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Breves considerações sobre a função sócio-política do advogado

11/08/2005 às 00:00
Leia nesta página:

"Meu senhor, respondeu-me um longo verme gordo,
nós não sabemos absolutamente nada dos textos que roemos,
nem escolhemos o que roemos, nem amamos ou detestamos o que roemos:
nós roemos."
Machado de Assis


Vivemos atualmente em um momento de crise e esgotamento das potencialidades dos aparelhos de representação política e das instâncias responsáveis pela realização da justiça nos moldes em que vêm sendo exercido pelos Estados Democráticos Liberais. A crise evidencia-se, principalmente, no que se refere à perda de legitimidade e de eficácia de tal modelo jurídico e das condições de possibilidades da realização da democracia e dos direitos fundamentais em países recentemente saídos de regimes autoritários [1].

A situação de crise revela uma textura histórica particular porque, de um lado, caracteriza-se pela sua incapacidade em proporcionar diretrizes e rumos para o desenvolvimento científico e por não reunir condições de fornecer as soluções adequadas para os problemas da ciência. Por outro lado, traz infinitas possibilidades de superação das contradições mais agudas que, uma vez conhecidas, podem ser desnudadas e, enfim, desfetichizadas. Nos termos de Hannah Arendt, a crise obriga-nos a voltar às "velhas" questões e fazer dela mesma uma experiência e oportunidade de reflexão. Exige respostas novas ou velhas, mas, de qualquer modo, julgamentos diretos (ARENDT, 2001, p 222).

No interior dessa configuração de crise, importante se faz uma nítida definição do papel a ser desempenhado por cada um dos sujeitos sociais, para que se evite as atitudes do cinismo ou da apatia. O cinismo seria a disponibilidade do sujeito social de fazer-se cúmplice de qualquer coisa, a qualquer preço. A apatia seria condição de passividade e descompromisso com a mudança causado pela naturalização do conflito social e pela indiferença diante do sofrimento humano. Nesse sentido é o questionamento de Marilena Chauí (CHAUÍ, 1997, p. 170):

Por que os seres humanos não se reconhecem como Sujeitos Sociais, políticos e históricos, como agentes e criadores da realidade na qual vivem? Por que, além de não se perceberem como sujeitos e agentes, os humanos se submetem às condições sociais, políticas, culturais, como se elas tivessem vida próprias, poder próprio, vontade própria e os governassem, em lugar de serem controladas e governadas por eles? Por que os homens se deixam dominar pela sua obra ou criação histórica?

Tanto a postura cínica como a apática parecem ser facetas de um mesmo processo: a perda do senso crítico dos sujeitos sociais. Tal perda configura-se em um déficit essencial à medida que traz um esvaziamento da substância constitutiva da atividade intelectual.

Assim, os momentos de crise são períodos em que se retoma mais intensamente e com mais preocupação o debate sobre a missão, a função, o papel dos agentes sociais e que se impõem a recuperação da memória da atividade e o balanço da atuação de cada personagem.

No caso do presente texto, cabe perguntar qual a dimensão da função do profissional operador do Direito, particularmente do advogado, diante da crise das instâncias políticas de representatividade e das instâncias jurídicas de composição de conflitos.

A crise que atravessa a ciência e aplicação do direito consubstancia-se na crise do projeto iluminista de racionalidade moderna. Boaventura Sousa Santos (SANTOS, 1997), de maneira ilustrativa, descreve o projeto sócio-cultural da modernidade a partir de sua identificação com uma construção estruturada sobre dois pilares fundamentais: o pilar da regulação e o pilar da emancipação. Cada um dos dois pilares seria constituído por três princípios. O pilar da regulação seria constituído pelo princípio do Estado, pelo princípio do mercado e pelo princípio da comunidade. O pilar da emancipação será constituído por três lógicas de racionalidade: a racionalidade estético-expressiva da arte e da literatura; a racionalidade moral-prática da ética e do direito; e a racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da técnica.

O momento de crise desse projeto de modernidade seria o momento de desfuncionalização do desenvolvimento de tais pilares. Essa desfuncionalização deu-se, sobretudo, pelo crescimento exagerado da esfera do mercado e o conseqüente domínio que este passou a exercer sobre as demais esferas dos pilares da regulação e os da emancipação.

Nesse sentido, o pilar da emancipação (a estética, a moral/direito e a ciência) acaba direcionando suas forças produtoras para os interesses do mercado. No caso do Direito, a sua produção e realização obrigatoriamente passa a se dar de acordo com a lógica e os interesses reguladores do mercado.

A visões dogmáticas e neutras do direito que predominam em todo o período da modernidade são como que legitimadoras e potencializadoras das razões do mercado, já que acabam por orientar o desenvolvimento do direito e de seu saber formal no sentido de privilegiar os interesses mercadológicos.

Nesse contexto de crise, portanto, caberá aos operadores do direito, duas alternativas: ou cair no dualismo apologia/indiferença e manter-se afastado das discussões e responsabilidades que o período exige, ou assumir o compromisso com a construção de um novo projeto sócio-político de humanidade.

Pensemos, especificamente no caso do papel do advogado frente a esse quadro de geral de crise das instâncias políticas e jurídicas. Qual seria a função ou as funções do advogado. Será que seria possível para o advogado continuar sua atividade desvinculada dos efeitos produzidos pelas suas ações na sociedade civil? Seria possível continuar não assumindo o que suas ações geram no âmbito político e social em que está inserido?

Todos os sujeitos sociais são tributários da época em que vivem. E se ela é de conflito, tais sujeitos encontram-se dentro dos conflitos e inevitavelmente têm que se posicionar frente a eles. Nesse diapasão, como pensar o papel do advogado diante da clivagem social? Sua prática está a serviço de quais valores? Ainda, de acordo com o Professor Roberto Aguiar (AGUIAR, 1991, p. 132):

a favor de quem eles socialmente estão (os advogados)? Que projeto social pretendem implantar? O que significa a dimensão social do direito? Como as respostas às perguntas anteriores repercutem na prática profissional?

O Código de ética profissional do advogado prevê como regra deontológica fundamental a atuação do advogado na defesa da ordem jurídica democrática. Assim expressa o artigo:

Art. 2º. O advogado, indispensável à administração da Justiça, é defensor do estado democrático de direito, da cidadania, da moralidade pública, da Justiça e da paz social, subordinando a atividade do seu Ministério Privado à elevada função pública que exerce.

O Código, portanto, ao dispor em seu Título I sobre o compromisso do advogado, atrela a prática do advogado ao atendimento de valores sociais e políticos. Todavia, dizer que ele deverá defender o Estado Democrático de Direito, a cidadania, a moralidade pública, a justiça e a paz social, sem que ele tenha bem definido quais os valores e dilemas contidos na construção de cada um desses conceitos é o mesmo que dizer nada. Melhor dizendo, é não dar a cada um desses conceitos o potencial ético de transformação que cada um pode ter.

O compromisso com a construção de um projeto sócio-político novo parece implicar, necessariamente, na construção de uma nova teoria da democracia, e, por conseqüência, na reconstrução dos conceitos de cidadania.

Assim, a redefinição da teoria democrática assenta-se na formulação de critérios democráticos de participação política não confinada ao ato de votar, mas se amplia para a legitimar as práticas de mobilização e participação política forjadas nos últimos anos principalmente pelos movimentos sociais. O constitucionalista Paulo Bonavides (2001, p. 31) acentua que:

A democracia participativa é direito constitucional progressivo e vanguardeiro. É direito que veio para repolitizar a legitimidade e reconduzi-la às suas nascentes históricas, ou seja, àquele período em que foi bandeira de liberdade dos povos.

A democracia participativa pressupõe transformações no conceito de cidadania, no sentido de eliminar os mecanismos de exclusão e de combinar formas individuais com formas coletivas de cidadania, assentes na idéia de que os sujeitos sociais, portador de direitos e deveres é essencialmente criador de novos direitos e novos espaços de participação política.

Ainda de acordo com o professor Bonavides (2001, p. 51)

Não há democracia sem participação. De sorte que a participação aponta para as forças sociais que vitalizam a democracia e lhe assinam o grau de eficácia e legitimidade no quadro social das relações de poder, bem como a extensão e abrangência desse fenômeno político numa sociedade repartida em classes ou em distintas esferas e categorias de interesses.

A Constituição brasileira de 1988 representou um momento significativo na afirmação da democracia participativa e de sujeitos coletivos sociais como atores políticos e jurídicos, ao possibilitar a criação de um espaço público de reivindicações e canalização de novas demandas ligadas aos direitos fundamentais e ampliar a capacidade dos cidadãos, de forma individual ou coletiva, para exigirem a realização do direitos fundamentais.

Tal conceito de democracia detona uma transformação na postura tradicional do profissional do direito. No caso especial do advogado, enormes são os desafios para a disseminação e a prática desta nova concepção de democracia. Isso porque tal concepção implica em uma subversão incessante em tempos em que impera o imobilismo, o individualismo alienante e as razões do mercado, que desvia os indivíduos das possibilidades de transformação social.

Acentua o Professor Antônio Alberto Machado (2000, p. 20) que:

a legalidade operada pelo jurista liberal – jamais questionada nos seus fundamentos sociais, econômicos e culturais - , e o conhecimento dessa legalidade, reproduzido dogmaticamente pelo ensino jurídico, com todo o seu caráter idealista, pode até mesmo sobrepor-se ao conteúdo social da atuação do operador do direito. Logo, este último, na sua práxis, e na reprodução do seu saber, acaba resvalando, inevitavelmente, para um legalismo ressequido e abstrato que ao perder o contato com a sua base histórica pode funcionar como arcabouço ideológico da dominação socioeconômica vigente, sobretudo quando a produção legislativa, em determinados períodos e situações, legaliza os interesses de classes e grupos detentores do poder nomogenético no País.

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O que funda o surgimento de um advogado de novo tipo, é a sua opção ética pela construção de um projeto de humanidade não individualista, não desigual, não opressor. Talvez até seria apenas um resgate do caráter público e não privado da representação de sua profissão na sua origem histórica. Nesse sentido, Roberto Aguiar afirma (1991, p. 24):

A origem da advocacia enquanto representação está ligada a necessidades públicas, como às da liberdade, tutela ou qualquer ameaça aos direitos da sociedade. Logo, a advocacia, além de vicária e monopolista, é um exercício originariamente público. A privatização histórica da advocacia foi efeito das práticas políticas e econômicas da Europa e suas colônias.

O compromisso pela construção de uma nova práxis do advogado está sobretudo em assumir que a aplicação de uma mesma norma jurídica pode gerar, no concreto, opressão ou libertação, desigualdade ou justiça, manutenção ou transformação da ordem. E que tal resultado produzido está sob nosso controle e responsabilidade.

Nesse sentido, a conseqüência de o advogado assumir sua posição na esfera social, com todos os compromissos que daí surgem, é o da possibilidade de construção do seu ser enquanto instrumento de transformação social, de radicalização da democracia, de contribuinte do humanismo e de crítico-ativista, enfim, de negar o perfil de atuação profissional instituída e definir sua própria trajetória.

Indispensável que o advogado possa ser capaz de reconhecer, dentro de uma pluralidade de grupos e sujeitos coletivos, quais aqueles que carregam legitimidade para defender interesses que são da própria coletividade, ou mesmo de toda a sociedade. E essa legitimidade, não em seu aspecto formal, apenas, mas sobretudo, sua legitimidade material apreendida no confronto dos interesses de uma sociedade plural e democrática e os interesses que tais entidades carregam.

Daí exigir-se uma advocacia ativista, comprometida com a busca de uma sociedade mais justa, humana e solidária, contando, para isso com instrumentos processuais mais eficientes, hábeis e eficazes, que priorizam o social. É necessário implantar a idéia de uma advocacia de inspiração antipositivista e antiformalista, capaz de promover um acesso aberto e amplo à justiça.

Essa recuperação do conteúdo social da função do jurista é tarefa que passa também pela reforma no ensino jurídico. Apenas uma formação reflexiva e crítica, de fundo humanístico, poderia revelar a função política da dogmática jurídica e capacitar o profissional do direito para a descoberta do sentido social de sua atuação.


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AGUIAR, Roberto. A crise da advocacia no Brasil. São Paulo: Alfa Ômega, 1991.

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CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3 ed. Portugal-Coimbra: Almedina, 1999.

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Sobre a autora
Fabiana Cristina Severi

mestre em Direito pela Unesp, em Ribeirão Preto (SP), professora de Ética geral e das profissões jurídicas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SEVERI, Fabiana Cristina. Breves considerações sobre a função sócio-política do advogado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 768, 11 ago. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7158. Acesso em: 22 nov. 2024.

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