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A ação civil ex delicto

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A reparação civil "ex delicto" permite que o dano ocasionado por um ilícito penal seja reparado não apenas no âmbito criminal, satisfazendo à sociedade e ao Estado, mas também no âmbito civil diretamente à vítima ou aos seus sucessores.

Sumário: Introdução; 1. Considerações iniciais, 1.1. Conceito, 1.2. Fundamentos; 2. Dos atos jurídicos, 2.1 atos jurídicos lícitos e ilícitos, 2.2 ilícitos penais na esfera civil – considerações; 3. A ação civil ex delicto no direito comparado , 3.1os diferentes sistemas , 3.2 a ação civil ex delicto em diferentes países ; 4.a sentença penal condenatória , 4.1 os efeitos da sentença penal condenatória, 4.2 a eficácia da sentença penal condenatória ,4.3 a natureza da eficácia civil da sentença penal condenatória, 4.4. Execução civil da sentença condenatória penal ; 5.a sentença penal absolutória, 5.1.natureza da eficácia civil da sentença penal absolutória e seus fundamentos; 6.aspectos processuais da ação civil ex delicto, 6.1 da independência das ações civis e penais, 6.2. Da legitimidade ativa, 6.3 da legitimidade passiva, 6.4 da competência, 6.5 da prescrição ; 6.6.da suspensão da ação civil em decorrência da ação penal ; 7.da intervenção do ministério público na ação civil ex delicto; Conclusão; Bibliografia.


INTRODUÇÃO

Desde a primeira fase do Direito Romano, até os dias atuais, a sociedade evoluiu muito em alguns aspectos, porém em outros permaneceu com praticamente as mesmas diretrizes, posto que certos institutos pouco se modificaram.

Um dos aspectos que mais evoluíram é, sem dúvida, a questão da intervenção do Estado na resolução de conflitos interpessoais. Na primeira fase do Direito Romano, consagrava-se a chamada "justiça pelas próprias mãos", o que poderia ser comparado, nos dias de hoje, com a autotutela, porém em proporções muito maiores.

Nesta época, as famílias que fossem vítimas de crimes poderiam exigir do autor do delito o "pagamento na mesma moeda". Era a lei do "olho por olho, dente por dente". Portanto, se uma casa fosse construída e desabasse, matando a esposa e os filhos do morador, este teria o direito de matar a esposa e os filhos do construtor.

Mesmo no âmbito civil havia punições severas aos devedores, pois era previsto que aquele que devesse e não pagasse, teria a sua vida nas mãos do credor, podendo ser morto ou escravizado. Se vários fossem os credores, o devedor inadimplente seria feito em pedaços, para satisfazer a cada um dos credores.

Era uma época de vingança privada ilimitada. Agia-se diretamente sobre o ofensor, como punição pelos seus atos ilícitos.

Posteriormente, passou-se a uma fase de composição dos danos em dinheiro. O talião declinava em proveito do acerto pecuniário, o que muitas vezes era legalmente imposto, como no caso da injúria 1.

Posteriormente, no período republicano, os delitos passaram a ser distinguidos entre públicos e privados, sendo aqueles os que atingiam diretamente os interesses da comunidade e estes os que atingiam apenas o indivíduo, na esfera privada.

Nos delitos considerados públicos, o autor sofria a persecução do Estado, acarretando-lhe grave sanção. Nos delitos privados, a execução não se dava mais sobre a pessoa do devedor, mas sim sobre os seus bens 2.

De lá para cá, o instituto das punições sofreu algumas mudanças. Hoje, não apenas no sistema jurídico brasileiro, com na maioria dos países, o jus persequendi em certos crimes é apenas do Estado, posto serem crimes mais graves ou que o legislador toma para si o direito de acionar, como nos crimes de ação penal pública.

Com efeito, o jus puniendi sempre será do Estado, posto que, em matéria penal, urge o interesse público em relação à punição do agente. Além disso, há garantias no que tange as penas e aos atos considerados como ilícitos penais, pois nullum crimen, nulla poena sine praevia lege 3.

Portanto, o Estado, utilizando-se do seu poder de império, trouxe para si, apenas, o direito de punir o agente responsável por ilícitos criminais. Com isso, o Estado veda a punição ou a vingança privada. Trata-se da soberania do Estado, do interesse público sobrepondo-se ao interesse privado.

Porém, a ocorrência de um ilícito penal, sem dúvida pode trazer reflexos à esfera civil. O diploma civil, tanto o de 1916 quanto o atual Código Civil, preconiza que todo aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência, imprudência ou imperícia, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, fica obrigado a reparar o dano 4.

Conforme Giuseppe Bettiol,

"o crime ocasiona, portanto, não apenas um dano penal, mas também um dano civil que deve ser reparado. Assim, gravita em torno do crime toda uma série de interesses e de disposições não penais que, por se referirem ao crime, poderiam agrupar-se sob a denominação de ‘direito criminal civil’" 5.

Quanto a diferenças entre ilícitos civis e penais, estas não existem, posto que ambas as condutas são contrárias ao direito. Porém, em relação à pena imposta para tais delitos, esta sim difere. No direito privado, há o restabelecimento do equilíbrio jurídico, retornando-se, quando possível, ao status a quo, ou revertendo-se em perdas e danos. No direito penal, em decorrência da condenação, há a execução de uma pena por parte do Estado.

Por tanto, com exceção dos delitos previstos na Lei 9.099/95, as chamadas infrações de menor potencial ofensivo (bem como as abrangidas por tal lei), sempre haverá a ação do Estado e, na eventual condenação, a imposição de uma pena, prevista no direito penal.

A exceção acima citada se dá pelo fato de a lei referida privilegiar o ofensor, concedendo o benefício de dois institutos, sendo a composição civil dos danos e a transação penal, que, cumpridos os requisitos, afastarão a ação penal, a qual antes do advento de tal lei, era indeclinável por parte do Estado.


1.CONSIDERAÇÕES INICIAIS

1.1. CONCEITO

Como vimos, o direito evoluiu muito em relação à reparação de danos, quer sejam danos oriundos de ilícitos civis ou penais. Hoje em dia, o Estado tomou para si o jus puniendi em relação a delitos criminais, exercendo sua soberania e poder de império, proibindo a chamada "justiça pelas próprias mãos".

Contudo, a maior parte dos ilícitos penais geram também um dano de ordem civil, seja moral ou material, portanto passível de reparação.

Porém, a responsabilidade penal é estritamente pessoal, pelo próprio princípio da intranscendência, ou seja, a pena não pode ultrapassar a pessoa do agente. No entanto, a sanção pelo ilícito civil tem maior abrangência, atingindo tanto a pessoa do agente quanto os indivíduos que a lei civil imputar responsabilidade de indenizar pelo fato ocorrido.

Podemos, portanto, conceituar a ação civil ex delicto como a ação que visa a reparação de um dano, moral ou material, oriundo de um ilícito penal, cujo objeto é uma sentença penal condenatória transitada em julgado, constituindo, portanto, um título executivo judicial, podendo ser proposta em face do agente causador do dano ou de quem a lei civil apontar como responsável pela indenização.

No decorrer do presente trabalho, desceremos às minúcias do tema, verificando a legitimidade ativa e passiva, os efeitos civis da sentença penal, a natureza das diferentes sentenças penais, os aspectos processuais do instituto e a polêmica legitimidade do Ministério Público para a propositura de tal ação.

1.2.FUNDAMENTOS

Como vimos, a prática de uma conduta delituosa pode gerar efeitos distintos no âmbito civil e penal. O direito penal visa à proteção de bens jurídicos de maior relevância para a sociedade, como a vida, o patrimônio, a ordem pública, a liberdade etc. É, portanto, parte do direito público, pela divisão doutrinária.

O direito civil visa à proteção de bens jurídicos importantes no campo das relações privadas, interpessoais, como contratos, obrigações, coisas etc. A doutrina o classifica, pois, como um ramo do direito privado.

Todavia, a prática do ilícito penal está, em sua grande parte, elencada no rol não taxativo das práticas de ilícitos civis, merecendo, portanto, uma reparação de cunho patrimonial, quer seja para danos materiais ou morais.

Deste modo, a evolução do direito nos trouxe uma legislação que acompanhou a evolução da sociedade, extinguindo quase que por completo o instituto da autotutela e regulamentando as relações jurídicas, inclusive no que tange a atos ilícitos, quer sejam civis ou penais, bem como os seus efeitos e formas de reparação.

Portanto, hoje não mais se segue a "Lei de Talião", que pregava o "olho por olho, dente, por dente", havendo, na maior parte das vezes, além de a sentença criminal, que visa a punição pelo crime cometido, sanando a dívida do infrator para com a sociedade, uma reparação civil, no âmbito dó direito privado, visando a reparar ou amenizar os danos decorrentes daquela prática.

Visto isso, podemos partir para a fundamentação legal do instituto ora estudado. A ação civil ex delicto encontra fundamento legal tanto na legislação penal quanto na legislação civil. Estudaremos, portanto, as previsões legais em ambas as legislações.

O Código de Processo Penal, em seus artigos 63 à 67, trata da ação civil ex delicto, dispondo das regras a respeito desta ação, ditando as regras para a sua propositura, como a legitimidade ativa e passiva, a competência e, principalmente, frisando a independência entre os juízos civil e criminal. Seguem abaixo a transcrição dos artigos:

Art.63. Transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução, no juízo cível, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros.

Art.64. Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, a ação para ressarcimento do dano poderá ser proposta no juízo cível, contra o autor do crime e, se for caso, contra o responsável civil.

Parágrafo único. Intentada a ação penal, o juiz da ação civil poderá suspender o curso desta, até o julgamento definitivo daquela.

Art.65. Faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

Art.66. Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato.

Art.67. Não impedirão igualmente a propositura da ação civil:

I-o despacho de arquivamento do inquérito ou das peças de informação;

II-a decisão que julgar extinta a punibilidade;

III-a sentença absolutória que decidir que o fato imputado não constitui crime.

O artigo 91, inciso I, do Código Penal, cuja redação fora determinada pela Lei 7.209/84, nos seguintes termos: "são efeitos da condenação: I - tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime", nos traz o principal efeito civil da sentença penal, qual seja, o de tornar certa a obrigação de indenizar pelo dano causado pelo crime.

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O Código Civil, por sua vez, nos traz a previsão legal para a reparação civil pelos ilícitos penais, de forma ampla, no artigo 186, com o seguinte teor: "aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito", trata da obrigação de indenizar por atos ilícitos em geral, incluídos aí os ilícitos penais.

Contudo, o mesmo diploma legal dispõe de artigos que prevêem especificamente a obrigação de reparação civil por determinados delitos cometidos, como é o caso dos artigos 948, 949 e 953, que prevêem reparação para os crimes de homicídio, lesão corporal e crimes contra a honra, dentre outros, nos seguintes termos:

Art. 948. No caso de homicídio, a indenização consiste, sem excluir outras reparações:

I - no pagamento das despesas com o tratamento da vítima, seu funeral e o luto da família;

II - na prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os devia, levando-se em conta a duração provável da vida da vítima.

Art. 949. No caso de lesão ou outra ofensa à saúde, o ofensor indenizará o ofendido das despesas do tratamento e dos lucros cessantes até ao fim da convalescença, além de algum outro prejuízo que o ofendido prove haver sofrido.

Art. 953. A indenização por injúria, difamação ou calúnia consistirá na reparação do dano que delas resulte ao ofendido.

Parágrafo único. Se o ofendido não puder provar prejuízo material, caberá ao juiz fixar, eqüitativamente, o valor da indenização, na conformidade das circunstâncias do caso.


2.DOS ATOS JURÍDICOS

Não podemos nos estender a respeito do presente tema sem antes fazermos uma breve explanação a respeito dos atos jurídicos, pois estes geram toda e qualquer obrigação de indenizar.

Podemos dizer, então, que, para que um acontecimento seja considerado como jurídico, é necessário que, de alguma forma, ele tenha reflexos no mundo jurídico, sendo, portanto, considerado como fato jurídico todo o acontecimento relevante para o direito, seja decorrente de ato lícito ou ilícito.

Partindo desta definição, podemos classificar os fatos jurídicos como sendo:

a)Fatos jurídicos naturais, que se subdividem em: ordinários, que são aqueles que normalmente acontecem e produzem efeitos jurídicos, como nascimento, morte etc; e extraordinários, que são os chamados fortuitos e força maior, que independem da vontade humana.

b)Fatos jurídicos humanos, que também são chamados de atos jurídicos em sentido amplo, que se subdividem em: ilícitos: que geram obrigação e deveres; lícitos: que geram direitos e abrangem os atos jurídicos em sentido estrito, ou meramente lícitos – que geram apenas um efeito, previsto em lei, por uma única vez, sendo unilateral, e o negócio jurídico – que gera múltiplos efeitos e é bilateral.

Falaremos, portanto, dos atos jurídicos, lícitos e ilícitos, e faremos algumas considerações a respeito dos ilícitos civis e penais.

2.1.ATOS JURÍDICOS LÍCITOS E ILÍCITOS

Como vimos acima, os atos jurídicos lícitos são aqueles que geram direitos. Na definição acima, dividimos os atos lícitos em ato jurídico em sentido estrito e negócio jurídico, porém, para efeitos legais e conseqüências, o Código Civil trata ambos como negócio jurídico.

Sem maiores observações relevantes ao tema a respeito do assunto, passaremos à análise dos atos ilícitos, estes sim diretamente ligados ao objeto do presente trabalho.

O ato ilícito á todo aquele que contraria o direito, ou seja, fere o dever de não lesar a outrem, a todos imposto. Nas palavras de Araken de Assis,

"O ilícito importa invasão da esfera jurídica alheia – tênue diafragma, segundo metáfora célebre, empregada para assunto de menor importância – sem consentimento do titular ou autorização do ordenamento, ou seja, a agressão ‘à esfera dos direitos que de modo geral competem a alguém’". 6

Portanto, faz muito sentido o ditado que diz que "o direito de um indivíduo termina onde começa o do outro", pois a invasão da esfera de direitos alheia, sem autorização, quer legal, jurídica ou do próprio detentor do direito, gera a obrigação de indenizar.

A apuração da culpa, referida ma lei civil, no artigo 186 do Código Civil, transcrito anteriormente, deve ser interpretada em sentido amplo, sendo certo que abrange o dolo e a culpa, nas modalidades da negligência, imprudência e imperícia, quer sejam danos individuais, difusos ou coletivos.

Conforme veremos adiante, os ilícitos penais e civis diferem em relação às suas conseqüências, porém, na maioria das vezes, ambos geram efeitos de reparação civil. Os ilícitos civis geram a obrigação de reparar o dano, sempre na esfera patrimonial, seja o dano material ou moral.

Entretanto, os ilícitos penais geram sanções de cunho pessoal, que não ultrapassam a pessoa do agente – pelo princípio da intranscendência, sendo a pena imposta apenas ao agente do delito. Porém, há reflexos civis em relação aos ilícitos penais, pois esses ilícitos, assim que cometidos, geram a obrigação civil em relação à responsabilidade de indenizar.

Esses efeitos, sim, transcendem à pessoa do infratos, posto que são civis, podendo a vítima ingressar com a reparação contra o agente, seu representante legal ou seus herdeiros.

Temos, portanto, um dos principais efeitos civis da sentença condenatória penal, que no caso é "tornar certa a obrigação de indenizar". 7

Porém, não apenas a sentença penal gera a obrigação de indenizar pelo ilícito cometido nessa esfera. Na realidade, ambas as responsabilidades, civil e penal, são independentes, como veremos adiante.

O que temos, entretanto, com a sentença condenatória penal, é uma decisão de mérito a respeito do fato que gerou a obrigação de indenizar, que restou provado em sede de juízo criminal, necessitando, apenas, para que a vítima obtenha a sua reparação na esfera civil, da liquidação e execução da sentença penal condenatória, que constitui um título executivo judicial.

Todavia, o fato de não haver condenação na esfera penal (veremos mais adiante a respeito das peculiaridades da sentença absolutória), ou mesmo de não ter sido instaurado um processo criminal, não obsta a possibilidade de a vítima, seu representante ou seus herdeiros ingressarem com um processo de conhecimento na esfera civil.

A diferença é que toda a instrução processual será feita no âmbito civil, fase que é dispensada quando da sentença penal condenatória, posto que o dito processo de conhecimento estar superado pelo advento da condenação.

2.2. ILÍCITOS PENAIS NA ESFERA CIVIL – CONSIDERAÇÕES

A princípio, não há diferença entre ilícito civil e ilícito penal, visto ambos contrariarem o ordenamento jurídico. O que há, porém, é uma diferença de enfoque em relação a tais ilícitos.

Há atos que contrariam, sim, o ordenamento jurídico, porém para o legislador tal contrariedade não necessita das punições tão severas, impostas pela lei penal, pois não atingem a bens jurídicos de grande relevância para a coletividade, mas sim para o particular, tão somente.

Esses ilícitos ficam restritos à apreciação da esfera civil, nada tendo a ver com a atuação do juízo criminal.

Porém, ilícitos considerados pelo legislados mais gravosos e merecedores de punições mais severas encontram-se elencados na legislação penal e nesta esfera serão julgados.

Entretanto, o fato de um ilícito ser previsto como penal não lhe retira o caráter de ilícito civil, muito menos os seus reflexos nessa esfera. Como pudemos esclarecer, grande parte dos ilícitos penais geram conseqüências civis, cujo principal efeito é a obrigação de reparar o dano. A distinção é, portanto, meramente formal.

Porém, em que pese esmagadora maioria das infrações penais gerarem obrigação de indenizar, posto que invadem a esfera de direitos alheia, alguns poucos delitos não ultrapassam a pessoa de seu agente.

Citemos como exemplo o delito de porte para uso próprio de substância entorpecente, previsto na Lei 6.368/76, antiga Lei de Tóxicos 8. Ao cometer tal delito, o indivíduo poderá até ser condenado por sentença penal definitiva. Porém o crime por ele cometido não gera conseqüências jurídicas no que tange às reparações civis, posto não haver ultrapassado a esfera de direitos alheios, mas desobedeceu a normal penal imposta.

Da mesma forma, não ocorre o interesse na reparação civil nos casos de tentativa branca, crime impossível, crimes contra a paz pública etc, pois nesses casos não se consegue vislumbrar um dano civil a ser reparado.

Portanto, podemos afirmar que, ainda que haja sentença condenatória penal definitiva, se a ofensa à lei não ultrapassar a esfera de direitos de outrem, esta sentença será inócua em matéria civil, visto não haver ilícito civil a ser reparado.

Para esclarecermos a respeito dos efeitos civis dos ilícitos penais, temos que verificar a conduta cometida pelo agente sob os dois prismas: civil e penal.

Para averiguarmos a ocorrência de um ilícito penal, basta que a conduta cometida pelo agente se encaixe perfeitamente na conduta abstratamente descrita na norma como delito. Para tanto, há que se fazer breves considerações a respeito de tipo penal.

Os tipos penais são, em regra, fechados, ou seja, não admitem interpretação além do que está descrito como fato delituoso. Para haver maior segurança jurídica, pois o que está em joga é a liberdade de um indivíduo, o fato concreto deve se encaixar exatamente ao descrito na norma. Do contrário, a conduta será considerada atípica.

Por exceção, existem alguns tipos penais chamados abertos taxativos, pois admitem uma interpretação, porém dentro do que é descrito na norma, como é o caso dos crimes culposos, em que se admite a culpa pela negligência, imprudência ou imperícia.

Dito isto, podemos constatar que os ilícitos civis são de apuração muito menos rigorosa que os ilícitos penais, partindo-se desde de o encaixe do fato concreto à norma, pois no ilícito civil podemos dizer que a norma se amolda ao fato, para abrange-lo, até aos princípios processuais, pois o processo penal busca a verdade real e o processo civil, por vezes, contenta-se com a verdade formal.

Podemos perceber, portanto, que o julgamento de um ilícito na esfera penal é muito mais rígido, no tocante ao seu enquadramento à norma, do que o julgamento de um ilícito civil, pela própria natureza das diferentes esferas.

Assim, caracterizado um delito civil, por meio de sentença transitada em julgado, há provas suficientes e satisfatórias para a caracterização da conduta como sendo um ilícito civil, o que não ocorre se invertermos a ordem, pois, como vimos, o que é suficiente para a caracterização de um ilícito civil pode não ser suficientemente satisfatório para enquadra-lo criminalmente.

Temos, portanto, grande parte dos ilícitos penais com conseqüências civis, restando alguns poucos que não surtem nenhum efeito nessa esfera.

Entretanto, o fato de haver uma ação penal pendente de julgamento não obsta o direito de a vítima pleitear desde logo uma reparação na esfera civil. Conforme estudaremos adiante, as esferas são independentes, a exceção da sentença penal condenatória e de algumas sentenças penais absolutórias, como veremos.

Em conseqüência, a ação civil de reparação de danos penais pode ser suspensa até julgamento do fato no âmbito penal, com o intuito de se evitar decisões antagônicas, mas o assunte será objeto de estudo em capítulo próprio.

Os delitos penais que nos interessam para o presente estudo são aqueles que repercutem na esfera civil, posto que geram a chamada ação civil ex delicto, tema ora abordado.

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Sobre a autora
Gisele de Lourdes Friso Santos Gaspar

Advogada em São Paulo(SP), Especialista em Direitos do Consumidor e docente universitária e em cursos preparatórios.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GASPAR, Gisele Lourdes Friso Santos. A ação civil ex delicto. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 786, 26 ago. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7201. Acesso em: 17 abr. 2024.

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