação de políticas públicas. As questões éticas suscitadas pela ciência biológica contemporânea referem-se, em primeiro lugar, às interrogações feitas pela consciência do indivíduo diante dos novos conhecimentos, e, também, como estes conhecimentos materializados em tecnologias repercutem na sociedade.

Este conjunto de relações pode ser analisado, do ponto de vista ético, sob dois aspectos distintos: em primeiro lugar, considerando que o mais novo ramo da filosofia moral – a bioética – constitui uma fonte e parâmetro de referência, tanto para o cientista, como para o cidadão comum. Em segundo lugar, procurando-se estabelecer quais os princípios racionais, que fundamentam a bioética e como esses princípios servem de parâmetros éticos na formulação de políticas públicas, que encontrarão nas normas jurídicas a sua formalização final." [9]

Necessário, pois, que, para a compreensão dos novos fenômenos decorrentes da evolução das ciências da vida, a ciência do direito conte com o auxílio de esclarecimentos técnicos, adequando-os e ponderando-os à luz dos princípios que informam o sistema jurídico [10]. Esta, por conseguinte, deve ser a preocupação de quem pensa o problema da interrupção da gestação de fetos anencefálicos, já que se trata de intervenção que pode afetar o desenvolvimento da vida humana, mesmo que imperfeita [11].


III - O CONCEITO DE ANENCEFALIA.

Como visto anteriormente, para que se possa avaliar do ponto de vista bioético e jurídico a questão, é importante ter em mente o que significa, do ponto de vista técnico, um feto anencefálico.

Segundo consta da petição inicial da argüição de descumprimento de preceito fundamental n° 54, da autoria do Professor Luís Roberto Barroso, "a anencefalia é definida na literatura médica como a má-formação fetal congênita por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, de modo que o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex, havendo apenas resíduo do tronco encefálico" [12].

Para MARIA HELENA DINIZ, o anencéfalo "pode ser um embrião, feto ou recém-nascido que, por malformação congênita, não possui uma parte do sistema nervoso central, ou melhor, faltam-lhe os hemisférios cerebrais e tem uma parcela do tronco encefálico (bulbo raquidiano, ponte e pedúnculos cerebrais). Como os centros de respiração e circulação sangüínea situam-se no bulbo raquidiano, mantém suas funções vitais, logo o anencéfalo poderá nascer com vida, vinda a falecer horas, dias ou semanas depois" [13].

O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo – CREMESP, atendendo à consulta n° 8.905/98 que lhe foi formulada sobre a viabilidade de doação de órgãos de feto anencefálico, por meio do prosseguimento da gestação, deixou assentado que "o diagnóstico de anencefalia fetal pré-anuncia uma situação de impossibilidade de vida prolongada, após o nascimento. A ciência não oferece recursos para a correção desta anomalia, até mesmo para o prolongamento da vida de um anencéfalo: muito menos, ao que se sabe, para atenuar os danos no seu neuro-psiquismo. (...) Em termos científicos, não existe qualquer perspectiva de vida do anencéfalo" [14].

Parece claro, portanto, que o feto anencefálico, por lhe faltarem os hemisférios cerebrais e o córtex, tem exíguas chances de sobrevivência fora do ventre materno, ainda que não se lhe possam negar a condição humana e a possibilidade de nascer.


IV - O CONCEITO DE MORTE ENCEFÁLICA.

Para o Código Civil, segundo seu artigo 6°, primeira parte, o ser humano deixa de existir, enquanto sujeito de direitos, com a morte [15]. Não conceitua o Código Civil, todavia, o que vem a ser o exato momento da morte [16].

Deve o cientista do direito, portanto, valer-se de conceitos extraídos da ciência médica para buscar a compreensão do que seja o evento morte, para a correta definição dos contornos do artigo 6° do Código Civil [17].

Bem por isto, ROBERTO SENISE LISBOA pondera, com base em conceito extraídos da medicina, que se verifica "a morte real ou autêntica com a paralisação das atividades cerebrais, cardíacas e respiratórias em caráter definitivo, que faz com que o corpo (matéria) adquira o estado de rigidez cadavérica" [18].

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Atualmente, o entendimento de que a morte real – ou a morte encefálica – ocorre com a cessação das atividades cerebrais, cardíacas e respiratórias está baseado no texto da Resolução n° 1.480/97 do Conselho Federal de Medicina [19], editada a partir do mandamento inserto no artigo 3° da Lei 9.434/97 [20], que, por sua vez, dispõe sobre a retirada de órgãos, tecidos e partes do corpo humano post mortem para fins de transplante e tratamento. Assim, segundo o artigo 4° da Resolução n° 1.480/97 do Conselho Federal de Medicina, os critérios definidores da morte encefálica são "coma aperceptivo com ausência de atividade motora supra-espinal e apnéia" [21]. De qualquer sorte, a morte encefálica, para tais finalidades e após os devidos exames clínicos, somente pode ser atestada por profissional da área médica, em documento intitulado "termo de declaração de morte encefálica", na dicção do artigo 2° da mesma Resolução.

Todavia, vale ponderar, com apoio na sempre autorizada lição de GUSTAVO TEPEDINO, HELOISA HELENA BARBOZA e MARIA CELINA BODIN DE MORAES, que o próprio avanço da ciência médica parece indicar ser inviável a determinação de um momento exato em que ocorreria a morte, eis que, na verdade, se trataria de uma seqüência de acontecimentos sucessivos e inevitáveis:

"Do mesmo modo como se questiona o nascimento da pessoa natural, que não se daria em um abrupto momento, mas sim em decorrência de um desenrolar de acontecimentos, a morte também a ser cada vez mais encarada sob este prisma, que a vê como um processo e não como um fato que se esgota um único ato." [22]

Tem-se, pois, que o conceito de morte encefálica está previsto na Resolução nº 1.480/97 do Conselho Federal de Medicina para os específicos fins da Lei 9.434/97, e que a lei civil geral não descreve o exato momento da morte real, apesar de se compreendê-la como resultado da ausência de atividades cerebrais, respiratórias e cardíacas.


V – O NÃO CABIMENTO DO ARGUMENTO DE QUE A ANENCEFALIA SE EQUIPARARIA À MORTE ENCEFÁLICA.

Da petição inicial da argüição de descumprimento de preceito fundamental nº 54 e de vários acórdãos proferidos em sede de pedidos de autorização para interrupção de gestação de fetos anencefálicos, extrai-se, em prol do deferimento da pretensão, o argumento de que a anencefalia caracterizaria situação em tudo semelhante à da morte encefálica, prevista na Lei 9.434/97 para fins de transplantes post mortem de órgãos e tecidos humanos, como se viu anteriormente [23]. Assim, não haveria direito à vida a ser preservado no que tange ao feto anencefálico, e, portanto, viável seria a interrupção da respectiva gestação.

Entretanto, tal comparação não tem perfeito cabimento para a formação da convicção acerca do tema.

É que a morte encefálica, tal como prevista no artigo 3° da Lei 9.434/97, pressupõe o nascimento com vida, que, por sua vez, ocorre com a separação do feto com vida do corpo da mãe, com subseqüente respiração [24].

Sabe-se que, com o nascimento com vida, a teor do texto do artigo 2º do Código Civil [25], o ser humano certamente será sujeito de direitos. E, tendo vida, não se lhe pode negar todos os demais direitos decorrentes do sistema jurídico.

Ora: se, no momento adequado, ao cabo de nove meses de gestação, se opera o parto de feto anencefálico (nascimento) que respira (vida), é evidente que ele se tornou, segundo o acanhado conceito do artigo 2º do Código Civil, sujeito de direitos e obrigações. Ao revés, se se procede à antecipação dita terapêutica do parto de feto anencefálico, sem se lhe dar a chance de naturalmente se desenvolver para separar-se do corpo de sua mãe com vida, não houve nascimento, a rigor.

Mas independentemente das palavras lançadas pelo legislador no texto do artigo 2º do Código Civil, também é lícito afirmar que o ser humano, mesmo antes de se separar do corpo da mãe (nascimento), já é titular de direitos [26]. Trata-se de vida intra-uterina, que também merece proteção jurídica por dizer respeito a um ser humano [27].

Do rol de direitos de que é titular aquele que ainda está por nascer podem ser destacados, além do primordial direito à vida: direito à filiação, direito à adoção, direito de receber doação, direito de suceder e direito à percepção de alimentos [28].

Ou seja: antes ou depois do nascimento, não se pode subtrair do ser humano seu direito de viver, pois já se cuida de sujeito de direitos.

Veja-se que o que a Lei 9.434/97 afirma é que a morte encefálica ocorreu para fins de transplantes de órgãos e tecidos de seres humanos, já que antes dela não se pode dispor do corpo humano ou de partes dele, em respeito ao direito à vida e ao direito à integridade física, como seu corolário. Trata-se, pois, de conceito de morte para específica finalidade [29]. Fora do seu âmbito, havendo sinais de funções vitais, há vida.

Tratando da questão do anencéfalo, e assumindo posição no sentido de que não se pode considerá-lo morto, MARIA HELENA DINIZ pondera que se cuida de "um ser humano tanto quanto um homem que venha a sofrer grave lesão nos hemisférios cerebrais ou a perder parte de seu cérebro num acidente automobilístico ou numa intervenção cirúrgica para extirpação de um tumor maligno, perdendo a capacidade de qualquer contato com o mundo exterior, mas suscetível de regular sua homeostasia, em virtude da persistência do funcionamento adequado do tronco cerebral. Se assim é, dever-se-á respeitá-lo como pessoa humana, não se ferindo sua dignidade" [30].

Mas o que resta evidente – repita-se à exaustão –, é que o conceito de morte encefálica inserto na Lei 9.434/97 pressupõe ter havido vida, raciocínio este que é totalmente incompatível com a idéia de supressão do direito à sobrevivência, intra ou extra uterina.

Não bastasse o fato de a morte encefálica ter sido adotada no Brasil apenas para fins de viabilização de realização de transplantes de órgãos – pressupondo a prévia existência de vida, portanto –, uma apurada pesquisa relativamente aos procedimentos com vistas à sua caracterização revela que não é viável determiná-la no que concerne aos nascituros.

O Conselho Federal de Medicina, em consulta feita pelo Ministério Público do Estado do Paraná acerca da viabilidade do uso de órgãos de anencéfalos para transplante, atestou, em 9 de maio de 2003, que, apesar de se estar diante de seres que não têm condições de sobrevida e que "não têm uma vida de relação com o mundo exterior", não se lhes pode aplicar os "critérios dos exames complementares de diagnóstico de morte encefálica, constantes nos artigos 6º e 7º da resolução supracitada, sejam os métodos gráficos (eletroencefalograma), sejam os métodos circulatórios, pela ausência do neocórtex, anormalidades da rede vascular cerebral e ausência da calota craniana" (sic) [31].

A razão de ser da inaplicabilidade do conceito de morte encefálica aos fetos anencefálicos, segundo o Conselho Federal de Medicina, está em que "a morte não é um evento, mas sim um processo. O conceito de morte é uma convenção que considera um determinado ponto deste processo" [32]. Assim, como o que se pretende com o conceito de morte encefálica é tão-somente determinar um momento a partir do qual é segura a retirada de órgãos do corpo humano para fins de transplante, não se pode afirmar que mesmo a partir dele não haja vida, ainda que minguante.

Interessante, ainda, verificar que o mesmo parecer do Conselho Federal de Medicina reconhece que "os anencéfalos morrem clinicamente durante a primeira semana de vida" [33], de molde a demonstrar de forma definitiva que o conceito de morte encefálica dentro do útero materno não se lhes aplica. Repita-se: se os nascituros anencefálicos falecem logo após o nascimento, é lógico que isto quer dizer que nasceram com vida [34].

Diante de tais constatações técnicas, e considerando que o conceito de morte encefálica foi criado especificamente para viabilizar transplantes de órgãos do corpo humano morto, nos termos do artigo 3º da Lei 9.434/97 – pressupondo, para a sua identificação, testes inaplicáveis aos nascituros que respiram e têm atividade cardíaca –, bem como tendo em vista que a lei civil geral não identifica o exato momento da extinção da personalidade civil pela morte real [35], tudo indica que não se o pode invocar para justificar a interrupção da gestação de fetos anencefálicos.


VI - CONCLUSÕES.

A partir dos fatos descritos na argüição de descumprimento de preceito fundamental nº 54, ajuizada junto ao Supremo Tribunal Federal pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde – CNTS, com vistas à declaração do reconhecimento de que a interrupção da gestação de fetos anencefálicos não constitui ilícito, buscou-se neste trabalho tão-somente a análise do argumento de que a anencefalia se equipararia à morte encefálica, como justificativa para o deferimento da pretensão.

Para tanto, discorreu-se sobre a importância da bioética para a compreensão jurídica dos fatos decorrentes da evolução das ciências da vida, especialmente no que concerne à intervenção na vida intra-uterina.

Em seguida, analisou-se o conceito de anencefalia, concluindo tratar-se da "má-formação fetal congênita por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, de modo que o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex, havendo apenas resíduo do tronco encefálico" [36]. Ou seja: o feto anencefálico é o nascituro que, apesar de ser dotado das demais manifestações vitais, não dispõe de partes essenciais do sistema cerebral.

Passou-se, então, à perquirição sobre o conceito de morte encefálica, para chegar-se à conclusão de que se cuida do evento descrito na Resolução nº 1.480/97 do Conselho Federal de Medicina, por força do mandamento contido na Lei 9.434/97, para fins de transplantes post mortem de órgãos humanos. Assim, segundo tal entendimento técnico, a morte encefálica consiste na identificação da inviabilidade da vida humana por conta de sucessivos exames realizados por profissionais da área médica, em intervalos de tempo específicos para cada faixa etária, que apontam no sentido da ausência de atividade cerebral.

Concluiu-se, também, no sentido de que, para o artigo 6º do Código Civil, sem a finalidade específica da Lei 9.434/97, a morte real não tem definição enquanto momento único, não bastasse apontar a doutrina no sentido de que se cuida mesmo de um processo complexo, e não de apenas um ato.

Finalmente, a partir da análise dos procedimentos tendentes a verificar a ocorrência da morte encefálica, bem como a teor da finalidade do conceito de morte encefálica para a Lei 9.434/97 – ou seja, apenas para fins de transplantes –, e considerando que a identificação da morte encefálica pressupõe ter havido vida, chegou-se à conclusão de que não se pode compará-la com a situação do anencéfalo, ao menos para o fim de justificar a interrupção da respectiva gestação.

Como se disse no início deste trabalho [37], a questão debatida nos autos da argüição de descumprimento de preceito fundamental nº 54 é emblemática na medida em que envolve, a um só tempo, a discussão sobre o início e o fim da vida humana. Nesta medida, e sem prejuízo dos demais argumentos em prol do reconhecimento de que a interrupção da gestação de fetos anencefálicos não constitui ato ilícito – os quais se resumem no direito à dignidade humana que toca às gestantes e que não são objeto de análise neste trabalho –, não se pode pretender que um ser humano que padece da falta de parte do tecido cerebral, mas que mantém as demais funções vitais, seja considerado morto por antecipação.

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Sobre o autor
Victor Santos Queiroz

promotor de Justiça no Rio de Janeiro

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUEIROZ, Victor Santos. Reflexões acerca da equiparação da anencefalia à morte encefálica como justificativa para a interrupção da gestação de fetos anencefálicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 760, 3 ago. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7111. Acesso em: 25 nov. 2024.

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